segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Bobeei

A quem interessar possa, minha última postagem, referente à ilustração abaixo, saiu com data de 26/11 (porque estava salva no rascunho, com essa data). Portanto, quem quiser ler o texto, queira por favor "rolar" até lá.

domingo, 29 de novembro de 2009

Vizinhos ilustres



Um casal de sabiás da mata começou hoje a preparar um ninho dentro do meu ateliê de pintura, que é completamente aberto em um de seus lados. O canto desse pássaro (só o macho canta)é belíssimo, com várias melodias diferentes, e ocorre preferencialmente nos crepúsculos (o da manhã e o da tarde).Por estes dias, imagino que por causa da intensa atividade de acasalamento, é possível também ouví-lo ao longo do dia. Espero que a rotina de nossa casa não os assuste.
O indivíduo que aparece na foto costuma ficar de vigia enquanto o outro trabalha no ninho.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Uma verdadeira dama, ainda que não resistisse a rolar na carniça

A Olívia apareceu misteriosamente em nossa vida em 1990; imagino que fosse a última de uma ninhada de filhotes, pois já era de tamanho adulto quando chegou, e que, sem conseguir quem a adotasse, tenha sido abandonada à própria sorte em nossa rua. Tirando meu pai e minha prima Têca, foi, de longe, a criatura mais elegante e delicada que conheci. Na presença dela tive sempre a sensação de estar diante de um espírito depurado, de um ser superior a quem eu devesse reverenciar.
Como em geral acontece com os cachorros, apaixonou-se perdidamente por meu marido. De manhã, se ele trabalhava em casa, acompanhava-o até o escritório e ficava por lá o tempo que ele ficasse. Se ele estava fora, e era, ao final do dia, hora de chegar, ela postava-se no meio da rua com as pernas dianteiras cruzadas, as almofadinhas das patas contra o asfalto, o focinho firmemente apontado para diante e as orelhas em posição de parabólicas; quando um desses sensores anunciava a presença dele na esquina, ela atirava-se em desabalada carreira para encontrá-lo, festejá-lo e percorrer com ele o restante do trajeto até nossa casa, exibindo-o e exibindo-se aos outros cachorros da rua, que, presos, latiam furiosamente inconformados com a dupla provocação: a de ela andar solta e perto do dono.
Entretanto, quando ela tinha filhotes a presença dele deixava-a sempre ligeiramente estressada, coisa, aliás, que não era de espantar, porque ele era tomado por uma espécie de “amor de mula”: volta e meia lá estava ele a cobrir os cãezinhos de beijos, a mordiscar orelhinhas e rabinhos. Já para as últimas ninhadas ela conseguiu retirar uns tijolos de uma churrasqueira velha no fundo do quintal e fez lá dentro dela uma toca praticamente inacessível. Nos primeiros dias ele se continha, respeitava o arranjo; mas, estando a criançada mais taludinha, e a mãe saindo da toca para cuidar um pouco de si mesma, ele dava um jeito de alcançar algum bichinho e trazê-lo para fora. Quando nessas ocasiões ela me buscava pela casa, e com o olhar e gestos aflitos me pedia que a acompanhasse, eu entendia que devia segui-la até o local e passar uma descompostura em meu marido para que ele deixasse em paz os nenéns, após o que ela retomava o seu posto, até o próximo episódio.
Com os meus filhotes ela era extremamente cuidadosa. Uma das lembranças mais delicadas que tenho da Olívia é a dela tentando pegar um pedaço minúsculo de biscoito bem babado que meu filho neném lhe oferecia, sem tocar nos dedinhos, mas sem desistir, pois além de tudo ela era incapaz de recusar qualquer coisa que lhe oferecessem, nem que fosse para ir jogar no quintal, como acontecia quando algum desavisado lhe oferecia uma salsicha, por exemplo.
Infelizmente não tenho uma boa foto dela para mostrar aqui. Mas ela era uma viralata comum, do mesmo tamanho, da mesma cor e muito muito parecida com a princesa Karina, que tem aparecido neste blog. O olhar era um pouco mais doce.

Auto-retrato

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Para quem tem pirralhos



Ainda que com toda a tecnologia de entretenimento moderna à mão, meus filhos, os dois primeiros pelo menos, preferiam a qualquer coisa que eu lhes contasse uma história, de preferência inventada por mim mesma (meu terceiro filho já nasceu preferindo contar ele mesmo as histórias). Eu nunca tive muita imaginação para isso mas fazia o possível, e uma dessas histórias, por conta de não sei que ingredientes, chegou a fazer grande sucesso com os meninos, até já bem crescidos: bastava eu ameaçar contá-la para que deixassem imediatamente o que estivessem fazendo para ouví-la.
Reproduzo-a abaixo, para a eventualidade de alguém com pequenos querer aproveitá-la, com a recomendação de que deve ser interpretada dramaticamente.



O TIO PORCÃO
(para o porquinho mais velho)


Era uma vez três porquinhos que moravam numa floresta.

Um dia o porquinho mais velho disse:

_ Que tal se amanhã a gente fosse visitar o tio Porcão?
_ Oba! Oba! Eu quero, eu quero, eu adoro o tio Porcão! – gritaram os irmãozinhos.
_ Então vamos preparar nossas mochilas e dormir bem cedo hoje, porque a casa do tio Porcão fica muito, muito longe, lá do outro lado da floresta, e a gente vai ter que levantar amanhã de madrugada, para chegar na casa do tio antes de anoitecer.

Então, na manhã seguinte, bem cedinho, antes mesmo do sol nascer, ainda no escuro, eles levantaram, tomaram seu café da manhã, prepararam um lanche gostoso para levar, subiram nas suas bicicletas voadoras, e zuuum, foram voando por cima da floresta, para a casa do tio Porcão.

Acontece que naquela floresta morava também um lobo muito, muito mau, que vivia querendo comer porquinho assado, porquinho frito, porquinho cozido, porquinho de qualquer jeito. E eis que lá estava o lobo andando à toa pela floresta, quando de repente olha para cima e vê lá no céu os três porquinhos nas suas bicicletas voadoras.

_ Olha só o que eu vejo, gente! Aonde será que vão aqueles três? Ora, pra onde quer que eles estejam indo, uma hora vão ter que descer, e aí eu vou estar embaixo esperando por eles. É hoje que eu saboreio uns torresmos deliciosos.

E assim foi. Enquanto os porquinhos voavam lá em cima, o lobo os acompanhava pelo chão, cuidando para não ser visto. Ao meio dia os porquinhos estavam já com muita fome e resolveram parar para almoçar. Mas, como eles não eram bobos nem nada, e já desconfiavam que o lobo pudesse tê-los seguido, pousaram suas bibicletas na copa de uma árvore muito alta, muito grande, e trataram de se arranjar ali para comer. Abriram sua toalha xadrez especial de piquenique sobre a ramagem da árvore, espalharam ali as guloseimas que haviam trazido e começaram a se deliciar: tinha bolo de milho, panqueca de milho, pudim de milho, farofa de milho, pastel de milho, suco de milho, sorvete de milho, e também milho.

Lá embaixo, no pé da árvore, quietinho para não ser visto pelos porquinhos, estava o lobo, com tanta fome, tanta fome, que chegava a sonhar com uma bela espiga de milho. E olha que ele não gostava nem um pouco de milho. Comida gostosa para o lobo era carne, carne, carne. Mas, enquanto ele não caçava a carne... “bem que esses porquinhos podiam deixar cair alguma coisa pra eu fazer uma boquinha”, pensou ele.

Porém, os porquinhos não deixaram cair nada, nem uma migalhazinha de bolo de milho.

Depois que os três se fartaram de comer, o mais velho falou:

-Gente, quem quiser fazer xixi, que faça agora, porque depois a gente só vai ao banheiro na casa do tio Porcão. Então, lá de cima da árvore, os três fizeram um xixi comprido, sem saber que lá embaixo estava o lobo. E o coitado do lobo, que não queria nem se mexer para não ser visto, acabou todo encharcado de xixi:
-Ai, ai, o que a gente não faz por um leitãozinho à pururuca – pensou ele, todo sem graça.

Então os porquinhos subiram em suas bicicletas voadoras e foram voando outra vez por cima da floresta. Muito tempo depois, quando já estava para anoitecer, eles avistaram lá longe uma fumacinha, e o mais velho disse:

-Vejam, vejam! É a chaminé da casa do tio Porcão! Vamos, vamos, apressem a pedalada, que daqui a pouco a gente chega!

Dito e feito. Justo quando anoitecia, os três porquinhos pousaram suas bicicletas na porta da casa do tio Porcão e bateram: toc-toc-toc. O tio, que estava na cozinha preparando uma bela sopa de repolho com pãezinhos de milho para o jantar, pensou:

-Ora, ora, quem seria a uma hora dessas? - e foi abrir a porta. - Meus sobrinhos queridos! São vocês mesmos! Que alegria! Que coisa boa! Que bom que vocês vieram! Entrem, entrem, venham tomar a sopa deliciosa com pãezinhos de milho que eu acabei de fazer.

Então os porquinhos entraram, contaram ao tio as novidades e se empanturraram de sopa de repolho com pãezinhos de milho. Enquanto isso, lá fora, no escuro e no frio, bem escondido atrás de uma pedra, o lobo pensava com seus botões: “nossa, que porcão enorme e assustador! Não vai ser nada fácil eu pegar aqueles deliciosos porquinhos com esse tio por perto!”

Lá dentro, depois que os porquinhos jantaram e ajudaram a lavar os pratos, o tio Porcão disse:

_ Meninos, vocês vieram em muito boa hora. Sabem o que nós vamos fazer amanhã? Uma bela pescaria. Já para a cama, que amanhã a gente sai bem cedo.
_ Oba! Oba! – gritaram os porquinhos, e foram correndo dormir, para a hora da pescaria chegar mais depressa.

Na manhãzinha seguinte, assim que o sol apontou no horizonte, saíram os cinco: o tio Porcão na frente, com um enorme facão ia abrindo o caminho pela floresta, os porquinhos iam saltitando atrás do tio e, atrás dos porquinhos, bem atrás, escondido, ia o lobo, só esperando uma hora boa para dar o bote.

