domingo, 30 de outubro de 2022

"Amar"


"Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer, amar e malamar,

amar, desamar, amar?,

sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,

sozinho, em rotação universal, senão

rodar também, e amar?

amar o que o mar traz à praia,

o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,

é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,

o que é entrega ou adoração expectante,

e amar o inóspito, o áspero,

um vaso sem flor, um chão de ferro,

e o peito inerte, e a rua vista em sonho,

e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,

e na secura nossa, amar a água implícita, 

e o beijo tácito, e a sede infinita."


Carlos Drummond de Andrade


sábado, 14 de maio de 2022

"a guerra não tem rosto de mulher"


 "Antes, achava que sobreviver ao sofrimento deixava uma pessoa mais livre, que ela pertencia então apenas a si mesma. Que sua própria memória a defendia. Naquele momento estava descobrindo que não, nem sempre. Muitas vezes esse conhecimento, e até um conhecimento superior (que não acontece na vida costumeira), existe separadamente, como uma reserva intangível ou como poeira de ouro em uma mina de várias camadas. É preciso passar muito tempo limpando uma rocha vazia, revirar juntos o vazio do cotidiano, para enfim uma coisa brilhar! Oferecer-nos um presente!"

Svetlana Aleksiévitch, (tradução do russo por Cecília Rosas) em "a guerra não tem rosto de mulher" (pg. 120)

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

regresso ao pó

Em seus últimos dias não mais se sentia confortável nas maciezas que tinha pela casa; só queria estar  na terra, como se tivesse pressa de ser outra vez mineral. As orelhinhas ficavam frias, então ela aceitava que lhe amparássemos a cabeça com a almofada preferida.