terça-feira, 28 de dezembro de 2010

"Carta de amor"*

"Dei por ela já na letra da primeira carta.
É sabido que, muito antes das palavras, é a letra pessoal que desenha todos os significados essenciais, aqueles que os olhos recolhem diretamente, sem precisão de idioma ou dicionário.
A carta era para mim, as palavras desenhavam-se para mim, tanto quanto a
a letra era inteiramente dela, espelho fidedigno onde com método ela se arrumava e se enxergava a cada vez que escrevia. Seus dedos, que adquiriram instrução própria, queriam mais saber e dizer, e o faziam propondo linhas e sinuosidades incontáveis, num desenho que corria com aquela força e aquela autonomia que falam e assinam por si.
Estava condensado nos contornos da letra o sentido fundo da curta mensagem, alvoroçando minha tarde que ameaçara ser igualzinha a tantas e tantas outras que passo nesta sala de algum trabalho e muita distração. Que a carta viesse de onde vinha já era estranho, pois não conhecia ninguém daquela cidade, e nem de longe o nome da remetente. Isso já era um evento espetacular em meio à rotina da minha mesa com as gavetas cheias de manuscritos muito lidos ou exercitados.
Certa vez uma escritora, celebrada na roda dos leitores comuns, me disse que os detalhes mais prosaicos são essenciais na prosa, que é preciso costurar fatos e pessoas, e que eu tinha de me livrar daquela obsessão confiante pela letra manuscrita, pelos desenhos caligráficos, pelo ritmo do pulso, se quisesse escrever alguma história digna do nome. Mas preferi atender minha vocação para outras histórias, como esta, sem no entanto jogar fora de todo aquele conselho - tanto que passo a vos informar que: a) sou professor de literatura; b) ocupo, portanto, um específico e singular degrau da classe média; c) tenho um escaninho (com chave) para a correspondência; d) foi dele que, naquela tarde, retirei a dita carta; e) tendo em seguida subido até minha sala, onde passo as tardes; f) as quais costumam ser demoradas e contemplativas, entre as inscrições e os experimentos do meu ofício.
Era morno meu estado de espírito, antes que meus olhos se agitassem com a letra do envelope, logo em seguida aberto - pois já o sobrescrito anunciava um convite urgente para o início de uma grande paixão. E era. Li isso em cada variado pingo de "i", em cada voluta de "v", em cada derramado "m", sobretudo se seguido de "u" e "n", como em "mundo", nome que ali desenhava uma ondulação contínua com vibração íntima e nervosa – mas logo controlada por um travessão cortante e cheio de respiração. Nossa profissão nos deixa espertos, com este olhar aplicado às letras, escavando-as tanto que o assim chamado "sentido" das palavras e frases se conforma a seu papel secundário, de desprezível relevância. Com esse treino, tornamo-nos especialistas na operação de surpreender, por diligência analítica e dirigida sensibilidade, o passo antes da intenção, o motivo antes do movimento, a fala anterior, interior e posterior à suposta mensagem.
Passei em seguida, com tédio, a ler convencionalmente as palavras, em suas vagas indicações. Pouco vos direi delas, pois nem de longe serviam à verdade que eu já decifrara com segurança no formato expressivo das inscrições. Era uma carta de amor, não havia dúvida, disfarçada num pedido de informação que uma estranha dirigia a um estranho, a propósito de um estranho livro que, estranhamente, ninguém, além dela, havia admirado.
Conhecia-o eu, que o havia escrito e que o esconjurara desde que o manuscrito passara pela máquina de escrever de alguém, de onde saiu para uma gráfica e, como última aberração, se imprimira e se distribuíra por algumas livrarias. Aquela coleção de poemas custosamente desenhados em muitas tardes vagas, ao longo de anos e anos de sala, fora toda apagada pela esterilidade da escrita industrial. Naquele tempo, eu não suspeitava da extensão desse assassínio tipográfico, do alcance dessa traição. Quando vi, era tarde, e fiquei meses e meses sem desenhar de próprio punho qualquer palavra, voltado inteiramente para a minha tarefa principal – qual seja, a de surpreender, sob o tom e a derivação do assunto aparente, o motivo original de cada autor de letras, sobre as quais ainda não se erigira a lápide da impressão mecânica ou eletrônica. Tenho certeza de que se um dia cometerem a insanidade de submeter este manuscrito a tal insídia, havereis, alguns de vós, de me vingar plenamente, buscando-me e adivinhando-me vivo nesta caligrafia original e nestes arabescos essenciais, traçados por meus dedos.
Respondi imediatamente à carta, como bom profissional, imprimindo uma confidência a cada toque do lápis, entremeando as inscrições com precisos espaços, variados conforme a transposição do fôlego. Resultou um dos meus melhores inscritos, cada parte levando ao todo, o todo supondo cada parte, tudo integrado num aspecto denso e orgânico, ao qual não faltou sequer, sob a filigrana da assinatura, o requinte de um P. S. seguido de nada, qual uma fermata na pauta de uma sonatina. Não me lembro exatamente o que pretextavam as palavras casuais; creio que me vali de assuntos variados, como a carestia, a questão das patentes e a já iminente decisão do campeonato paulista.
