domingo, 1 de novembro de 2015

cinco poemas de Leila Guenther

PELA JANELA de um carro em movimento
atiro
       um a um
todos os fios de cabelo
de minha cabeça

a viagem é longa

Minha noite se divide
em muitas partes
que não posso reunir


A CHAT WITH CHET

Gosto mais de sua voz agora
grave, baixa, pesada
pela força de atração da terra
sem aquele caráter flutuante de quando você era
um rapar bonito e perfeito.

Gosto da economia de suas notas
e da sonoridade que elas adquiriram
depois que você perdeu os dentes.
Gosto mais de você sem dentes
e dos sulcos que surgiram das profundezas de sua face
depois que a máscara uniforme de garoto se quebrou.

Queria ter podido afagar todo esse seu rosto
                                                          [verdadeiro
quando você caiu daquela janela em Amsterdã.




MUDANÇA

Os objetos nas caixas
urdem uma vingança
que se dará sem som
e sem movimento

Os objetos nas caixas
transpiram entre folhas de jornais
enquanto esperam com paciência
serem arremessados no vazio
pela janela do mais alto andar
por quem um dia há de arremessar
                                                     também
a si mesmo


ASSIM VOANDO
o pássaro mais belo
é o urubu


A LETRA A

Foi pela forma com que se urdiram as letras
que o amor começou, eles o comprovam.
Certo estava aquele texto
a afirmar que no início era o verbo.
A carne, os cheiros, o toque, as sensações aguçadas pelas palavras
que pairam sublimes e altivas acima das lides, da
     [destruição do tempo, das crianças se avolumando
                                              [barulhentas ao redor,
ensinam o que é uma biblioteca: um ato de amor.
         E como ela perdura, ainda que os incendiários de
                       [Alexandria continuem à espreita.
O corpo acabará, o som morrerá na boca, antes de vir
                                                                           [à luz,
os cachorros, as árvores e os pássaros perecerão,
os filhos tomarão seus caminhos como veias
                                             [desligadas das artérias
e até aquela casa, onde passei os melhores momentos 
                                                              [de meu exílio,
Se extinguirá um dia.
Mas nela habita uma carta
para que os outros vivam.
E a ciência do futuro a decifrará
assim como um dia decifrou
Os papiros do Egito.











terça-feira, 13 de outubro de 2015

maritacas espiãs

Enquanto desenho na mesa da sala, duas maritacas me observam do telhado do vizinho.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Quatro poemas de Paulo Neves

O nevoeiro

A alma acredita
que há uma terra sem mal
para além do nevoeiro,
um vale encantado, improvável,
mas não menos real
que o pulsar e a antimatéria.
E ela põe-se a caminho, à espera
de que o nevoeiro se abra.
E de tanto atravessá-lo
e ser por ela atravessada
descobre enfim sua veste branca
e aceita que ela mesma é o nevoeiro.

Francesco

Não foi virtude
o que ele viu na pobreza
mas o ultimo véu da carne.
E a carne é somente um meio
de abordar o enigma
que há na carne,
de receber os estigmas
que só se leem na carne.

Maborosi

Da última vez que ela o viu,
ele saiu andando,
levava um guarda-chuva.
Seu amor sem esperança
ficou ali parado
como um coração na chuva.

Pasto

Meus olhos na relva
onde as ovelhas pastam.
O sol declina os tons do verde
e a paz do campo me domina
como um cheiro imemorial.
O frio da relva é macio,
dá vontade de ser um focinho
e fechar os olhos.
Eu sei um segredo da terra.
Eu pasto.



Paulo Neves, "in" viagem, espera, Companhia das Letras, SP, 2006

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Orides Fontela

Olhando com atenção, daqui, deste lugar no tempo, já dá para adivinhar Orides Fontela.


NOTURNO

Os que nascem de noite
e, entre ossos, vigiam 
o fogo
os que olham os astros
e, oprimidos, respiram
em cavernas

os que vão viver apesar
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
acendem

os que não sonham, os que nascem
de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra.

Orides Fontela