Quando estavam no meio da viajem, o tio Porcão, que ia muito concentrado em limpar o caminho, notou que já há alguns minutos não ouvia atrás de si a algazarra dos sobrinhos, virou-se e... cadê os três porquinhos?

_ Onde é que se meteram aqueles pirralhos? - Pensou o tio – e foi voltando, bem quieto, para ver o que tinha acontecido. E eis que de repente ele vê o lobo, já com os três porquinhos amordaçados e amarrados, pronto para levá-los embora.

O tio Porcão, que era mesmo um porco enorme e assustador, e sabia roncar como só um porcão sabe, chegou pé ante pé por trás do lobo e roncou o seu ronco especial de porcão enorme, assustador e bravo. O lobo levou um susto tão grande que caiu para trás com os olhos arregalados e os pelos eriçados. O tio, muito rápido, desamarrou os porquinhos, aproveitou que o lobo estava sem se mexer de susto, e amarrou-o bem amarrado no tronco de uma árvore.

_ Seu lobo safado! – o tio disse – você vai ficar aí o dia inteiro para aprender a não se meter com os meus sobrinhos.

Pois lá ficou o lobo, bem amarrado, enquanto os quatro iam felizes para a pescaria. E foi mesmo uma pescaria inesquecível. Era tanto peixe, e tão grandes, que às vezes o tio tinha que ajudar os sobrinhos a puxá-los para fora d’água. Na hora do almoço eles fizeram fogo no chão e assaram um delicioso peixão.

No final do dia, quando eles estavam voltando para casa, carregados de peixes, encontraram o lobo ainda amarrado na árvore, quase branco de fome. O tio Porcão, que era bravo mas não era mau, desamarrou o lobo, pegou um belo peixe de dentro do saco de peixes e disse:

_ Toma aqui esse peixe, seu lobo safado, e nunca mais se atreva a mexer com meus sobrinhos.

O lobo, mais do que depressa, agarrou o peixe e sai correndo com o rabo entre as pernas: “cain, cain, cain”.

À noite, quando chegaram na casa do tio, eles ajudaram a guardar os peixes, jantaram e foram dormir felizes, imaginando a coisa divertida que o tio Porcão arranjaria para fazerem no dia seguinte.

Olha só que prima mais linda!

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Do caráter das mulheres

Insisto sempre com meus filhos que é possível ter um primeiro e importante indicador do caráter de uma mulher simplesmente fotografando-a. E fotografando-a de modo que ela se saiba fotografada, e que possa, se quiser, compor-se antes do clique: arranjar os cabelos, acertar as sobrancelhas, ajeitar a gola, aprumar as costas, essas coisas que nós mulheres fazemos instintivamente na presença de uma câmera. Nada disso importa, na verdade. O que importa é que ela não seja apanhada de surpresa; que saiba, repito, saiba que vai ser fotografada. Se para a foto ela entortar para um lado a cabecinha, fazendo cara de meiga, é melhor sair de fininho, pois se trata de uma jararaca. Só as jararacas fazem cara de meiga para a foto.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Vô


Este é meu avô materno, morto muito tempo antes de eu nascer. Era dado a visões e presságios. Sabia uma simpatia infalível para eliminar verrugas. Minha mãe contava que certa vez pediu que lhe ensinasse a reza, para que também ela pudesse curar as ditas cujas; ele lhe disse que não poderia fazer isso, que se o fizesse perderia o poder da simpatia, mas que em seu leito de morte lhe ensinaria, se ela pedisse. É claro que no momento da morte do pai mais que adorado minha mãe nem se lembraria disso, de modo que a simpatia foi com ele para o outro mundo. Não demorou muito para se descobrir que ele, morto, continuava a curar verrugas. Era só pedir a nhô Veiga. E ainda é, e nem precisa ser parente; a qualquer um que lhe peça ele atende.
O retrato de meu avô eu pintei a partir de uma foto que era de minha mãe e tenho em minha cabeceira. Na foto ele está com outro terno, escuro, discreto. Mas lá no céu eu imagino que goste de andar assim.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

"Quatro pegadas

(ao Zé Miguel)

por um amigo não saberia morrer
mas saberia viver
por um amigo

para que sua palavra morta
escalasse ainda o gosto
de minha língua

e por ele degustasse
a sede de nossas
águas

e permitisse pela pupila
certos signos
precisos

e quando prontos ao silêncio
todos dessem
pelo seu

e entre os convivas
deixasse
quatro pegadas"

Alcides Villaça, in "O tempo e outros remorsos", Ed. Ática, São Paulo, 1975

domingo, 15 de novembro de 2009

"Tarde de maio [o mais bonito]

Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converte-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos os ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, porque melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens."

Carlos Drummond de Andrade, in "Obra Completa", Com. José Aguilar Ed., Rio de Janeiro, 1967.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Notas de uma cozinheira para um filósofo glutão e preguiçoso 2



(...continuação)

Anos depois, já em Curitiba, em meu próprio apartamento numa das “torres” do Cristo Rei com linda vista da cidade para oeste, podia eu mesma cozinhar meu feijão quando quisesse, coisa que raramente fazia, pois passava o dia inteiro fora de casa.
Eu e alguns amigos de trabalho almoçávamos por ali mesmo, nas imediações da Praça Osório, onde era possível encontrar, em mais de um lugar, comida honesta, barata e até bem caseira, como aliás se encontra no centro de qualquer cidade. Às vezes calhava de irmos à confeitaria Schaffer (que absurdo os curitibanos deixarem acabar essa confeitaria), que servia uns pratos executivos razoaveizinhos. Na confeitaria Schaffer não havia feijão, ou melhor, havia, mas bem escondidinho lá na cozinha, para os funcionários da casa e para clientes muito especiais. Para os mortais comuns “não, não, só temos o que está no cardápio, não trabalhamos com feijão”.
Ocorre que entre meus amigos, alguns até bem apessoados, havia um com uma aparência peculiar: digamos que se ele fosse um cavalo seria um desses garanhões altos e magníficos, de músculos desenhados sem exagero e pelo sedoso, dentes sadios e trote perfeito. Na verdade era só um menino doce, mas entre mulheres, principalmente se aparecesse de surpresa, provocava sempre uma certa instabilidade atmosférica; se fossem muitas, um dilúvio. Pois quando íamos com esse amigo à confeitaria Schaffer o melhor bife era para ele, sem sombra de dúvida, mas todos comíamos feijão.
(continua...)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

E por falar em Drummond

"Campo de Flores

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penunbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.

Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz o seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde."

Carlos Drummond de Andrade, in "Obra Completa", Comp. José Aguilar Ed., Rio de Janeiro, 1967.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Orides Fontela

Os que conheceram de perto a poeta Orides Fontela (1940-1998) dizem que ela era uma pessoa intratável. Eu tive uma pequena amostra disso durante o lançamento de seu livro "Trevo", em 1988, na livraria Duas Cidades: embora já conhecesse e admirasse sua poesia, estava eu lá por acaso, pois não costumo ir a esses eventos; mas, já que estava lá, resolvi pedir-lhe o autógrafo em meu exemplar de seu livro (e ela estava lá justamente para isso), logo eu, que nem sou chegada a esses fetichismos. Como ela estivesse conversando com alguém, com certeza um amigo para quem acabara de autografar, postei-me a uma distância respeitosa da mesa de autógrafos, aguardando minha vez. Depois de me cozinhar por uns dez minutos nessa espera, ela finalmente me olha com desprezo, dizendo para o amigo: "iih, lá vem burocracia...". Eu, que na época era mais tolerante e já conhecia sua fama de louca, só achei engraçado. Se fosse hoje teria acertado o livro na cabeça dela.

Para mim, sua obra representa o mais puro FEMININO (o de verdade, não aquele para os rapazes babarem), que se expressa pela limpeza, pela economia, por só o absolutamente essencial, pela ausência absoluta de idealismo.
A seguir, alguns exemplos.


INICIAÇÃO

Se vens a uma terra estranha
curva-te

se este lugar é esquisito
curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te

- és infinitamente mais estranho.


HERANÇA

Da avó materna:
uma toalha (de batismo).

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.


KANT(RELIDO)

Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.


REBECA

A moça de cântaro e
seu gesto essencial: dar água


PIRÂMIDE

Ei-la
dor de milhares força
de humanidade
anônima

(do faraó
nem cinzas).


NOTURNO

Os que nascem de noite
e, entre ossos, vigiam
o fogo
os que olham os astros
e, oprimidos, respiram
em cavernas

os que vão viver apesar
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
acendem

os que não sonham, os que nascem
de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra.


AS COISAS SELVAGENS

- a firme montanha
o mar indomável
o ardente
silêncio -

em tudo pulsa e penetra
o clamor
do indomesticável destino.


CORUJA

Vôo onde ninguém mais - vivo em luz
mínima
ouço o mínimo arfar - farejo o
sangue
e capturo
a presa
em pleno escuro.


BODAS DE CANÁ

I
Da pura água
criar o vinho
do puro tempo extrair
o verbo.

II
Milagre (anti-
milagre)
era tornar em água
o vinho
vivo.

III
A água embriaga
mas para além do humano: no amor
simples.

IV
Para os anjos a
água. Para nós
o vinho encarnado
sempre.


DOM QUIXOTE

És filho do desejo e do espírito
e(como a carne é impureza) a loucura
não te salva de ser, e cais

Triste Figura mesmo
se o delírio te eleva
à potência do abismo

Triste Figura mesmo
na alta planície em que
eternizado, morres

herdeiro do desejo e do espírito.


Orides Fontela, in "Trevo", Ed. Duas cidades, São Paulo, 1988

"A aranha

Não importa a idade, a aranha
em algum momento
se cansa e não quer mais
atear suas lentas cordas no espaço
infinito. O mundo lhe parece
veloz e estranho, e raramente ela deseja
ser veloz. Está liquidada, e segue em linha
reta, sem olhar para os lados,
porque os movimentos circulares a entontecem;
além de duvidar da suposta liberdade
que a loucura de caminhar em labirintos elásticos
pudesse lhe dar: crê que o louco sabe que é louco.
Enfim, ela quer um ritmo justo.
Eufórica, esse ritmo (que ela apenas intui)
se transforma, e de olhos fechados, escura e fosca,
ela sonha ser - mas isso seria a alegria! -
uma enguia num mar branco,
um límpido escaravelho."

