sexta-feira, 6 de novembro de 2009
Guevara
...ainda mais te amarei depois da morte.
Elisabeth Barret Browning
Guerrillero heroico. Ciudad de La Habana, 1960. É assim a legenda da foto no postal que me trazem de Cuba. Essa foto famosa, reproduzida aos milhares em pôsteres e camisetas, nunca podia vê-la sem desconcerto; evocava-me uma imagem fugidia, como a de um sonho: está e já não está, perde-se para sempre.
Pois no dia em que me deram o tal postal alguma coisa se abriu e eu mergulhei por ali para um mar de lembranças. Lembranças corriqueiras; é que dessa vez chegavam em estado bruto, sem o desbaste com que a memória aplaina e suaviza os exageros do acontecido. Lembranças do tempo em que vi pela primeira vez essa foto de Guevara e, ao fim, do dia em que soube de sua morte.
Era um tempo terrível aquele. Densas nuvens vermelhas avolumavam-se no oriente e ameaçavam espalhar-se pelo resto do mundo. Milhões de pessoas viviam sem liberdade, sem moral e sem Deus, à sombra da foice e do martelo, símbolos da tortura, instrumentos com que se decepava ou esmagava a cabeça de quem se rebelasse contra a barbárie. Coisa do demônio. Dizia-se que lá nada se podia ter de seu e que se devoravam vivas as criancinhas. Talvez isso de devorar criancinhas fosse exagero, pois um povo precisa de crianças para seguir existindo, mesmo na ruindade. E, depois, meu pai tinha sorrido e dito “bobagem!”, quando certa vez eu lhe perguntara se era verdade essa coisa medonha. Mas, onde há fumaça há fogo, e “bobagem!” na boca do meu pai nem sempre era uma sentença, era às vezes um jeito de encurtar a conversa antes que ela se desatasse por onde ele não queria. É possível que quisesse me poupar de inquietude desnecessária; afinal, tudo se dava tão longe de nós, ainda mais longe que o outro lado do oceano. Não há distância que não se transponha, contudo. Há muitos anos viviam nos arredores uns colonos russos, gente que – falava-se – havia fugido do horror em que se transformara sua terra. Em determinado dia do mês vinham em bando até a cidade, acho que para comprar o que não produziam na colônia. Vestiam-se todos, até as crianças, como os dançarinos de um balé russo que eu vira uma vez no cinema. “Bonito”, era, mas eu tinha um medo danado daquela gente. “É gente comum”, meu pai dizia. Pois sim! E se não tivessem de fato fugido da ordem bárbara, se tivessem vindo aqui disseminar o Mal? É preciso sempre vigiar, e muito, porque o Mal usa de todos os artifícios para avançar. Então os russos não tinham até ajudado os americanos a vencer os alemães na guerra? E a Alemanha não tinha acabado em desgraça, aquele muro no meio, metade para o lado russo? Mas os alemães eram farinha do mesmo saco, gente ruim, que se danassem! Me arrepiava pensar que corria um tanto de sangue alemão em minhas veias; era pouco e vinha de longe, mas tinha sido o suficiente para que eu saísse muito branca, a cara larga e ossuda de soldado nazista. Era só. Por dentro mesmo eu era boa. O que mais espantava é que havia gente no mundo – aqui também – que simpatizava com o que acontecia na Rússia. Gente comum, podia ser um vizinho, um conhecido, uma pessoa simpática como a professora de história: faltou a uma, duas aulas, e na terceira veio a professora de religião e disse: “a partir de hoje vou dar também as aulas de história”. Correu depois o boato de que a moça era comunista, uma agitadora, e imoral. Vá lá se saber! O fato é que essa gente existia e era muito perigosa. Cuba tinha caído assim, pelas mãos de um homem terrível que acabara tomando o poder, e de um outro que nem cubano era, um argentino. Desse dizia-se ser ainda mais perigoso do que Fidel Castro. Tinha comandado a guerrilha cubana, que deu no que deu, e andava sabe-se lá onde, armando decerto outras guerrilhas. Não descansaria enquanto tudo não estivesse em poder dos russos. Chamava-se Ernesto “Che” Guevara.
