terça-feira, 28 de agosto de 2012

como não tirar uma foto

Há muito tempo venho ensaiando pintar um retrato do homem que aí está fazendo de conta que toca acordeom. Digo "fazendo de conta" porque é isso o que essa foto nos diz. Na verdade ele tocava mesmo, eu o conheci. Lembro-me inclusive de tê-lo visto -  eu acocorada embaixo da cadeira de minha mãe - animar um arrasta-pé lá para os lados do Turvo, na minha já longínqua primeira infância.
O fotógrafo poderia ter dito: "então, seu Joanides, toque aí alguma coisa pra nós"; e ele tocaria, e no preciso momento em que um movimento mais enérgico desarrumasse uma mecha de seu cabelo e seu rosto se contraísse ou se distendesse numa expressão singular, clic. É claro que não foi isso o que o fotógrafo fez.   

"Estirpe"*

"Os mendigos maiores não dizem mais nem fazem nada.
Sabem que é inútil e exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar.
Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de completa
                                                                                      [coragem,
longe do corpo que fica em qualquer lugar.

Entretêm-se a estender a vida pelo pensamento.
Se alguém falar, sua voz foge como um pássaro que cai.
E é de tal modo imprevista, desnecessária e surpreendente
que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai.

Oh! não gemiam não... Os mendigos maiores são todos estoicos.
Puseram sua miséria junto aos jardins do mundo feliz,
mas não querem que, do outro lado, tenham notícia da estranha
                                                                                [sorte
que anda por eles como um rio num país.

Os mendigos maiores vivem fora da vida: fizeram-se excluídos.
Abriram sonos e silêncios e espaços nus, em redor de si.
Têm seu reino vazio, de altas estrelas que não cobiçam.
Seu olhar não olha mais, e sua boca não chama nem ri.

E seu corpo não sofre nem goza. E sua mão não toma nem pede.
E seu coração é uma coisa que, se existiu, já esqueceu.
Ah! os mendigos verdadeiros são um povo que se vai convertendo
           [em pedra.                                         
Esse povo é que é o meu."*


*Cecília Meireles, In Viagem, Global Editora, São Paulo, 2012.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

da impertinência de certas manifestações de fé

Em seguida à  espetacular vitória do nosso volei feminino nas olimpíadas, as atletas e a comissão técnica ajoelharam-se em círculo para uma ostensiva oração de graças. Não sendo eu mesma religiosa, ainda assim posso entender - por experiência própria - o quanto é instintivo o impulso de gratidão,  nos momentos críticos de nossas vidas, ao acaso ou a uma instância maior qualquer que precisamente ali nos tenha favorecido. Deduzo, no caso das meninas do volei, que essa "instância maior" seja o deus cristão, pois rezavam o Pai Nosso, e esta é a oração cristã por excelência, dado que ensinada pelo próprio Cristo. Se fosse comigo essa situação de vitória sobre o adversário, e se me fosse dado acreditar num deus e especialmente no deus cristão, que pelo que andei lendo é para ser um pai amoroso, imparcial e justo, e pai de todos, de todas as bandeiras, penso que se eu tivesse mesmo fé, eu refrearia o impulso de dar graças ao meu deus pela vitória, pois em princípio não me pareceria razoável que meu deus tivesse me favorecido em detrimento de minha irmã do outro lado da rede. E ainda que eu pudesse, por tais e quais motivos, me convencer que o meu deus  seria capaz de me favorecer em detrimento de minha irmã, ainda assim eu refrearia meu impulso de ostensivamente dar graças ao meu deus, pois isto significaria sujeitar minha irmã, já em desvantagem pela derrota no jogo, à humilhação pública pela explicitação de seu desmerecimento do favor divino, e isto, convenhamos, nada tem a ver com compaixão. E a compaixão, no meu entendimento, é o centro da idéia do Cristo, ou seja, a experiência da dor dor outro como se fosse a nossa. Mas, como eu não tenho o dom da crença, quem sabe me escapa algo que me impediria de ver aquela "manifestação de fé cristã" como uma imperdoável grosseria com nossas irmãs do outro lado da rede.