Passaram-se semanas sem qualquer outra alteração na rota. O curso do semestre já ia pelo fim, e eu receberia dos alunos uma tonelada de manuscritos para avaliar. Com muita aplicação entortava eu uma curva aqui, desentortava outra, refazia um segmento de desenho, apagava um traço morto, para anular o intervalo entre a intenção e o gesto. Em certos casos, era impossível: o adestramento automatizado dos dedos deixava subentendida a odiosa digitação mecânica, que se mostrava uniformizando por si o aspecto mais pessoal da letra e tentando remeter o leitor ao famigerado "sentido" daquelas "palavras" vazias. Tempos bárbaros.
Mas um dia abri o escaninho e outra carta – agora mais que familiar – se apresentou, sempre a lápis número 2 bem apontado, tão coerente e clara como a primeira. Não fosse a ansiedade humana, eu não teria por que correr a abri-la, sabendo, já pelo sobrescrito, a doce matéria que na folha se abriria. O pretexto de suas palavras era algum desconcerto com minha resposta, que ela fingia não entender, supondo mesmo que eu houvesse trocado envelopes e remetido a ela o que seria de outrem. Reforçava, ainda, as mesmas palavras pretextuais da carta anterior, solicitando agora uma resposta objetiva e bem endereçada...
Encantou-me tanta malícia. A sensualidade da letra fora levemente reprimida, passando agora um recado anda mais subliminar e fino, que seduziu por completo meus olhos de "expert". A sutil censura alargava o calibre de emoção do desenho todo, que em alguns trechos chegou a me excitar a vista, quase confundindo minha interpretação. Tratava-se, é claro, de uma profissional. Em anos de magistério superior aplicado, aprendi a reconhecer a mestria desses talentos que dissimulam para melhor expor, que deixam de cortar um "t" só pelo torneio a que nos obriga um "l" remissivo, que deixam de virgular para que busquemos a pausa no espaço que se transpôs para a frase seguinte e para que – nesse deslocamento dos olhos - surpreendamos a volubilidade ubíqua do sujeito, critério do traço que conduz todo o desenho.
Tratava-se de uma profissional. Em seu rastro pelo papel passei a divisar seu retrato físico e biográfico, além do evidente retrato moral. Era de meia-altura, clara, olhos verdes, gestos delicados em contraste com a voz decidida. Habitara entre pinheiros, na infância, que tivera que deixar em troca da cidade inevitável, levando-os, porém, nos olhos, e inscrevendo-os no papel, sempre que podia. Era tímida mas enérgica, resoluta mas doce.
Passei horas em resposta. Precisava corresponder àquele nível de talento, valendo-me do que aperfeiçoara em anos e anos de prática e leitura de traços disciplinados. Superei em expressão minha primeira resposta. Buscando ser o mais eficaz possível quanto ao caráter pretextual das palavras, copiei uma receita de canapé de um jornal e um poema concreto de uma revista acadêmica, para não deixar dúvida quanto à ênfase em outras direções a serem buscadas no caminho das letras e sinais, que – diga-se de passagem, e sem modéstia – atingiam ali a excelência da escrituração. Os traços eram moldes que chamavam os olhos dela para que os habitassem, que se preencheriam à medida que seu olhar os acompanhasse com precisão, acrescendo-lhes a massa de luz e sombra premeditadas. Jamais conseguira eu tanta ênfase com o jogo de súbitas maiúsculas, com incisivas reticências e um desnorteante manuseio de barras, com o qual simulava uma citação de versos. Seus olhos espertos recolheriam aquelas confissões no mesmo calor com que eu as produzira.
Dessa vez sua resposta veio rápido. A princípio nem dei por ela, quando apanhei com relutância um envelope datilografado, com aquele ar estúpido e invasivo de mala direta. Lendo atrás o nome da remetente, agora em manuscrito, caí em mim e tive de sentar ali mesmo, no saguão do prédio. Levei enfim o envelope para a minha sala, confuso, desnorteado, cogitando se encontraria na carta algum desdobramento daquele inexplicável insulto datilografado.
Que nada. A pérfida fizera bater-me o coração na porta de fora só para que dentro da casa a surpreendesse mais inteira e nua do que nunca. Era um festim de letras miniaturizadas em diversos calibres de grafite, uma orgia quase explícita de sombreamentos oblongos, uma semitonalidade despudorada em vogais-semifusas. Como não me perturbar com aquela pauta? Pensei em como responder àquele "plus non ultra" da amiga minha, da amante minha, depois que recobrasse o controle das mãos trêmulas.
Dessa resposta, amigos, jamais fui capaz: rendi-me ao seu avassalador talento natural, o maior, que nem mesmo um Aristóteles teria sabido regrar. Já notara eu que um corpo feminino era uma falsa geometria, dessas que acentuam o caráter de promessa e de rascunho quando já são a experiência e a prova definitiva de um caos magistralmente construído. Aquela carta era a nudez completa, indo do traço ao silêncio e do silêncio ao traço, numa caminhada perfeitamente imitativa dos pés em seta, dos cílios úmidos, da nuvem pela janela – quase diria: da tepidez da tarde.
Guardo-a na gaveta, olho-a às vezes. Joguei fora as anteriores, definitivamente superadas por esta: na comparação, aquelas pareciam meros exercícios, que esta totalizou com absoluta perfeição. É a minha consolação suprema. Basta que me assalte o medo do tédio, a desconfiança de que um mito é apenas fumaça num espelho retrovisor, de que o futuro é pouco mais que um exercício para o salto de trampolim – bastam esses avisos para que eu abra a gaveta, me deixe surpreender com o envelope e chegue à epifania máxima daquela letra, que me excita sempre, que me faz viver, que me prova vivo, que é a edição mais sensual do limite amoroso das criaturas."