Foi num dia em que pedi a meu pai que me ajudasse numa tarefa da escola e ele se lembrou de ter visto uma reportagem que me servia. Estávamos os dois lado a lado na mesa, ele folheando devagar a revista, e por um momento ficou distraído olhando as fotos de umas banhistas muito brancas, ossudas, cara larga de soldado nazista. “Tem mulheres que descendem direto da vaca”, disse de repente. Pronto, perguntei: “como eu?”. Fiquei olhando muito para ele. Não me respondeu. Vi armar-se a expressão familiar, o ligeiro arquear da sobrancelha direita, o sorriso sem que sorrisse. Então se confirmava o que já sabia: eu era feia. Ah, meu pai, meu pai era tão bonito! Jamais saberia o que é ser feia. Não podia ter mentido só dessa vez? Não, não podia, não mentia nunca. “Dói?” “Dói, mas é preciso”. Nem precisava mentir, bastava que tivesse dito “bobagem!” para mudar de assunto. Talvez quisesse dizer, mas a sobrancelha arqueou-se antes... Não é que meu pai fosse cruel. Não era. É que não gostava de mentir, e mesmo não podia: era todo expressão, tudo nele se anunciava antes que dissesse palavra: se estava feliz, bravo, triste, se assentia, se negava. Teria mentido, se pudesse. Uma vez estávamos os dois andando pelas ruas do centro e vi na vitrine um brinquedo que me deixou extasiada: “me compra isso, pai!?”. Suas sobrancelhas quase se tocaram e eu podia jurar que era dor o que sentia ali, naquele ponto da testa, enquanto se agachava e me dizia: “não posso. Eu te daria a lua, se pudesse. Não posso.” Ah, como me arrependi de ter pedido aquilo! Sabia que se vivia lá em casa sem folga e o quanto lhe doía não poder satisfazer nossos pequenos caprichos. Se era de comer o que um filho desejava, não se aquietava enquanto não lhe trouxesse. Às vezes chegava com um pacote, de surpresa, o rosto iluminado, ia distribuindo a cada qual a extravagância predileta. A minha era um potinho de cerejas ao marasquino, pequeno tesouro que ele me mostrava contra a luz, rútilos rubis. Ficava me olhando, quieto, até que se fosse o último rubi, o licor no fundo, a esquisita doçura.
Me daria a lua, se pudesse. Não podia. Pensava nisso, olhando-o folhear devagar a revista, quando vi pela primeira vez aquela foto. Foto de página inteira, estrela na boina, o rosto bonito e sério, o olhar duro, longe, longe. Olhar de tristeza funda. “Quem é?”, perguntei. “É Che Guevara”, ele disse. Não sei o que pensei. Quando enfim ouvi “pronto, achei, é isto”, foi como se despertasse de um longo sono sem sonhos. “Posso ficar pra mim?”, perguntei. “Claro”, ele disse.
Quantas vezes voltei a olhar aquela revista! E sempre na mesma página meu rosto incandescia e um solavanco modificava ligeiramente o eixo da Terra. Precisava ser bonito? Sim. Pois então não era Lúcifer o mais belo dos anjos? Não podia ser diferente. Acaso o diabo andasse por aí com carantonhas e fedendo a enxofre alguém o seguiria? É preciso vigiar sempre e muito, não se deixar seduzir pelo olhar dos anjos.
Mas aquele nem era o olhar plácido dos anjos, olhar de iludir ... Não era. Olhar de tristeza funda ... o nariz reto, o contorno bem desenhado da boca, cabelo em desalinho ... cabelo macio ... Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade Divina, sempre me rege, me guarda, me governa e me ilumina. Amém.
Foi pensando na necessidade que tinha Lúcifer de ser belo que me ocorreu perguntar a meu pai o que de verdade significavam a foice e o martelo na bandeira da União Soviética.
- Significam o que são: ferramentas do trabalhador: a foice, do camponês; o martelo, do operário.
- Mas por que estão na bandeira? O que eles querem dizer com isso?
- Acho que significa que são os trabalhadores que mandam na União Soviética.
- É!?
- É pra ser.
- E é verdade que lá ninguém pode ter nada?
- Não...mais ou menos... é que lá tudo é mais ou menos de todos.
-E isso não é bom?
- Se for mesmo assim...
- E em Cuba, também é assim?
- Agora é, acho.
- E ele é bom ou é mau?
- Ele, quem?
- Guevara.
- Ora... É uma pessoa como outra qualquer. Deve ter suas coisas boas e outras ruins.
E mais não disse e nem me deixou perguntar. Me fez prometer que não falasse dessas coisas com ninguém, ninguém, nem com ele mesmo. Obedeci. Desse dia em diante fiquei obcecada por dicionários e livros de história: tinha esperança que me explicassem o significado de certas palavras e o que se dava no mundo, realmente. Seria tão mais fácil se meu pai me falasse! Nada podia ser mais claro e vivo e verdadeiro do que quando ele me contava: sabia tudo o que os livros diziam e o que não diziam. Sabia histórias de amor de verdade. A de que eu mais gostava era a de Elisabeth e Robert Browning.
