quarta-feira, 28 de agosto de 2024

terça-feira, 11 de junho de 2024

do meu anedotário de maluca


 Quando idealizei a miniatura do armazém que minha mãe teve durante algum tempo, há mais de sessenta anos, "no mato" do interior do Paraná, quis que ela fosse a mais fiel possível, tanto por dentro quanto por fora, ainda que, depois de acabada, não se possa mais ver seu interior, exceto pelo que aparecerá pelas vidraças e vãos das portas. O que se vê no canto em primeiro plano desta foto é um trecho do balcão com tampa de vidro (acrílico na miniatura), onde ficavam bijuterias, fitas, botões e outras peças de armarinho; no momento de fixá-lo ao chão e ao restante do balcão achei conveniente reforçá-lo com essas laterais triangulares que não havia no original. Depois disso pronto passei a ficar terrivelmente incomodada com a ideia de que minha mãe, ao acessar essa parte do balcão, ficasse obrigada a transpor a lateral e eventualmente tropeçasse nela. Fui dormir pensando que no dia seguinte trataria de serrá-la, com muito cuidado para não estragar o que já tinha me dado tanto trabalho. No dia seguinte, a sensação de desconforto tinha desaparecido por completo e passei a achar a solução das laterais não só funcional, mas também estética. Gosto de pensar que minha mãe me visitou durante o sono para dizer que assim estava bom, que não me preocupasse, que ela tomaria bastante cuidado.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

 o armazém de minha mãe 2

"fundação", assoalhos do armazém e da varanda dos fundos, parede divisória entre venda e depósito, prateleiras e balcão prontos. 





sábado, 2 de março de 2024

Joseph Roth

 Eu confesso que sou presa fácil do pensamento cínico segundo o qual a vilania humana é incontornável, portanto inculpável (não sei se uso adequadamente a ideia de cinismo; corrija-me por favor quem puder). Por isso acho especialmente espantoso que uma pessoa como Joseph Roth, que vivenciou os horrores da primeira guerra e, sendo judeu, os acontecimentos que precederam a segunda (morreu em 1939), que alguém assim escreva o que reproduzo abaixo, uma espécie de libelo contra o que chamo aqui de cinismo (ao  mesmo tempo uma declaração de consciência da altitude de sua literatura). Numa cena anterior ao excerto a seguir, o ordenança Onufrij oferece ao tenente Trotta (um janota) todas as suas suadas economias para que este salde suas dívidas de jogatina:

"O tenente lembrou-se daquela noite de outono na guarnição da cavalaria, na qual ouvira, às suas costas, os passos soantes e ritmados de Onufrij. E pensou nos livrinhos de humor militar, encadernados de verde, que lera na biblioteca do hospital. Estavam repletos de ordenanças comoventes, camponeses ingênuos com corações de ouro. E muito embora o tenente Trotta não tivesse nenhum gosto literário, e muito embora, se por acaso ouvisse a palavra literatura, fosse capaz apenas de pensar na tragédia Zriny, de Theodor Körner, e em mais nada, criara uma certa aversão inconsciente à delicadeza melancólica daqueles livrinhos e às suas personagens com corações de ouro. O tenente Trotta não tinha suficiente experiência para saber que, também no mundo real, existem rapazes camponeses ingênuos de corações nobres, e que os livros ruins contam muitas verdades do mundo real, só que as contam mal. Ele era, ainda, um homem inexperiente, o tenente Trotta.".

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

das pequenas coincidências e dos finais felizes


 No dia em que completava dezoito anos, ao abrir a geladeira da adega aonde fora apanhar mais bebida para a festa que rolava no andar superior, uma pequena corrente elétrica coincidiu com uma pequena e até então desconhecida disfunção de seu músculo cardíaco. Quando a encontraram, desfalecida, o tio, que coincidentemente era médico e lá estava justo para a comemoração do aniversário, empenhou toda a sua ciência e sua ternura para reanimá-la. Mas, era já tarde demais e o vasto porvir congelou-se para ela em estado de infinitas possibilidades, restando o coração impoluto, todas as ilusões preservadas.

sábado, 28 de janeiro de 2023

uma irmã



Laços de sangue não garantem parentesco espiritual, é sabido; irmãos podem ser e frequentemente são tão diferentes entre si quanto são de completos estranhos, ainda que a ascendência comum e a convivência na infância e juventude determinem  relações de grande afeto. Dos meus quatro irmãos (um irmão e três irmãs) posso dizer que fosse mais aparentada de uma das irmãs, morta há muito tempo, ela então com 34 anos e eu com 20, de modo que não tivemos muita oportunidade de desfrutar da proximidade de nossos pontos de observação do mundo, mesmo porque ela já tinha aprendido quase tudo e comido o pão que o diabo amassou, enquanto eu era ainda uma completa idiota. 

Por outro lado, é fascinante que se possa conhecer na literatura gente - real ou ficcional - tão parecida com a gente mesma. Minha primeira experiência desse tipo deu-se quando conheci Paulo Honório, o coronel assassino personagem do romance São Bernardo; identifiquei-me de cara com essa criatura e desenvolvi por ela o que por mim mesma era uma mistura de nojo e forte comiseração. Mais tarde, quando li Infância e Memórias do Cárcere, concluí que eu e Paulo Honório tínhamos um terceiro irmão bastante afinado, o criador mesmo, Graciliano. 

Das minhas experiências de conhecer irmãos pela literatura, nada se comparou até agora à que tive quando li, muito recentemente, "As pequenas virtudes" da Natália Ginzburg: deu-me vontade de sair mostrando às pessoas na rua: "olha só, podia ser minha avó, viveu e morreu do outro lado do mundo, mas é minha irmã, verdadeiramente minha irmã, e de algum ponto do universo segue falando comigo".