segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

5 poemas de Alcides Villaça

"Cruzamento

A moça muito antiga,
a prematura morta,
é uma criança inquieta
que ninguém sabe ninar.
Menor a cada dia,
a cada hora mais menina,
a morta muito antiga
toma a pista contrária
e vem ao nosso encontro.
Quando passar por nós
sequer terá nascido.
Será um capricho nosso,
imagem que desenhamos,
saudade de viver.


Dobradura

Pareceu-me cicatriz do teu rosto
a marca no papel fotográfico.
Pareceu-me especial efeito
a luz (tão viva) dos velhos olhos teus.
Pareceu-me, enfim, amarga essa foto, 
como boneca dormindo de mentira
qual menina morta de verdade.

Assim as fotos, espelhos de alma própria:
parece que são tudo o que olham
e se enganam nas verdades, e acertam nas mentiras
- porque refletem nos desejos outra luz,
e em outras luzes o mesmo desejo.
Também ocorre que nada mais reflitam
quando se guardam num cristal fechados
nas pálpebras do tempo


Viagem

imagine
se sobre a casca do ovo pequenino
tombasse uma gota de limão corrosivo
e mal nascido quanto mal desperto
o filhotinho tivesse que voar
contra cortantes facas amarelas

como haveria ele de entender
a beleza sem parar das feridas?
teria tempo para sentir
a falta das penas sonhadas?
saberia como cantar
o brilho de cada susto de morrer?

(Não sei te explicar
essa luz que fia e desconcerta
meus melhores dias)


Eurídice

Eurídice caminha pelo palco descalça mais que nua:
os pés que a levam leve sabem todo o alvor.
Desliza como dança, e deita os olhos no caminho.
Cobre de frescor o arrepio dos regatos.
Eurídice, para além de todo inferno e céu
Atira Orfeu para os bichos da floresta,
Como a onça, como o tigre, como eu.


Dádiva

As maldades mais fundas do meu poço emergem
                                                       [só para mim
Imediatamente viram flores. Ofereço o buquê
                                                        [a amigos
que o tomam no colo e reconhecem pétala a pétala 
a graça de tantas corolas. E dizem: que bonito!
Mas logo baixamos o olhar, como quem do chão
                                                                   [ouve
o ruído das águas turvas, inquietando-se."


VILLAÇA, Alcides. ONDAS CURTAS, Cosac Naify, São Paulo, 2014.