Elisabeth Barret, poeta inglesa, tinha cerca de 40 anos e vivia reclusa em seu quarto, por conta da saúde muito frágil. Seu contato com o mundo resumia-se às cartas dos leitores, que lhe chegavam às dúzias e ficavam o mais das vezes sem resposta. Eis que um belo dia lhe escreve um certo Robert Brwning, também poeta, dizendo: “amo seus versos e amo a senhora também”. Pedia permissão para visitá-la. Ela lhe responde que isso não era possível por ora, que não se sentia muito bem, que “na primavera, talvez...”. E na primavera seguinte se conhecem e se apaixonam, e ele a leva a respirar o ar puro do campo. Casam-se e se amam muito por treze anos, ao fim dos quais ela morre, suavemente, o rosto aconchegado no peito do marido. Deixa-lhe muitos sonetos de amor derramado. Parece que ouço a voz grave de meu pai lendo-me um deles. Não lhe distingo as palavras: é um contínuo rumorejar do silêncio ao fundo, e sons que dançam, e conversam, e se tocam, e ao se tocarem ficam cheios de sentido, e deslizam e se avolumam e se desmancham, como pequenas ondas na praia. E tudo recomeça. Claro, mesmo, só me ficou o último verso: “...ainda mais te amarei depois da morte”.
Mulher horrorosa essa Elisabeth Barret Browning, muito feia mesmo, se é que lhe era fiel o retrato que vi. Se um homem pôde amá-la tanto, então nem tudo estava perdido para mim. Quem sabe, no futuro, algo bom se revelasse sob minha feiura, e aí eu conheceria um homem gentil, capaz de ver em mim essa coisa amável, pérola na ostra, e seríamos felizes para sempre sempre.
“Quem não for católico pode sair!”. Era com secreta inveja que eu observava Sofia, a judia, e Álida, a protestante, sairem desobrigadas da aula de religião. Iam-se embora mais cedo, o sol no rosto, um restinho azul da manhã desfrutável. Lá dentro era sombra, cheiro de vela sem que vela nenhuma queimasse, minha culpa por não amar a Deus como amaram Jó e Abraão, minha crescente desconfiança do amor de Deus por Jó e Abraão. E aquela mulher... “hoje vamos começar a aula lembrando a missa de domingo; cada uma de vocês vem aqui na frente e conta para as coleguinhas o que mais gostou da missa no domingo passado”. Quando chegou minha vez me levantei e disse com a voz sumida que não tinha ido à missa. Ia me explicar: dizer que em casa não havia esse costume, quem sabe inventar uma desculpa qualquer, mas ela me repeliu, as duas mãos espalmadas na altura do rosto: “não se aproxime, não se aproxime, você está com o diabo no corpo”.
Devo ter chegado em casa mais branca que o normal naquele dia. Meu pai levantou os olhos do jornal que tinha aberto sobre a mesa e logo me perguntou o que havia. Contei. Ele sorriu e disse: “bobagem!”, do jeito de sempre, mas desta vez pousou a mão grande em minha cabeça, e isto foi o bastante para que o diabo se escafedesse. Sentei-me leve e refeita na cadeira ao lado, e dei de cara com a notícia: Guevara morto. Caído na selva boliviana. Belo. Morto e belo. Morto e belo. Morto. Nunca mais. Já não seria possível que o encontrasse por acaso na rua, nem que me olhasse, nem que seus olhos me contassem o que sabiam. Eram olhos baços de morto.
Morto.
Impossível comer naquele dia. Olhava para a comida em meu prato e o que via era o rosto do morto, o que morreu sem eu saber quem foi, o que eternamente vagaria entre céu e inferno sem que nem lá nem cá o reconhecessem. Era certo? Meu pai tinha que me contar, bastava que dissesse uma só palavra! Voltei-me de súbito para ele e ia lhe suplicar: uma só palavra. Não supliquei. Não pude. Meu pai não tocava na comida. Olhava-me intensamente, a cabeça um pouco inclinada para um lado, como se lhe pesasse demais o que pensava. E o olhar, o olhar era um tanto o que tinha quando me via comendo cerejas ao marasquino, um tanto era outra coisa... tristeza funda?...
Não sei quanto tempo levou para que me desvencilhasse daquele olhar. Quando enfim voltei ao meu prato, já não estava lá o rosto morto. Estava o outro, estrela na boina, bonito e sério; nem era triste, nem olhava para longe: olhava para mim, intensamente. Me daria a lua, se pudesse.
aveloh
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Já te disse que a melhor coisa que me aconteceu nesses últimos tempos foi você resolver começar esse blog?
ResponderExcluirvocê é um amorzinho, Zazá.
ResponderExcluirQuem sou?..... ah, sou o mano dessa que escreve isso tudo, bobonito..mamamaravilhlhooooso
ResponderExcluirA imagem final do Che Guevara parece responder a algumas das perguntas da narradora. Bonita imagem. Claudete
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