Fabrício Corsaletti in estudos para o seu corpo, Companhia das Letras, São Paulo, 2007

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Moça de branco

Entre meus quatro e sete anos de idade morei na vila de operários de uma serraria no interior do Paraná, da qual meu pai era gerente. Enquanto ele se aplicava ao seu ofício e minha mãe se esfalfava no armazém que mantinha ao lado de nossa casa, eu, única criança em casa, já que meus dois irmãos pouco maiores viviam num internato na cidade, passava os dias vagando daqui para ali, acompanhada de meu fiel escudeiro, um cão policial chamado Duque. Havia duas meninas vizinhas mais ou menos da minha idade com quem eu brincava sempre, no quintal delas ou alhures, no mato; havia minha tia Helena e minha prima Teca, cujas casas eu freqüentava todos os dias, e havia o resto dos moradores da vila, que eu visitava quando me dava na telha.
Não sei se meus pais consideravam bem os perigos a que me expunha, ainda que na companhia de Duque: a solidão e os bichos do mato, o olho d’água, o rio mais ao longe, a possibilidade de encontro com algum pedófilo, de que tenho vaga lembrança, ou um acidente qualquer que, aliás, acabaria por acontecer. O fato é que não me lembro de que me proibissem nada, exceto uma coisa. Não foi propriamente uma proibição cabal, mas uma forte recomendação: a de que evitasse voltar a freqüentar a casa de uma certa moça. Por quê? Porque ela não prestava, era meio ordinária. Devo ter intuído que não entenderia ou não deveria entender o significado dessas palavras, de modo que assenti, sem pedir nem querer maior explicação. Ocorre que por ocasião de minha última visita a moça gentil tinha me dito, ao se despedir, que voltasse em tal dia, que me esperaria com uma surpresa.
Ora, meus pais, ainda que me amassem, eram, cada um a seu modo, pessoas bem duras, severas, sem nada desse derramamento afetuoso que tem pelas crianças quem gosta especialmente delas, ou quem aprende a gostar, quando tem filhos. Assim, eu estranhava muito se alguém, certamente enganado, demonstrasse esse tipo de afetuosidade comigo, e pensava que devia aproveitar ao máximo enquanto o engano não se desfizesse. Daí que, no dia aprazado, lá estava eu na casinha de madeira ainda crua e cheirosa, de um castanho muito avermelhado, como os longos cabelos de minha amiga. Lembro-me de ter pensado, quando ela suspendeu o alvo guardanapo para me mostrar o bolo que preparara especialmente para me esperar, que o que quer que significasse “não prestar ou ser ordinária”, isso não devia fazer a menor diferença na ordem do mundo.

sábado, 7 de novembro de 2009

Especialmente para Zazá

O conto "Branca", fictício, eu o construí a partir do relato de meu pai sobre um episódio engraçado ocorrido em sua pequena cidade natal. Ao conceber a história, por alguma razão que um psicanalista adoraria explorar, apropriei-me de alguns nomes de minha família, de frases ouvidas aqui e ali, inclusive uma de um dos meus filhos quando bem pequenininho, carregada de poesia, e fiz alusão a acontecimentos verídicos, como a morte de minha avó paterna durante um temporal. Apropriei-me por fim da voz amada de um narrador amado, meu tio Darci, que tinha um jeito delicioso de contar um causo. Tive desde o começo inexplicável carinho pela personagem "Nininha"; mais tarde consegui identificar, no meu "baú de lembranças insuportáveis", a origem desse carinho, a pessoa real a quem a personagem remete, pessoa que aparecerá numa breve crônica a ser postada aqui futuramente.
Dois amigos acusaram-me o "tom e o clima roseanos" dessa história, coisa que eu, inocentemente, não tinha notado. Depois que me falaram ficou mais do que evidente que é um conto totalmente inaproveitável, ainda que eu trabalhe muito nele, inclusive porque o argumento chega a ser muito parecido mesmo com o de um conto de Guimarães Rosa, "Desenredo", que, juro de pés juntos, eu não conhecia quando escrevi o meu.
Todo este palavrório é para me desculpar por trazer mais uma vez a público esta história, que infelizmente chegou a ser publicada numa revista de literatura por um amigo tendencioso, antes que os outros dois me apontassem o defeito grave.
É que é para agradar minha prima Zaclis, que adora um causo, e certamente vai gostar deste. Os outros que me desculpem o mau jeito.


