sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

das pequenas coincidências e dos finais felizes


 No dia em que completava dezoito anos, ao abrir a geladeira da adega aonde fora apanhar mais bebida para a festa que rolava no andar superior, uma pequena corrente elétrica coincidiu com uma pequena e até então desconhecida disfunção de seu músculo cardíaco. Quando a encontraram, desfalecida, o tio, que coincidentemente era médico e lá estava justo para a comemoração do aniversário, empenhou toda a sua ciência e sua ternura para reanimá-la. Mas, era já tarde demais e o vasto porvir congelou-se para ela em estado de infinitas possibilidades, restando o coração impoluto, todas as ilusões preservadas.

sábado, 28 de janeiro de 2023

uma irmã



Laços de sangue não garantem parentesco espiritual, é sabido; irmãos podem ser e frequentemente são tão diferentes entre si quanto são de completos estranhos, ainda que a ascendência comum e a convivência na infância e juventude determinem  relações de grande afeto. Dos meus quatro irmãos (um irmão e três irmãs) posso dizer que fosse mais aparentada de uma das irmãs, morta há muito tempo, ela então com 34 anos e eu com 20, de modo que não tivemos muita oportunidade de desfrutar da proximidade de nossos pontos de observação do mundo, mesmo porque ela já tinha aprendido quase tudo e comido o pão que o diabo amassou, enquanto eu era ainda uma completa idiota. 

Por outro lado, é fascinante que se possa conhecer na literatura gente - real ou ficcional - tão parecida com a gente mesma. Minha primeira experiência desse tipo deu-se quando conheci Paulo Honório, o coronel assassino personagem do romance São Bernardo; identifiquei-me de cara com essa criatura e desenvolvi por ela o que por mim mesma era uma mistura de meio nojo e forte autocomiseração. Mais tarde, quando li Infância e Memórias do Cárcere, concluí que eu e Paulo Honório tínhamos um terceiro irmão bastante afinado, o criador mesmo, Graciliano. 

Das minhas experiências de conhecer irmãos pela literatura, nada se comparou até agora à que tive quando li, muito recentemente, "As pequenas virtudes" da Natália Ginzburg: deu-me vontade de sair mostrando às pessoas na rua: "olha só, podia ser minha avó, viveu e morreu do outro lado do mundo, mas é minha irmã, verdadeiramente minha irmã, e de algum ponto do universo segue falando comigo".