*Alcides Villaça, "In" TERESA revista de literatura brasileira 8/9 USP/editora 34/imprensa oficial

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Selma Lagerlöf


Conheci Selma Lagerlöf (1858-1940)por acaso, via dois contos magníficos da coleção “Mar de Histórias – antologia do conto mundial” (organizada por Aurélio Buarque e Paulo Rónai e editada pela Nova Fronteira), reproduzidos neste blog em postagens antigas, “O ninho das alvéloas” e “Os dois irmãos”. Nunca antes tinha sequer ouvido falar o nome dessa escritora, que chegou a ganhar o Nobel de literatura em 1909; ninguém das minhas relações, entre as quais inúmeros leitores profissionais, a conhecia; nas livrarias, se havia alguma referência, tratava-se de obra esgotada, ou no original sueco, ou em tradução para outra língua estrangeira. Consegui, por sorte, um exemplar virgem de “O Imperador de Portugal”. Achei também e ganhei algumas obras de sebos: “O livro das lendas”, “A lenda de uma quinta senhorial” e “A viagem maravilhosa de Nils Holgersson através da Suécia"; todos em tradução de Portugal; daqui absolutamente nada, além dos dois contos já mencionados. Recentemente uma amiga muito atenta a tudo de que gosto surpreendeu-me com um exemplar virgem de “A saga de Gosta Berling”, da editora portuguesa Cavalo de Ferro; estou a um terço do final desse romance, que fica a cada página mais saboroso.
Selma Lagerlöf é uma exímia contadora de histórias, desse tipo que imagino ter existido em tempos antigos, uma figura quase sagrada, em torno da qual todo mundo se reunia com solenidade de ritual. Tem uma compaixão genuinamente cristã por seus personagens mais patéticos – os solitários, os loucos, os visionários, os devorados pela paixão, os miseráveis, os proscritos, os pactuários – e suas histórias são com freqüência terríveis, mas o sentido delas é em geral depurador, sem ser edificante (o que seria uma lástima).

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

a vida é boa



acrílica sobre papel panamá, 39x29
a partir de foto de André Zielonka

praticamente pronto

domingo, 19 de dezembro de 2010

""Special" Christmas Table Manner to be Happy..."

[gentilmente cedido pela Sadami, que bloga no seguinte endereço:] http://sadamisgraffiti.blogspot.com/


My motto, "Life is short. Take dessert first," becomes the detailed table manner for a Christmas season. Developed in a way more sophisticated and highly elaborated. Already used among fat cats and proven the powerful effectiveness of this practical table strategy. Thus, highly recommendable for a public use.
(*WARNING: The side effect of this table manner is "Feel earth gravity more and later.")

Anyway, wish you Merry Christmas and a Happy New Year!

1. Avoid carrot sticks. Anyone who puts carrots on a holiday buffet table knows nothing of the holiday spirit. In fact, if you see carrots, leave immediately. Go next door, where they're serving rum balls.