Branca

O Juca me contou. Aconteceu lá no Ipiranga, faz muito tempo.
O Emílio era um sujeito alegre e bom, todo mundo gostava dele. Pediam-lhe opinião, conselhos. Tinha umas idéias que ninguém mais tinha, e mesmo quando dizia o comum, o comum dito por ele era diferente, clareava o claro, consolava o consolável. Se era caso de muito sofrimento ele sofria junto, ajudava a sofrer: "a vida é assim, compadre, é bonita, e é triste; às vezes é tão triste que não tem o que se faça, é sentar-se por aí num toco e chorar".
Já se disse que o Emílio era alegre. Era. Mas quando falava assim, sentido, não falava à toa. Tinha uma vez sido golpeado pela vida, a dor foi muita, quase ele não sobreviveu. Achavam que era dessa dor que ele tirava a sabedoria estúrdia. Deu-se num meado de agosto, quando os ipês parecem absurdos de tão bonitos. O Emílio vivia com a primeira mulher e uma filha de dois para três anos, na mesma casa em que viveu depois com a Nininha, lá para os lados do Avencal. Saíram uma manhã bem cedo, ele para a serraria, a mulher com a filha para a casa de nhá Dina, mãe dele, ajudar a sogra numas tarefas de costura. Mal ele tinha pegado no serviço quando viu o dia escurecer de repente e o vento furioso na copa das árvores. Em vinte minutos relampeou e trovejou, as nuvens desabaram todas, e o sol apareceu de novo no céu limpo. Vieram avisar. Quando chegou na casa da mãe não tinha mais a casa, o que viu foi o mundo forrado de amarelo, o ipê imenso tombado pela raiz. E a mãe, a mulher e a filha, pálidas e imóveis em leito de lama e flores. Nenhuma sobrou que o consolasse das outras duas.
O Emílio desceu aos infernos. Ainda teve forças para as velar o resto daquele dia e a noite inteira; de manhãzinha o cortejo saiu, e ele foi se revezando em carregar um trecho cada uma delas. Jogou seus três punhados de terra e três vezes disse "a terra lhe seja leve". Depois não disse mais nada. Ficou esquisito, meio aparvalhado.
Nhá Mira o levou para casa dela, era sua madrinha de batismo. Madrinha naquele tempo era diferente, em tudo tinha que ser a mãe na falta da mãe, mas não foi por obrigação que cuidou dele. Gostava dele, como todos, gostava porém de um jeito que ninguém mais podia gostar. Quando o Emílio nasceu nhá Dina ficou muito fraca, daí que o menino passava muito tempo junto da madrinha, aproveitando o leite farto do Juca, nascido no mesmo tempo. Por isso o coração de nhá Mira havia de ver o afilhado sempre do mesmo jeito: uma coisinha de nada agarrada em seu peito, olhinhos muito abertos pregados nos seus.
Pois nem os cuidados dela adiantaram. O Emílio não comia, não andava, não falava, parece que nem mesmo entendia o que falavam com ele. Em um mês ficou em pele e osso. Quando o médico disse que precisavam levar para Ponta Grossa, internar no Franco da Rocha, nhá Mira desesperou. Podiam então pedir que ela largasse o filho num hospício?
- É hospital de todo tipo de doença nervosa. A nhá Mira sossegue, tenho por lá muita gente conhecida, hão de cuidar dele como se parente meu fosse. Garanto. Lhe custa, eu sei, mas se não for assim é questão de dias e ele morre.
A madrinha consentiu, varada de dor. E varada de dor ela passou oito meses, que foi o tempo que levaram para trazer o Emílio do fundo do inferno. Enfim ele veio, abatido, encovado, mas era ainda o mesmo Emílio alegre e bom. Alguma coisa nele tinha se modificado, é verdade. Acaso alguém passa por esses abismos da vida e fica igual ao que era antes? Não fica. Pois o que mudou no Emílio foi que tudo o que ele já era se acentuava. Era bom, ficou bom demais; era alegre, sabia agora de uma alegria escondida nas coisas, onde ninguém suspeitava.
Por vários meses esteve ainda muito magro, muito pálido. Nhá Mira se desdobrava em pudins e garrafadas milagrosas, ansiosa por fazê-lo engordar um pouquinho que fosse. Ele gostava de brincar com a aflição dela; tomava o rosto da velha nas mãos e dizia: "a madrinha deixe estar, que daqui a cem anos lhe garanto que estou no peso certo". Brincava, mas ia devorando doces e poções da madrinha, ou porque não gostasse de a ver aflita, ou porque também tivesse pressa de se ver inteiro de novo. Cuidava-se. Uma vez por mês ele voltava para uma consulta no Franco da Rocha, até que um dia os médicos lhe disseram que estava bom de todo e pronto para outra. Dessa vez ele veio com a novidade: que ia se casar.
Nhá Mira primeiro gostou da idéia de o ver casado, tomasse outra vez o rumo da vida, e logo, que a vida é curta; depois desgostou, quando soube com quem. A moça ela conhecia, era Nina de Tal, filha de um juiz de direito, gente de posses lá em Ponta Grossa. Coincidiu de os dois se conhecerem no hospital, que lá a moça esteve uns tempos internada, para tratamento dos nervos. Fizeram logo amizade, viram-se outras vezes, quando ele ia a Ponta Grossa para as consultas. Acabaram apaixonados, a família dela não se opunha, era natural que se casassem.
Nhá Mira não era dada a romantismos. Era mulher, e vivida, tinha aprendido bem a economia da vida. Tudo ela pensava e pesava, quase não havia o que escapasse de seus noves-fora; chegava a parecer impiedosa, às vezes. Que a Nininha não fosse para o bico do Emílio, isso é o que ela devia estar ponderando. Está certo que ele era moço bonito, vistoso, e amável, compreendia-se que muita mulher se enamorasse dele. Também era sério, trabalhador, mecânico de confiança do alemão dono da serraria, emprego garantido. De modo que podia dar vida digna à mulher, mas vida simples, sem o fausto e as facilidades a que essa Nina estava acostumada. Passado o fogo da lua de mel, a moça na certa se desencantava, fazia sofrer o marido. Ainda mais, sendo moça nervosa... Admirava que a família dela consentisse. Devia ser esse o assunto da conversa reservada que a madrinha teve com o Emílio, que de verdade mesmo ninguém nunca soube. O que se sabe é que os dois entraram e saíram da conversa com a mesma disposição: a velha, amofinada; o Emílio, pronto para se casar com a Nininha.
E casou. A cerimônia foi breve e simples, sem convidados, na casa mesma da moça. No mesmo dia o juiz levou os noivos até a casinha no Ipiranga, despejou os dois lá, mais as canastras de enxoval e alfaias da filha, e deu sua missão por encerrada. Nunca mais apareceu, nem ninguém de sua gente.
A madrinha no começo foi seca demais com a moça, coisa que naqueles dias ninguém entendeu direito. Ciúmes de mãe? Isso não era. A Nininha não se deu por achada: tratava com respeito a sogra postiça, não a bajulava, não forçava nada para vencer a secura da velha. Mas, como dizia o Emílio, tudo na vida se arruma, se é tempo da vida. E arrumou-se que ele, casado, entrasse logo a ganhar carnes e viço; nhá Mira, vendo que a moça podia assim fácil o que seu desvelo de mãe não pôde, foi se amansando, ficou doce. E quanto mais o Emílio viçava, mais ela se adocicava com a Nininha. Acabaram amigas, mais que isso: a velha, não tendo parido mulheres, mãe amorosa da filha que lhe coube por dois acasos; a moça, filha dedicada dessa mãe que o acaso pôs no lugar da que a esquecia. Tinha outra coisa ainda entre as duas, difícil de explicar: era um entender-se quieto lá delas, um negócio que dava para sentir no ar, sem que nunca se soubesse onde é mesmo que se realizava. Era assim.
A Nininha na verdade era pessoa fácil de um qualquer gostar. Delicada, atenciosa com todos, nunca pareceu desgostosa da vidinha simples que levava com o marido, decerto muito mais modesta que a que teve na casa do pai. Tinha gosto na lida doméstica, trazia cheirosa a casinha deles, trastejada com finura e despojamento, os linhos e louças muito brancos de suas canastras. Era bonita, a Nininha. De uma beleza sem exagero, sem artifício, lembrava um amor-perfeito, uma réstia de cebolas pequenas, uma estradinha de terra no meio do pasto verde. O Emílio estando por perto ela parecia um girassol: grudava nele uns olhos amolecidos de ternura, e a beleza dela se iluminava com a ternura que olhar do marido lhe devolvia.
Iam vivendo. Gostavam da vidinha que viviam. A bem dizer, a vida de um pobre, naquele tempo e naquelas lonjuras, era mais ou menos a mesma vida de todos, e, mesmo, era boa. É que eles pareciam saber que era boa já enquanto a viviam, e iam vivendo o miúdo e o de todo dia com o mesmo gosto com que dançavam os bailes do Clube Operário, pé de valsa que eram, todo mundo admirado da graça deles dançando. Tinham muito zelo um com o outro. A Nininha não admitia que o Emílio almoçasse a bóia amanhecida que os cabras da serraria levavam de madrugada para requentar no serviço; organizava-se para estar com o almoço pronto e fresco lá pelas tantas da manhã, arranjava tudo entre dois pratos de sua louça mais bonita, embrulhava em papel grosso para não esfriar, amarrava com um pano muito branco e saía correndo levar para o marido. Chegava na serraria exato quando apitava onze horas, pedia a alguém do escritório que entregasse ao Emílio; não gostava de interromper a camaradagem lá deles na folga do almoço. Na volta do serviço, à tardinha, ele tratava de arranjar pelo caminho um mimo qualquer, uma fruta do mato, uma flor, uma pedrinha bonita... punha dentro da louça que tinha ido com a bóia. Era assim.
Sendo assim, dava para acreditar que essa mulher traísse o Emílio? Quem primeiro desconfiou foi o Doca, por causa de um sujeito de fora, um viajante que andou lá pelo seu armazém. Esse homem viu a Nininha passando na rua e fez um comentário vago, malicioso. O Doca quis duvidar, por na conta da bazófia do sujeitinho, mas depois andou ouvindo outra coisa, e mais outra. Por fim, ele e o Juca, eles mesmos por acaso viram o que queriam nunca ter visto: a Nininha, afogueada, saindo com um cabra estranho de um paiol velho que havia por ali num lugar meio retirado, perto de um capão. A pá de cal foi quando o Doca andou por Ponta Grossa, especulando a vida da moça. Pois que lá todo mundo contava a mesma história: que ela era uma ordinariazinha, vergonha da família importante; que ela nunca sofreu dos nervos, que nada, que o pai a tinha internado para remediar a honra, dizer que ela fazia o que fazia por que fosse meio desmiolada.
Então, muita coisa se explicava...
O Juca sofreu, não sabia o que fizesse, desejou nunca ter sabido de nada, que, sabendo, de todo jeito era como se também traísse o Emílio: se contava para ele, sentia como se o traísse junto com a vida; se não contava, traía junto com a Nininha. E como gostava do Emílio! Criaram-se juntos e amigos, foram irmãos de leite e de diabruras no quintalão sem fim de nhá Mira, compartilharam as carícias dela, juntos muito apanharam da velha. Gostava dele mais do que gostava dos irmãos de sangue.
O Doca também não sabia o que fazer, daí que tiveram a idéia de entregar o caso nas mãos da mãe. Bobagem. Nhá Mira não estava sabendo pensar, era só um bicho com a cria no peito. Queria o menino sossegado, que nada lhe doesse. Isso foi o que eles imaginaram, porque a velha mesma não lhes deu razões. Saiu com eles nas costas, disse que se cuidassem bem de suas vidas já estava mais do que bom, que quem desfeiteasse a Nininha ia é se haver com ela, nhá Mira.
Covardia deles, mesmo. Erraram. Deviam ter ido direto falar com o Emílio, por mais duro que fosse. Ele de tudo sabendo, e querendo, aí sim, estava certo que se envolvesse nhá Mira, que ela com autoridade de velha e de mãe ajudasse a devolver a moça e seus baús de brancuras lá para o juiz. Então que numa tarde se encheram de coragem, o Emílio ia passando pelo armazém, de volta do serviço, e os dois o chamaram para uma conversa. Ele parece que adivinhou que coisa boa não era; ficou muito pálido, sentou-se.
- Vocês me falem, eu agüento.
Foram falando, nada esconderam. O Emílio, enquanto ouvia aquilo, quieto, ia recobrando o sangue fugido. Quando viu que tinham acabado, e ele na inteira posse de sua cor e alegria, disse:
- Isso? Arre, que vocês me assustam! Pensei que tinha acontecido alguma coisa com a Nininha.
- Homem! Se estamos lhe dizendo que essa mulher lhe trai!
- Pois, Doca, eu lhe digo: conheço a Nininha e o que se passa na vida dela como a palma da minha mão. Ela não me trai. Nunca ela me traiu.
E levantou-se, com a cara limpa que ele sempre teve, pediu licença para se apressar, porque ia ter o baile da primavera no Operário, e ainda queria colher para a Nininha umas pitangas gordas que tinha avistado de manhã, no caminho para a serraria.
Pode um vivente comum pensar disso coisa sensata? O Juca também não pôde. A bem dizer ele pensou foi nada, não quis. Sentia que lhe tiravam o mundo dos ombros, e a mesma impressão desde menino, de que o Emílio sabia de coisas que nunca ele ia saber; que o Emílio quando dizia um isso, isso de um jeito ou de outro era sempre a verdade.
Também o Juca foi ao baile naquela noite. Tocavam "Branca" quando chegou, ele lembrava bem, porque lá chegando viu o Emílio e a Nininha. E mesmo tendo estado com eles até velhos, era aquela a imagem que guardava deles: os dois bonitos e namorados, se olhavam e se olhavam, valsando no meio do mundo em volta.

Notas de uma cozinheira para um filósofo glutão e preguiçoso 1


Quando eu tinha uns doze anos meus pais mudaram-se para Guarapuava e eu fiquei em Ponta Grossa, com uma irmã oito anos mais velha. Passamos a morar numa kitinete nos fundos de um prédio de apartamentos vizinho da nossa casa arejada e clara, agora alugada a uma família estranha que haveria de deixá-la um caco; aquele era um lugar sombrio e feio, de onde não se podia ver o céu nem mais nada além do muro muito alto, escuro de bolor, cheio de lesmas, a meio metro da nossa parede. Foi um tempo sem alegria. Nunca perdoei meus pais por terem me deixado ali para salvaguardar a reputação de minha irmã donzela, mas o fato é que de outro modo eu seria hoje outra pessoa, com prejuízo, ainda que o filósofo refute que isso de “eu ser outra, com prejuízo,” seja algo absolutamente impossível.
Eu e minha irmã ainda não cozinhávamos nessa época; o equipamento de cozinha reduzia-se a um pequeno fogareiro em que fervíamos água para chá ou café; não tínhamos ainda uma geladeira. Pegávamos umas comidas prontas num e noutro lugar, mas o de que mais me lembro desse tempo é de uns sanduíches de presunto, coisa que deploro até hoje.
Também não tínhamos televisão. Nossa senhoria, muito gentil, amiga de nossos pais, recebia-nos toda noite para a novela das oito, que ela assistia invariavelmente comendo um prato de feijão e arroz, sempre nos oferecendo dessa iguaria, e nós sempre educadamente recusando. Não sei quanto a minha irmã, mas eu, enquanto durasse o jantar da mulher, nem conseguia prestar atenção na novela, torturada pela proximidade da comida que sempre foi e sempre será a minha preferida, e que então comíamos muito raramente, em casa de parentes ou quando estávamos em casa de nossos pais.

