quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Lúcifer*

            Fabricados de pura luz pela mão direita de Deus, serviam-lhe os Anjos de lenitivo à solidão divina. Concebeu-os como instrumentos em que pudesse interpretar-se a si mesmo, em sua melodia essencial – a inefável perfeição do silêncio criador.
            Haverá maior solidão que a solidão divina? Criar, criar, de palmas abertas, dando sempre e apenas dando, sem nada receber? Assim, ao menos, na lúdica assistência da corte angelical, podia entregar-se à ilusão de ouvir-se a si mesmo, repercutido em eco, ou retratar-se no espelho dos puros espíritos. Não de outro modo, na escala humana, um grande poeta apura o ouvido para ouvir-se nos outros, com inquieto amor próprio, já que não lhe é concedida a graça de mudar de pele, para respirar um pouco, desobrigado enfim dos compromissos de sua consagração.
            Na fábrica dos Anjos, bastou a Deus uma cintila dos olhos para transmitir-lhes um pouco do seu próprio resplendor. O fogo divino acende o fogo da vida em todas as coisas; sua luz traspassa de luz a própria sombra, que não é senão a confirmação dessa presença luminosa pelos corpos opacos. Se a matéria, ao receber a luz, é obrigada a tranformá-la em sombra, o fato mesmo da presença da sombra já está proclamando a luz.
            Os Anjos todos até então se tingiam das inevitáveis oscilações prismáticas da meditação criadora. A uns, concebidos na mais profunda altitude do empíreo, deu-lhes a graça divina o azul, essa vertigem do olhar, que é uma ilusão da distância. A outros, incendiou-os com o chamejamento das pupilas, e, a um bater de asas, abriam largos sulcos de fogo, ateando incêndios aurorais no espaço.
            Pergunto eu: Quem traça no Céu aquelas riscas de sete cores, miragem de uma ponte projetada no ar? E respondo: Os Anjos, quando louvam o Senhor em vôos concêntricos, entoando: Hossana! Só lá no Céu seria possível compreender o que significa uma sinestesia, ao ouvir-se o arco-íris de todas as legiões celestes vibrando em sonoridades multicoloridas, coro feito de todas as cores. A cada categoria dessa milícia espiritual, Anjos, Arcanjos, Potestades, Virtudes, Dominações, Querubins e Serafins – corresponde uma cor simbólica e um emblema, segundo a exegese mística dos tratados de lapidação. Assim, por exemplo, o verde é a cor angélica e a esmeralda o seu emblema.
            Em certas condições, todavia, esses puros espíritos podem mudar de cor. Sabido é que William Blake ceerta vez viu um Anjo ficar azul, de santa indignação, passando aos poucos a amarelo, branco – e finalmente, já pacificado, parecia sorrir, de tão róseo. E quem não acompanhou com olhos abismados no horizonte cada vez mais profundo, ao raiar da madrugada, aquelas cambiantes esmaecidas em novas cambiantes, que são o sinal mais certo de uma festa no Céu? Do outro lado de oceanos de nuvens, legiões de Anjos em revoada celebram o eterno dia do Senhor, cantando: - Santo, Santo é o teu nome! Para sempre amanhecem as tuas obras, cada vez mais orvalhadas e radiosas, como no primeiro dia da Criação!
            Ora, - assim rezam as crônicas do Céu e do Inferno – o coro celestial era a princípio de uma unissonância para nós quase inconcebível, monodia da rosa mística na irrespirável pureza do empíreo.
            Mas, como há sempre uma superação das perfeições, e até Deus, em virtude da onipotência, é obrigado por si mesmo a superar-se, momento houve em que, da incessante sublimação dos puros espíritos, brotou a suprema pureza, como da superação das cores afinal se irradia a cor suprema, que é o Branco.
            Lúcifer nasceu da própria fulguração da luz branca, e nasceu com ele a inquietação da beleza. Criara-o Deus como um filho dileto, já mais próximo da compreensão divina. Dera-lhe, como a Gabriel, Miguel, Azrael, Uriel e Rafael, não só a fulminante rapidez do pensamento, mensageiro que leva aos confins do mundo a mensagem do Senhor, e o dom musical de modular ao mesmo compasso do Verbo, mas além disso, não sei que indefinível graça, talvez sutileza, inquietação, melancolia contemplativa... Deu-lhe ainda, mistura de tudo isto, para mais e melhor, aquela consciência da fragilidade na plenitude que só muito mais tarde e depois da queda viria a chamar-se: ironia. Quando Lúcifer nasceu, a estrela da manhã e a estrela da tarde cintilaram do mesmo fulgor pensativo.