2. Drink as much eggnog as you can. And quickly. It's rare... You cannot find it any other time of year but now. So drink up! Who cares that it has 10,000 calories in every sip? It's not as if you're going to turn into an eggnog-alcoholic or something. It's a treat. Enjoy it. Have one for me. Have two. It's later than you think. It's Christmas!

3. If something comes with gravy, use it. That's the whole point of gravy. Gravy does not stand alone. Pour it on. Make a volcano out of your mashed potatoes. Fill it with gravy. Eat the volcano. Repeat.

4. As for mashed potatoes, always ask if they're made with skim milk or whole milk. If it's skim, pass. Why bother? It's like buying a sports car with an automatic transmission.

5. Do not have a snack before going to a party in an effort to control your eating. The whole point of going to a Holiday party is to eat other people's food for free. Lots of it. Hello?

6. Under no circumstances should you exercise between now and New Year's. You can do that in January when you have nothing else to do. This is the time for long naps, which you'll need after circling the buffet table while carrying a 10-pound plate of food and that vat of eggnog.

7. If you come across something really good at a buffet table, like frosted Christmas cookies in the shape and size of Santa, position yourself near them and don't budge. Have as many as you can before becoming the center of attention. They're like a beautiful pair of shoes. If you leave them behind, you're never going to see them again.



8. Same for pies. Apple, Pumpkin, Mincemeat. Have a slice of each. Or if you don't like mincemeat, have two apples and one pumpkin. Always have three. When else do you get to have more than one dessert? Labor Day?

9. Did someone mention fruitcake? Granted, it's loaded with the mandatory celebratory calories, but avoid it at all cost. I mean, have some standards.

10. One final tip: If you don't feel terrible when you leave the party or get up from the table, you haven't been paying attention. Re-read tips; start over, but hurry, January is just around the corner. Remember this motto to live by:
"Life should NOT be a journey to the grave with the intention of arriving safely in an attractive and well preserved body, but rather to skid in sideways, chocolate and wine in one hand, body thoroughly used up, totally worn out and screaming "WOO HOO what a ride!"
Have a great holiday season!!




In addition, this table manner is originally sent by my dear friend Ms Teri Casper(what a lovely name! "Casper"!) With her kind permission, I could upload this. Thank you, Teri.
Friends, have biiiiig fat dinner and enjoy parties!

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

efeito borboleta


O menino João Lopes fica deveras impressionado com a idéia de que ele não existiria se este pequeno livro não tivesse sido publicado.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

da inutilidade dos conselhos paternos

Quem tem filhos crescidos mas ainda não propriamente abalroados pela experiência sabe o quanto são inúteis os conselhos, as advertências sobre as dificuldades da vida em geral e dos casamentos em particular, principalmente quando há crianças envolvidas. Os jovens nossos filhos, assim como nós quando jovens, e antes disso, nossos pais, jovens, pensam que as canseiras e tribulações em que os adultos insistem tanto em repisar só se deram por ingenuidade, por falta de descortino, por estreiteza de capacidade de análise, estando eles, portanto, os moços da vez, sensatos e perspicazes como ninguém nunca dantes, livres de tais perigos. Pois o jovem em geral pensa que antes de sua própria geração o mundo vivia ainda meio nas trevas, e por isso não é de espantar que se periclitasse tanto.
Minha tese sobre essa impossibilidade de transmitir aos moços a sabedoria de nossa experiência é de que isto se dá por um dos tantos ardis da natureza para assegurar a perpetuação das formas vivas, da nossa, em particular. Se os jovens fossem capazes de se impressionar com o relato das vicissitudes que já vivemos, das armadilhas em que nos deixamos pegar ou simplesmente do prosaísmo do corriqueiro da vida, creio que a humanidade correria algum perigo de se extinguir; mas a natureza garante contra isso que as palavras dos mais velhos entrem por um e saiam por outro dos ouvidos dos moços. E assim, a cada geração as mesmas trapalhadas sucedem.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Mais Bandeira


EPÍGRAFE [do livro CARNAVAL]

Ela entrou com embaraço, tentou sorrir, e perguntou tristemente
- se eu a reconhecia?

O aspecto carnavalesco lhe vinha menos do frangalho de fantasia que do seu ar de extrema penúria. Fez por parecer alegre. Mas o sorriso se lhe transmudou em ricto amargo. E os olhos ficaram baços, como duas poças de água suja... Então, para cortar o soluço que adivinhei subindo de sua garganta, puxei-a para ao pé de mim e, com doçura:

- Tu és a minha esperança de felicidade e cada dia que passa eu te quero mais, com perdida volúpia, com desesperação e angústia...


Manuel Bandeira "In" POESIA COMPLETA E PROSA, Ed. Nova Aguilar S.A., Rio, 1985