(continua...)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Guevara


...ainda mais te amarei depois da morte.
Elisabeth Barret Browning


Guerrillero heroico. Ciudad de La Habana, 1960. É assim a legenda da foto no postal que me trazem de Cuba. Essa foto famosa, reproduzida aos milhares em pôsteres e camisetas, nunca podia vê-la sem desconcerto; evocava-me uma imagem fugidia, como a de um sonho: está e já não está, perde-se para sempre.
Pois no dia em que me deram o tal postal alguma coisa se abriu e eu mergulhei por ali para um mar de lembranças. Lembranças corriqueiras; é que dessa vez chegavam em estado bruto, sem o desbaste com que a memória aplaina e suaviza os exageros do acontecido. Lembranças do tempo em que vi pela primeira vez essa foto de Guevara e, ao fim, do dia em que soube de sua morte.

Era um tempo terrível aquele. Densas nuvens vermelhas avolumavam-se no oriente e ameaçavam espalhar-se pelo resto do mundo. Milhões de pessoas viviam sem liberdade, sem moral e sem Deus, à sombra da foice e do martelo, símbolos da tortura, instrumentos com que se decepava ou esmagava a cabeça de quem se rebelasse contra a barbárie. Coisa do demônio. Dizia-se que lá nada se podia ter de seu e que se devoravam vivas as criancinhas. Talvez isso de devorar criancinhas fosse exagero, pois um povo precisa de crianças para seguir existindo, mesmo na ruindade. E, depois, meu pai tinha sorrido e dito “bobagem!”, quando certa vez eu lhe perguntara se era verdade essa coisa medonha. Mas, onde há fumaça há fogo, e “bobagem!” na boca do meu pai nem sempre era uma sentença, era às vezes um jeito de encurtar a conversa antes que ela se desatasse por onde ele não queria. É possível que quisesse me poupar de inquietude desnecessária; afinal, tudo se dava tão longe de nós, ainda mais longe que o outro lado do oceano. Não há distância que não se transponha, contudo. Há muitos anos viviam nos arredores uns colonos russos, gente que – falava-se – havia fugido do horror em que se transformara sua terra. Em determinado dia do mês vinham em bando até a cidade, acho que para comprar o que não produziam na colônia. Vestiam-se todos, até as crianças, como os dançarinos de um balé russo que eu vira uma vez no cinema. “Bonito”, era, mas eu tinha um medo danado daquela gente. “É gente comum”, meu pai dizia. Pois sim! E se não tivessem de fato fugido da ordem bárbara, se tivessem vindo aqui disseminar o Mal? É preciso sempre vigiar, e muito, porque o Mal usa de todos os artifícios para avançar. Então os russos não tinham até ajudado os americanos a vencer os alemães na guerra? E a Alemanha não tinha acabado em desgraça, aquele muro no meio, metade para o lado russo? Mas os alemães eram farinha do mesmo saco, gente ruim, que se danassem! Me arrepiava pensar que corria um tanto de sangue alemão em minhas veias; era pouco e vinha de longe, mas tinha sido o suficiente para que eu saísse muito branca, a cara larga e ossuda de soldado nazista. Era só. Por dentro mesmo eu era boa. O que mais espantava é que havia gente no mundo – aqui também – que simpatizava com o que acontecia na Rússia. Gente comum, podia ser um vizinho, um conhecido, uma pessoa simpática como a professora de história: faltou a uma, duas aulas, e na terceira veio a professora de religião e disse: “a partir de hoje vou dar também as aulas de história”. Correu depois o boato de que a moça era comunista, uma agitadora, e imoral. Vá lá se saber! O fato é que essa gente existia e era muito perigosa. Cuba tinha caído assim, pelas mãos de um homem terrível que acabara tomando o poder, e de um outro que nem cubano era, um argentino. Desse dizia-se ser ainda mais perigoso do que Fidel Castro. Tinha comandado a guerrilha cubana, que deu no que deu, e andava sabe-se lá onde, armando decerto outras guerrilhas. Não descansaria enquanto tudo não estivesse em poder dos russos. Chamava-se Ernesto “Che” Guevara.

Foi num dia em que pedi a meu pai que me ajudasse numa tarefa da escola e ele se lembrou de ter visto uma reportagem que me servia. Estávamos os dois lado a lado na mesa, ele folheando devagar a revista, e por um momento ficou distraído olhando as fotos de umas banhistas muito brancas, ossudas, cara larga de soldado nazista. “Tem mulheres que descendem direto da vaca”, disse de repente. Pronto, perguntei: “como eu?”. Fiquei olhando muito para ele. Não me respondeu. Vi armar-se a expressão familiar, o ligeiro arquear da sobrancelha direita, o sorriso sem que sorrisse. Então se confirmava o que já sabia: eu era feia. Ah, meu pai, meu pai era tão bonito! Jamais saberia o que é ser feia. Não podia ter mentido só dessa vez? Não, não podia, não mentia nunca. “Dói?” “Dói, mas é preciso”. Nem precisava mentir, bastava que tivesse dito “bobagem!” para mudar de assunto. Talvez quisesse dizer, mas a sobrancelha arqueou-se antes... Não é que meu pai fosse cruel. Não era. É que não gostava de mentir, e mesmo não podia: era todo expressão, tudo nele se anunciava antes que dissesse palavra: se estava feliz, bravo, triste, se assentia, se negava. Teria mentido, se pudesse. Uma vez estávamos os dois andando pelas ruas do centro e vi na vitrine um brinquedo que me deixou extasiada: “me compra isso, pai!?”. Suas sobrancelhas quase se tocaram e eu podia jurar que era dor o que sentia ali, naquele ponto da testa, enquanto se agachava e me dizia: “não posso. Eu te daria a lua, se pudesse. Não posso.” Ah, como me arrependi de ter pedido aquilo! Sabia que se vivia lá em casa sem folga e o quanto lhe doía não poder satisfazer nossos pequenos caprichos. Se era de comer o que um filho desejava, não se aquietava enquanto não lhe trouxesse. Às vezes chegava com um pacote, de surpresa, o rosto iluminado, ia distribuindo a cada qual a extravagância predileta. A minha era um potinho de cerejas ao marasquino, pequeno tesouro que ele me mostrava contra a luz, rútilos rubis. Ficava me olhando, quieto, até que se fosse o último rubi, o licor no fundo, a esquisita doçura.
Me daria a lua, se pudesse. Não podia. Pensava nisso, olhando-o folhear devagar a revista, quando vi pela primeira vez aquela foto. Foto de página inteira, estrela na boina, o rosto bonito e sério, o olhar duro, longe, longe. Olhar de tristeza funda. “Quem é?”, perguntei. “É Che Guevara”, ele disse. Não sei o que pensei. Quando enfim ouvi “pronto, achei, é isto”, foi como se despertasse de um longo sono sem sonhos. “Posso ficar pra mim?”, perguntei. “Claro”, ele disse.

Quantas vezes voltei a olhar aquela revista! E sempre na mesma página meu rosto incandescia e um solavanco modificava ligeiramente o eixo da Terra. Precisava ser bonito? Sim. Pois então não era Lúcifer o mais belo dos anjos? Não podia ser diferente. Acaso o diabo andasse por aí com carantonhas e fedendo a enxofre alguém o seguiria? É preciso vigiar sempre e muito, não se deixar seduzir pelo olhar dos anjos.
Mas aquele nem era o olhar plácido dos anjos, olhar de iludir ... Não era. Olhar de tristeza funda ... o nariz reto, o contorno bem desenhado da boca, cabelo em desalinho ... cabelo macio ... Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade Divina, sempre me rege, me guarda, me governa e me ilumina. Amém.

Foi pensando na necessidade que tinha Lúcifer de ser belo que me ocorreu perguntar a meu pai o que de verdade significavam a foice e o martelo na bandeira da União Soviética.
- Significam o que são: ferramentas do trabalhador: a foice, do camponês; o martelo, do operário.
- Mas por que estão na bandeira? O que eles querem dizer com isso?
- Acho que significa que são os trabalhadores que mandam na União Soviética.
- É!?
- É pra ser.
- E é verdade que lá ninguém pode ter nada?
- Não...mais ou menos... é que lá tudo é mais ou menos de todos.
-E isso não é bom?
- Se for mesmo assim...
- E em Cuba, também é assim?
- Agora é, acho.
- E ele é bom ou é mau?
- Ele, quem?
- Guevara.
- Ora... É uma pessoa como outra qualquer. Deve ter suas coisas boas e outras ruins.
E mais não disse e nem me deixou perguntar. Me fez prometer que não falasse dessas coisas com ninguém, ninguém, nem com ele mesmo. Obedeci. Desse dia em diante fiquei obcecada por dicionários e livros de história: tinha esperança que me explicassem o significado de certas palavras e o que se dava no mundo, realmente. Seria tão mais fácil se meu pai me falasse! Nada podia ser mais claro e vivo e verdadeiro do que quando ele me contava: sabia tudo o que os livros diziam e o que não diziam. Sabia histórias de amor de verdade. A de que eu mais gostava era a de Elisabeth e Robert Browning.
Elisabeth Barret, poeta inglesa, tinha cerca de 40 anos e vivia reclusa em seu quarto, por conta da saúde muito frágil. Seu contato com o mundo resumia-se às cartas dos leitores, que lhe chegavam às dúzias e ficavam o mais das vezes sem resposta. Eis que um belo dia lhe escreve um certo Robert Brwning, também poeta, dizendo: “amo seus versos e amo a senhora também”. Pedia permissão para visitá-la. Ela lhe responde que isso não era possível por ora, que não se sentia muito bem, que “na primavera, talvez...”. E na primavera seguinte se conhecem e se apaixonam, e ele a leva a respirar o ar puro do campo. Casam-se e se amam muito por treze anos, ao fim dos quais ela morre, suavemente, o rosto aconchegado no peito do marido. Deixa-lhe muitos sonetos de amor derramado. Parece que ouço a voz grave de meu pai lendo-me um deles. Não lhe distingo as palavras: é um contínuo rumorejar do silêncio ao fundo, e sons que dançam, e conversam, e se tocam, e ao se tocarem ficam cheios de sentido, e deslizam e se avolumam e se desmancham, como pequenas ondas na praia. E tudo recomeça. Claro, mesmo, só me ficou o último verso: “...ainda mais te amarei depois da morte”.
Mulher horrorosa essa Elisabeth Barret Browning, muito feia mesmo, se é que lhe era fiel o retrato que vi. Se um homem pôde amá-la tanto, então nem tudo estava perdido para mim. Quem sabe, no futuro, algo bom se revelasse sob minha feiura, e aí eu conheceria um homem gentil, capaz de ver em mim essa coisa amável, pérola na ostra, e seríamos felizes para sempre sempre.