            Fria, distante, lúcida era a estrela de Lúcifer, e um leve halo azulíneo cingia-lhe a fronte, como diadema. Resplandecia tanto, na sua perfeição, que a seu lado os outros Anjos anoiteceram, por força de contraste. Murmuram as crônicas infernais que assim começaram as intrigas na corte celeste. Suporta-se com humildade a ofuscação do próximo, diziam alguns espíritos impuros, decaídos do primor antigo. De qualquer modo, sobre esta sovada questão as glosas de que disponho se desentendem muito. Ela engravidou em discussões intermináveis, graças à argúcia dos teólogos e seu conhecido amor à controvérsia. Eu por mim prossigo na cópia do meu apógrafo, sem mais delongas.
            No primeiro olhar de Lúcifer sentiu o Senhor que ele próprio criara um princípio subversivo, ao conceber a sua criatura mais perfeita. No primeiro olhar do Senhor sentiu Lúcifer que acabava de ser criado para ser condenado,
            - O excesso de perfeição já não é perfeição, - assim dizia com seus abismos o supremo artífice – pois a verdadeira perfeição não vai sem justa medida. Com demasiado amor o engendrei da mais pura essência de mim mesmo, luz de seio a seio, hálito de boca a boca, e sinto que já não obedece à amorosa pressão dos meus dedos, onde latejava a sua forma ideal... Amar e criar é fácil para a sabedoria divina; mais difícil é ser amado pela criatura, isto é, ser compreendido, mesmo pelos puros espíritos moldados à minha semelhança. Pois, quando apenas há reflexo, já não há desejo de compreender e, sim, uma simples reprodução. Deste filho dileto esperava eu um gesto espontâneo, um movimento livre, um primeiro passo...
            Tudo isto ia lendo Lúcifer no semblante formidável do Senhor, como num livro aberto. Sentia-se enjeitado, antes do primeiro gesto.
            Falou, então, e havia uma risonha placidez na sua voz, um brilho calmo no olhar. A estrela parecia dançar-lhe na testa, a cada palavra:
            - Senhor, aqui estou, e bem sabes que a minha presença já é uma confirmação da tua vontade. Eu por mim não ignoro a alta sabedoria dos teus desígnios, sabendo que fui criado apenas para ser condenado. Não há rebelião mais ameaçadora na corte celeste do que a transparência de um pensamento sereno, que logo vai mostrando na cor dos olhos a cor das intenções. Bastou um olhar para sentenciar-me. E não obstante, sou eu talvez o único puro espírito capaz de compreender-te, confirmando ao mesmo tempo a grandeza e a perfeição da tua obra. Sabias que não era possível dialogar verdadeiramente se ficasses no monólogo divino, repetido pelos Anjos, espécie de ventriloquismo sublime, porém um tanto enfadonho, e decerto áulico, cheirando a murmuração louvaminheira.. E assim, tu me convocaste e aqui estou, Senhor, para o primeiro diálogo da Criação. Não sei afinar muito bem pelo coro dos Anjos, mas é dessa fraqueza mesma que decorre a possibilidade de um diálogo. Além disso, uma voz a menos, nesse empostado coro, que diferença poderá trazer ao concerto final das hossanas? Tu é aquele que é, aquele que é sempre, e só ele para sempre – ao passo que todos nós, simples espíritos puros, servimos quando muito de apagado eco à confirmação da tua eternidade, débeis reflexos da tua onipotência. Mas, pergunto eu, onde está em tudo isto o verdadeiro diálogo? Só do contraste, da falha, da fragilidade ameaçada poderia provir o balbucio de um diálogo vivo e então sim, não apenas monótono ou divino, mas contrastado, sofrido, trágico...
            “Senhor, basta de prólogo nos bastidores do Céu, entre nuvens e harpas, com a fria assistência de puros espíritos. Não há boa tragédia sem o concurso da Morte e do Tempo. Aproveita, pois, o estranho animal sem asas que acabaste de criar, para escândalo dos Anjos. Ele vive a trepar nas árvores do Paraíso, a provar de todas as frutas, a puxar pela cauda de todos os animais. Já lhe deste uma companheira que é, mais do que ele, um desafio à nobilitação angelical da forma. Dá-lhe agora o medo da Morte, além da consciência na vontade; dá-lhe a angústia do irreversível, o suplício da recordação feliz, do paraíso perdido e do irrecuperável; dá-lhe a um só tempo a insatisfação constante e a ilusão da plenitude, para que não se acabe o sofrimento. Sairemos então do solilóquio divino, e começará o verdadeiro diálogo”.
            E Deus viu que era bom, isto é, ao mesmo tempo mau e bom, pois indispensável era o concurso do mal, e sem ele a obra da criação não passava de um insosso prólogo celeste, monologado e sem graça. E maravilhava-se da arte com que sabia escrever direito por linhas tortas, criando Lúcifer. E como, a um silêncio mortal, sucedera um crescente sussurro de enxames de abelhas irritadas, traçou no ar um imenso gesto de reprovação.
            - Senhor, tu és perfeito em tuas obras! Confirmou logo o coro.
            Mas o Senhor, dando execução imediata ao diálogo, trovejou:
            - Adão, onde estás?


*MEYER, Augusto, "In" A FORMA SECRETA, Editora Lidador, Rio de Janeiro, 1965