“Quem não for católico pode sair!”. Era com secreta inveja que eu observava Sofia, a judia, e Álida, a protestante, sairem desobrigadas da aula de religião. Iam-se embora mais cedo, o sol no rosto, um restinho azul da manhã desfrutável. Lá dentro era sombra, cheiro de vela sem que vela nenhuma queimasse, minha culpa por não amar a Deus como amaram Jó e Abraão, minha crescente desconfiança do amor de Deus por Jó e Abraão. E aquela mulher... “hoje vamos começar a aula lembrando a missa de domingo; cada uma de vocês vem aqui na frente e conta para as coleguinhas o que mais gostou da missa no domingo passado”. Quando chegou minha vez me levantei e disse com a voz sumida que não tinha ido à missa. Ia me explicar: dizer que em casa não havia esse costume, quem sabe inventar uma desculpa qualquer, mas ela me repeliu, as duas mãos espalmadas na altura do rosto: “não se aproxime, não se aproxime, você está com o diabo no corpo”.
Devo ter chegado em casa mais branca que o normal naquele dia. Meu pai levantou os olhos do jornal que tinha aberto sobre a mesa e logo me perguntou o que havia. Contei. Ele sorriu e disse: “bobagem!”, do jeito de sempre, mas desta vez pousou a mão grande em minha cabeça, e isto foi o bastante para que o diabo se escafedesse. Sentei-me leve e refeita na cadeira ao lado, e dei de cara com a notícia: Guevara morto. Caído na selva boliviana. Belo. Morto e belo. Morto e belo. Morto. Nunca mais. Já não seria possível que o encontrasse por acaso na rua, nem que me olhasse, nem que seus olhos me contassem o que sabiam. Eram olhos baços de morto.
Morto.
Impossível comer naquele dia. Olhava para a comida em meu prato e o que via era o rosto do morto, o que morreu sem eu saber quem foi, o que eternamente vagaria entre céu e inferno sem que nem lá nem cá o reconhecessem. Era certo? Meu pai tinha que me contar, bastava que dissesse uma só palavra! Voltei-me de súbito para ele e ia lhe suplicar: uma só palavra. Não supliquei. Não pude. Meu pai não tocava na comida. Olhava-me intensamente, a cabeça um pouco inclinada para um lado, como se lhe pesasse demais o que pensava. E o olhar, o olhar era um tanto o que tinha quando me via comendo cerejas ao marasquino, um tanto era outra coisa... tristeza funda?...
Não sei quanto tempo levou para que me desvencilhasse daquele olhar. Quando enfim voltei ao meu prato, já não estava lá o rosto morto. Estava o outro, estrela na boina, bonito e sério; nem era triste, nem olhava para longe: olhava para mim, intensamente. Me daria a lua, se pudesse.

aveloh

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

"Os dois irmãos

Fazem dó e compaixão os mortos que hão de ser enterrados nos cemitérios das cidades. Quando postos no carro fúnebre e conduzidos através das ruas, é como se resmungassem e gemessem lá dentro do caixão. Alguns há que lastimam não haja penachos em seus coches mortuários. Outros se põem a contar as coroas, e não ficam satisfeitos e contentes. E há também os que, seguidos apenas de uma, duas, três carruagens, se sentem humilhados.
De tais cousas jamais precisam tomar conhecimento os mortos. Mas a gente das cidades não sabe de forma alguma como prestar homenagem àquele que vai dormir, lá dos sete palmos, o sono eterno. Compreendem-no um tanto melhor, porém, nos distritos rurais, e nenhures tão bem quanto na paróquia de Svartsjö, no Värmland.
Se morres na paróquia de Svartsjö, fica logo sabendo que ganharás um caixão em tudo igual ao que cabe aos demais – um caixão decente, forrado de preto, da mesma classe que os caixões em que o juiz distrital e o delegado de polícia baixaram à sepultura o ano passado. Isto porque o mesmo marceneiro faz todos os caixões, e só dispõe de um único modelo: nenhum há de sair melhor ou pior do que o outro. E fica sabendo também, pois tantas vezes o tem visto, que serás transportado até a igreja numa carroça de trabalho, adrede pintada de preto para o ato. Não deves de modo algum preocupar-te com penachos, cousas que todos desconhecem na paróquia. E fica sabendo, ainda, que os cavalos levarão xairéis, presos aos arções das selas, e hás de ser conduzido tão amorosamente, e de modo tão solene, quanto um simples campônio.
Mas não te alarmes, caso não tenhas tido coroas em número suficiente: não haverá uma só flor no féretro. Exige a praxe que o esquife seja forrado de preto, e rebrilhante, e nada impeça de vê-lo bem. Não tens de preocupar-te se terás um cortejo bastante numeroso, porquanto as pessoas que moram na tua aldeia sem dúvida te acompanharão todas juntas. Não procures saber se há quem chore ou soluce em torno do teu ataúde. Nunca se choram os mortos quando estes já se encontram no alto do outeiro, diante da igreja de Svartsjö.
Não se choram mais lágrimas por um rapaz novo, cheio de vida, que baqueou justamente quando começava a ser o arrimo dos seus pobres e velhos pais, do que por ti. Colocar-te-ão sobre dois cavaletes de cor preta, ante a porta do paço paroquial, e toda uma multidão, a lanço e lanço, se irá ajuntando em derredor de ti. As mulheres todas levarão os lenços nas mãos. Mas ninguém há de chorar: todos os lenços estarão bem dobrados, e nenhum deles há de procurar os olhos... Não receies que se derramem por ti tantas lágrimas quantas pelos demais defuntos. Haveriam de chorar se fosse o caso, mas tal não acontece.
Podes compreender agora que, se houvesse pesar em demasia sobre uma campa, quão triste não haveria de sentir-se aquele que ninguém pranteia! Eles sabem o que fazem, lá em Svartsjö. Eles se portam como é de uso e costume ali há muitas centenas de anos.
Mas, enquanto permaneces no outeiro da igreja, tu és um ser poderoso e magnífico, posto não hajas recebido flores nem lágrimas. Ninguém vai à igreja para saber quem és. E assim, em silêncio, aproximar-se-ão do ataúde e de pé o contemplarão. A ninguém ocorre ofender o defunto compadecendo-se dele. Ninguém manifesta outra opinião senão a de que foi bom que chegasse a sua hora.
De maneira alguma sucederá como na cidade, onde serias sepultado num dia qualquer da semana. Em Svartsjö, terás sepultura num domingo, de modo que em torno de ti esteja reunida a comunidade inteira. Lá verá, ao lado do teu féretro, tanto a jovem com quem dançaste na última noite de São João como o homem com quem fizeste troca de cavalos na última feira. Terás o mestre-escola que te ensinava a ler quando eras menino, e que de ti se esqueceu, embora ainda te lembre tanto dele; e terá também o velho parlamentar que nunca dantes te havia cumprimentado. Não, não é como na cidade: lá os homens mal se virariam para ver-te à tua passagem.
Quando chegam as compridas correias e as põem debaixo do caixão, não há ninguém que não acompanhe com interesse todos os movimentos.
Não imaginas que espécie de zelador tem a igreja de Svartsjö. É um velho soldado, com uns ares de marechal-de-campo. Traz os cabelos cortados à escovinha, retorcidos os bigodes, e usa cavanhaque; é esbelto e alto, sempre empertigado, passo leve e firme. Aos domingos veste uma sobrecasaca bem escovada, de bom tecido. Na verdade, é o mais belo ancião que se poderia arranjar. É ele quem vai na frente, à testa do cortejo. Depois dele vem o porta-maça.
Escusado dizer que o porta-maça faz pobre figura em comparação com o zelador da igreja. Pode-se dar que o chapéu lhe fique demasiado grande, ou fora de moda. Nota-se que está bastante constrangido ali, mas desde quando não se sente contrafeito um porta-maça?
Assim chegas, tu mesmo, no teu féretro, com os seis carregadores, e vêm-se aproximando também o pastor e o sacristão, os moradores da aldeia, e a paróquia em peso. Todos os fiéis te acompanham ao campo-santo: disto podes estar certo.
Mas agora prestarás bem atenção a uma cousa: vê como parecem humildes e pobres esses que te acompanham. Não há entre eles pessoas enfatuadas como as da cidade; só a gente simples e modesta de Svartsjö. Apenas se encontra ali alguém que é deveras grande e digno de reverência, e esse alguém és tu, que morto estás. Os outros, coitados, terão de se levantar no dia seguinte para recomeçarem as suas duras e árduas fainas; sentar-se-ão em suas velhas e míseras choupanas, e tornarão a vestir as suas velhas roupas esfarrapadas. Os outros, coitados, hão de continuar sempre atribulados, atormentados, torturados, oprimidos, humilhados pela miséria.
Se um forasteiro marchasse a teu lado até à cova, ficaria mais comovido ao ver as pessoas que tomam parte no cortejo fúnebre do que ao pensar em ti, que morto estás. Não precisas nunca mais examinar a gola de veludo da casaca, a ver se a orla se lhe começa a desbotar pelos rebordos; já não é mister dobrares cuidadosamente o lenço a fim de lhe esconderes o rasgão. Nunca dos nuncas necessitarás pedir aos mercadores da aldeia que te vendam fiado; e não sentirás jamais como te vai fugindo a energia para o trabalho, e assim não estarás à espera do dia em que te convertas num pesado fardo para a comunidade.
Enquanto te acompanham ao túmulo, não há um só dentre eles que não imagine que é preferível morrer, que é melhor ir para o Céu, em meio às brancas nuvens da manhã, do que sofrer sempre esta vida cheia de tantas vicissitudes.
Quando se chega ao muro do cemitério, onde a cova está aberta, substituem-se as correias por grossas cordas, e os que te conduzem o féretro sobem para os montes de terra solta e te fazem baixar à tumba.
Concluído isto, o sacristão se aproxima da beira do sepulcro e põe-se a cantar: - “Eu vou para a morte...”
Ele canta o salmo sozinho: nem o pastor nem ninguém da congregação o ajuda. Mas o sacristão tem de cantar; e, por mais rijo que sopre o vento norte, por mais abrasador que lhe bata o sol no rosto, ele canta.
O sacristão já é muito velho, e não lhe resta muita voz para cantar. Sabe que esta já não soa tão melodiosa agora, ao cantar para o morto no fundo da sepultura, como o era nos dias da sua mocidade, mas cantará, porque este é o seu dever.
Pois, fica sabendo, no dia em que lhe faltasse de todo a voz, de modo que não pudesse cantar, ver-se-ia obrigado a pedir demissão do cargo, e seria o mesmo que lançar-se na mais negra miséria.
Por isso, toda a congregação se toma de ansiedade sempre que o velho sacristão principia a cantar: todos perguntam a si mesmos se essa voz se agüentará firme através de todos os versículos. Mas ninguém o acompanha, nem um só dos fiéis presentes, porque não é possível tal cousa, não é de uso. Jamais se canta à beira do túmulo em Svartsjö. Na igreja só se canta o primeiro salmo, nas matinas de Natal.
Contudo, se alguém prestasse bem ouvidos, haveria de observar que o sacristão não está cantando sozinho. Em verdade, outra voz o acompanha, mas o tom lhe é tão precisamente igual que as duas vozes se misturam, como se fossem uma só.
Essa outra voz, que canta em acompanhamento, pertence a um velhinho que traja uma comprida vestidura de burel pardo. É mais idoso que o sacristão, mas solta tudo quanto tem de voz para ajudá-lo.
E essa voz, como foi dito, é absolutamente do mesmo timbre que a do sacristão, e tão semelhantes são as duas que não se pode deixar de ficar maravilhado.
Mas repara-se de mais perto, e vê-se que o velhinho do burel pardo é, deveras, muito parecido com o sacristão: o mesmo nariz, a mesma barba, a mesmíssima boca, somente um tanto mais velho e mais maltratado pela vida. Compreende-se logo que o pobrezinho é irmão do sacristão, e fica-se sabendo, por igual, o motivo que o fez acudir em auxílio deste.
Imagina só: jamais ao velhinho lhe correram bem as cousas neste baixo mundo, sempre perseguido da má sorte, e de uma feita abriu falência, arrastando o sacristão na sua desgraça. Ele sabe que, por culpa sua, o irmão tem de lutar com sérias dificuldades.
O sacristão tentou endireitar-lhe a vida e os negócios, mas sem resultado, porque o velhinho não é daqueles a quem se possa dar a mão: ele sempre carregou consigo o infortúnio, e nunca teve a necessária força para vencer.
Ao invés, o sacristão tem sido a luz refulgente da família, enquanto o outro não tem feito senão receber e receber sempre, sem nada restituir.
Oh! Falar em restituir, santo Deus! Ele que é tão pobre! Devíeis, Senhor Deus, ir ver a choça em que mora, lá no bosque!
Bem sabe o velhinho que tem sido um fardo pesado, a tristeza e o tormento, sim, um suplício, para o irmão e para todos os seres humanos.
Mas considera: nos últimos tempos tornou-se importante, e presentemente correm-lhe os negócios à feição. Já agora, pode restituir alguma cousa. E é o que está fazendo. Ajuda o irmão, o sacristão, que tem sido o seu farol, a animação e alegria em todos os dias da sua vida. Ajuda-o neste instante a cantar, a fim de que possa manter-se no emprego.
O velhinho não vai à igreja, por lhe parecer que todos reparam em sua pessoa, pois não tem roupas pretas domingueiras. Mas sobe a encosta da igreja aos domingos, a ver se lá em cima há algum caixão por sobre os cavaletes pretos, diante do paço paroquial. Se encontra algum, acompanha-o até o cemitério, e faz o sacrifício de apresentar-se com a sua velha estamenta parda, e ajuda o irmão com a sua desafinada voz.
Ele ouve perfeitamente quão mal lhe sai o canto, e, assim, coloca-se por detrás de todos, e não ousa acercar-se do túmulo. Mas canta, ah! isto ele o faz. E não seria muito perigoso se a voz do sacristão falhasse numa que outra nota, porque “ele” ali está para garanti-lo...
No cemitério ninguém se ri do canto. Mas, de regresso aos lares, e desfeita a recolhida unção, falam do que passou na igreja, e riem do canto do sacristão – riem tanto dele como do irmão. Não se zanga o sacristão com tal cousa, pois não é do seu temperamento, mas o velhinho sofre com isto e preocupa-se. A semana inteira treme ao só pensamento do domingo, mas, chegado este, e apesar de tudo, ei-lo a subir pontualmente ao cemitério e cumprir o seu dever.
Tu, porém, lá do fundo do caixão, tu não pensas tão mal assim de tais cânticos. Achas até que é boa música. Não é verdade que gostarias de ser enterrado em Svartsjö só por causa desses cantos?
Diz o salmo que tudo é um eterno caminhar para a morte, e, quando os dois velhos cantam, esses dois que passaram a vida inteira pelejando um pelo outro, sente-se quão dura e amarga é a vida, e fica-se muito contente de estar morto.
E assim acaba o canto: o pastor lança alguns punhados de cinza sobre o ataúde e reza uma oração por ti.
Ao depois, põem-se de novo a cantar as duas velhas vozes: - “Eu vou para o Céu...”
E não cantam agora estes versos melhor do que antes. As duas vozes se lhes tornam mais fracas e mais lamentosas à medida que cantam.
Mas para ti se abre o espaço, vasto e infinito, e lá vais subindo com ansioso júbilo, flutuando, e tudo o que é da Terra vai sumindo, esfumando-se, empalidecendo.
Mas as derradeiras notas que da Terra ouves são, todavia, como um hino de Fidelidade e Amor. Em meio ao teu vôo indeciso, há de o pobre canto despertar em ti saudade de tudo quanto aqui na Terra encontraste, levando-te para o Alto. E ele far-te-á transfulgir ainda como uma luz esplendorosa e far-te-á belo como um anjo do Senhor..."

Selma Lagerlöf In “Mar de histórias: antologia do conto mundial, VI: caminhos cruzados/ [organizadores e tradutores] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. -4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Lapso

Foi com enjôo e desgosto que o engenheiro oito interrompeu o que fazia e foi para a sala do engenheiro chefe. Não devia se tratar de assunto de trabalho: disso o chefe se desincumbia a toque de caixa, de passagem pela sala dos engenheiros, ou, se o caso exigisse, com a equipe reunida na enorme mesa da sala contígua. No gabinete da chefia a conversa costumava ser de outra natureza, em especial se precedida de chamado solene da secretária; ali, aquele homenzinho gostava de exercitar sua política de boas relações, que consistia em bajular o interlocutor e insinuar vagas maldades sobre a reputação e a competência dos outros, com muita sutileza, é claro, de modo que nenhum comentário seu pudesse ser reproduzido fora dali, indispondo-o com os outros engenheiros.

Indispor-se com qualquer dos engenheiros era coisa que o chefe evitava a todo custo, pois bastava uma ligeira turbulência na diretoria e todas as chefias abaixo dela rearranjavam-se conforme critérios insondáveis, de forma que quem num dia desfrutasse da privacidade do gabinete do chefe podia na manhã seguinte ocupar uma das inúmeras mesas da sala comum dos engenheiros ou ir desempenhar suas funções em outro departamento, ou no campo, ou alhures. E, como qualquer dos engenheiros estava apto a fazer o percurso inverso, tão importante quanto evitar que isso acontecesse era fazer com que cada um pensasse merecer sua amizade e especial consideração. Desnecessário dizer que o restante dos funcionários não tinha o mesmo tratamento; quanto mais baixa a posição hierárquica, menor a atenção dispensada pelo engenheiro chefe, de modo que quem ocupava as regiões mais sombrias do organograma, os pequenos funcionários da administração, os peões de obra, só podiam ouvir dele uma ordem ríspida ou uma descompostura grosseira, porque “essa gente, se você trata bem, não te respeita”. Isso excepcionalmente; de ordinário ele não lhes dirigia a palavra.

Pois lá estava o engenheiro oito, acomodado numa das poltronas que ficavam em frente à mesa do engenheiro chefe, esperando ouvir a arenga da vez com paciência estóica e redobrada atenção, porque o homem era especialmente hábil em colocar palavras na boca do interlocutor. Lá estava ele, meio nauseado, observando os olhos baços do chefe vagarem pelas linhas entre as paredes e o teto, pelas colunas das estantes, pelos objetos dispostos em rigorosa ordem sobre a mesa, como se procurassem as palavras precisas para dizer algo de extrema importância, e justo quando aquelas duas poças de água turva encontram o seu próprio olhar, e enfim a coisa começa, o engenheiro oito ouve abrir-se atrás de si a porta do gabinete, e uma voz de mulher que diz: “com licença, doutor...”. E ao ver o olhar do chefe voltar-se na direção da voz ele tem a súbita sensação de que algo estranho está acontecendo, e ele mesmo se volta e vê entrar a mulher vestida com o uniforme azul dos “Serviços Gerais”, acompanhada de uma outra mulher.

De fato era estranho, porque essa gente os “Serviços Gerais” não costumava pedir licença para entrar nos escritórios. Podiam chegar a qualquer hora do dia para executar um reparo, trocar uma lâmpada, servir o café, recolher o lixo,etc.. Era quase como se fizessem parte do mobiliário, do equipamento, e ninguém se incomodava com a presença deles, nem mesmo quando era preciso interromper uma discussão importante devido à barulheira que faziam com copos e xícaras, por exemplo. Tinham, em geral, mas as mulheres especialmente, os olhos postos no chão ou nalgum ponto fugidio, e de ordinário não falavam nada; quando falavam, era o essencial, algo como “café ou chá?”, açúcar?, “gelo?”.

Mas, por algum motivo indecifrável, naquele dia uma mulher de uniforme azul abriu a porta do gabinete da chefia, olhou nos olhos do chefe, e disse: “com licença, doutor, eu vim apresentar uma nova funcionária da limpeza, dona Rosália”. E isso era ainda mais estranho, pois ninguém jamais havia julgado necessário apresentar quem quer que fosse dos “Serviços Gerais”. Então o engenheiro oito começou a temer pela mulher de azul e pela outra, porque imaginou que o engenheiro chefe podia achar extremamente impertinente tal intromissão, e sobretudo porque aquela dona Rosália, funcionária nova, ainda sem o estigma do uniforme azul, era assim ainda mais lamentável, quase andrajosa, talvez um pouco descuidada do asseio de suas roupas puídas... Decerto aconteceu de a secretária ausentar-se no preciso momento em que as duas chegavam; do contrário ela teria percebido o incomum da situação e de alguma forma civilizada evitado que as pobres entrassem e se expusessem à grosseria, à crueldade de que o chefe era capaz com a gente humilde.

E porque a secretária não estava em seu posto naquele momento, como por um desses ínfimos acasos que precipitam os eventos do Universo a secretária se ausentasse naquele preciso momento, eis que agora a mulher de uniforme azul conduz uma andrajosa dona Rosália, funcionária nova da limpeza, ainda sem o uniforme azul a remediar-lhe a aparência lamentável, até o estupefato engenheiro chefe, sem suspeitar que a conduz e a si mesma para o desastre, a humilhação, como se já não lhes bastassem o desastre e a humilhação de existirem assim, de forma tão precária. E não há nada que o engenheiro oito possa fazer para salvá-las. De nada serve cerrar os dentes e contrair todos os músculos do corpo quando a mulher diz “este é doutor fulano, o engenheiro chefe”, e uma desavisada dona Rosália estende a mão maltratada para cumprimentá-lo, e inconcebível seria deixar escapar o grito que ecoa no cérebro: “não faça isso, dona Rosália, esse homem nunca vai lhe dar a mão!”. Que dona Rosália fique com a mão suspensa, humilhada, ainda não é nada; é certo que o chefe as escorrace do gabinete, primeiro por existirem em sua presença, depois por interromperem, sem qualquer motivo justificável, a conversa de dois engenheiros.

Ocorre que há dias em que tudo de estranho acontece. É com espanto que o engenheiro oito vê o chefe, talvez pego de surpresa, tocar frouxamente a mão grossa e curtida de dona Rosália, não sem que hesitasse, lhe parece. Aliviado, ligeiramente arfante da tensão do minuto anterior, quase chega a inclinar-se adiante para que quando ouça a mulher dizer “e este é doutor sicrano, o engenheiro oito”, ele prontamente aperte a mão escalavrada de dona Rosália, sem nenhuma hesitação, sem sombra de repugnância.

Mas a mulher de azul julga que já está bem cumprida a formalidade, e diz: “era isto, doutor, com licença”. E saem as duas, sem mais delongas, sob o olhar ainda estupefato do chefe, que enfim se refaz e passa da porta que se fecha às costas das mulheres para as linhas entre as paredes e o teto, daí às colunas das estantes, e se demora nos objetos dispostos em rigorosa ordem sobre a mesa, como a procurar a palavra justa que diga uma coisa extremamente importante.

aveloh

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Penélope

Minha irmã foi noiva longamente
que hoje borda e fia na janela,
penélope de próprio labirinto.
Eu mesmo na janela não diviso
senão a vaga espera, em gesto aéreo,
tecida apenas do desejo aflito
com que bordo seu noivo nos atrasos.
Não cabem nossos olhos nesta sala
tão grande, de paredes recuadas;
pois que se cruzem, se amem, se maltratem
com entender de si seus tempos vários.

Apanho teu novelo descuidado,
componho-o de novo, ao revés;
alcança-o teu colo, no bordado
de onde partiu e chega, já sem cor.
Teu noivo, nessa espera, longamente
não vem; o que te posso responder
(como profeta que olha à ré do corpo)
é que já não virá, em seu destino
entregue à solidão dos esperados.
E nós, nosso retrato se colore
daquele azul das horas cumuladas
com que à distância vemos, no bordado,
fio e agulha em linho descansando.
Teu corpo no caminho da janela
eternamente indo, e eu ficando.

Alcides Villaça, In Viagem de Trem, Ed. Duas Cidades, São Paulo, 1988

domingo, 1 de novembro de 2009

Dia sem Deus

O menino devia ter uns sete, oito anos. Ficava num ponto estratégico do calçadão, entre um banco e uma pastelaria, de modo que passava o dia a recolher as sobras da clientela farta: uns trocados aqui, um finzinho de pastel já sem recheio ali, assim ia vivendo. Não vivia só de sobras, é preciso que se diga: tinhas as suas muitas vezes de pastel inteiro, quando um freguês se incomodava com o olhar de cãozinho e dizia ao pasteleiro que lhe desse um por sua conta. E também, em certas tardes, fechado o banco, contada e recontada a féria do dia, subtraída a importância razoável de se apresentar quando voltasse à noite para onde voltava, o menino decidia que era ocasião de banquete: entrava na pastelaria com passo firme e voz de quem paga: “um especial, um de banana com açúcar e canela por cima, bem quentinho, e uma coca-cola”.

E havia as brincadeiras, que ninguém é de ferro. É bem verdade que pouco se podia brincar ali: rodopiar no poste, catar coisinhas perdidas pelo chão, chutar tampinhas... bom mesmo era quando aparecia por lá o irmão mais velho, que tinha ponto ainda melhor, e podia se dar ao luxo de umas gazetas de vez em quando. Aí ficavam os dois um tempão no passatempo predileto: escolhiam entre as passantes a madame mais cheirosa, a de nariz mais empinado, e a acompanhavam, um de cada lado, iam reclamando com insistência os seus trocados. Em geral não se enganavam quanto à disposição da madame: gostavam de ouvi-la repetir “não tenho, não tenho”, enquanto apertava a bolsa e o passo, medrosa de que tivessem um canivete ou de que a tocassem com as mãos sujas. Ao fim de um quarteirão davam-se por satisfeitos, deixavam que se fosse a vítima lívida com os trocados intactos. Riam a valer, e de novo se punham a escolher a mais cheirosa, a mais empinada.

A boa samaritana, que por ali sempre passava, vinha já com as moedas separadas para o menino, ao que ele agradecia com uma piscadela e o polegar direito para cima; economizava-lhe assim a ladainha pedinte e os “Deus que ajude que nunca lhe falte” para os rabugentos . Se entrava na pastelaria, lá vinha o moleque saltitante e de cara limpa: “paga um pra mim, tia!”; pura formalidade, pois ela sempre se adiantava e já fazia seu pedido dobrado, coisa que incomodava demais o pasteleiro: “só hoje é o terceiro que ele come”. Se o surpreendia entretido em assustar as madames, aplicava-lhe na cabeça uns tapinhas, meio corretivos, meio cúmplices, e ele gargalhava de prazer menino.

Sucedeu que ela passasse por ali numa tarde de domingo, os pedestres rarefeitos, o calçadão assombrado de ecos, e visse de longe que o menino chorava. Por que havia de chorar esse menino? Não estaria doente ou machucado, que não era o choro da dor, que de dor choram igual todos os meninos. Contrariedade por estarem banco e pastelaria fechados? Ora, se essa gente, de pequena ainda, conhece tão bem os hábitos da cidade... Implicância da polícia, de outros meninos, do juizado de menores? Isso não. Do contrário, pernas para que te quero; esperto que era, ele não teria se abandonado a chorar ali, na soleira do banco, tão desprotegido e visível contra o imenso portal de madeira escura. Ofenderam-no, quem sabe? Mas a boa samaritana tinha para si que esse menino não se ofendia, e se às vezes o via fazer caretas de deboche e gestos obscenos aos que imprecavam contra a mendicância e a sujidade, sempre lhe pareceu que fosse por simples molecagem, nunca por indignação. Nem seria possível que chorasse de fome, porque esses meninos o primeiro que aprendem é como não se passa fome. E mesmo numa tarde esvaziada de domingo sempre haveria entre os que passavam quem lhe desse um resto de doce, uns trocados para um pão, por caridade ou desfastio, a ele que sabia olhares de cãozinho, e era miúdo e franzino, e que sabia todas as lamúrias de apiedar e aborrecer, pai morto, pai desempregado, pai sumido no mundo, mãe entrevada, mãe morta, irmãozinhos famintos, doentes, com frio... Mas ele nem se dava conta de quem passava. Deixava-se estar sentado na soleira do banco, quase ao rés do chão, as pernas meio dobradas contra o peito, e os braços que enlaçavam frouxamente as pernas...

Por que é que chorava esse menino? Que imprecasse, que mentisse, que roubasse, que tivesse um canivete, estava certo e justo, mas se esse menino chorava, assim, como esses meninos não choram, então se desmanchava a ordem precária do mundo, e o mundo era só uma rua de portas fechadas e um menino que se senta numa soleira, e se encolhe, e pousa o rosto nos joelhos, e soluça...

- Que foi?

E como ela o tocasse, e ele a olhasse e dissesse: “foi nada”, e se esquivasse, e ainda mais se encolhesse, ela o deixou, lívida, e desapareceu no domingo entre os demais que passavam.


aveloh