quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Lapso

Foi com enjôo e desgosto que o engenheiro oito interrompeu o que fazia e foi para a sala do engenheiro chefe. Não devia se tratar de assunto de trabalho: disso o chefe se desincumbia a toque de caixa, de passagem pela sala dos engenheiros, ou, se o caso exigisse, com a equipe reunida na enorme mesa da sala contígua. No gabinete da chefia a conversa costumava ser de outra natureza, em especial se precedida de chamado solene da secretária; ali, aquele homenzinho gostava de exercitar sua política de boas relações, que consistia em bajular o interlocutor e insinuar vagas maldades sobre a reputação e a competência dos outros, com muita sutileza, é claro, de modo que nenhum comentário seu pudesse ser reproduzido fora dali, indispondo-o com os outros engenheiros.

Indispor-se com qualquer dos engenheiros era coisa que o chefe evitava a todo custo, pois bastava uma ligeira turbulência na diretoria e todas as chefias abaixo dela rearranjavam-se conforme critérios insondáveis, de forma que quem num dia desfrutasse da privacidade do gabinete do chefe podia na manhã seguinte ocupar uma das inúmeras mesas da sala comum dos engenheiros ou ir desempenhar suas funções em outro departamento, ou no campo, ou alhures. E, como qualquer dos engenheiros estava apto a fazer o percurso inverso, tão importante quanto evitar que isso acontecesse era fazer com que cada um pensasse merecer sua amizade e especial consideração. Desnecessário dizer que o restante dos funcionários não tinha o mesmo tratamento; quanto mais baixa a posição hierárquica, menor a atenção dispensada pelo engenheiro chefe, de modo que quem ocupava as regiões mais sombrias do organograma, os pequenos funcionários da administração, os peões de obra, só podiam ouvir dele uma ordem ríspida ou uma descompostura grosseira, porque “essa gente, se você trata bem, não te respeita”. Isso excepcionalmente; de ordinário ele não lhes dirigia a palavra.

Pois lá estava o engenheiro oito, acomodado numa das poltronas que ficavam em frente à mesa do engenheiro chefe, esperando ouvir a arenga da vez com paciência estóica e redobrada atenção, porque o homem era especialmente hábil em colocar palavras na boca do interlocutor. Lá estava ele, meio nauseado, observando os olhos baços do chefe vagarem pelas linhas entre as paredes e o teto, pelas colunas das estantes, pelos objetos dispostos em rigorosa ordem sobre a mesa, como se procurassem as palavras precisas para dizer algo de extrema importância, e justo quando aquelas duas poças de água turva encontram o seu próprio olhar, e enfim a coisa começa, o engenheiro oito ouve abrir-se atrás de si a porta do gabinete, e uma voz de mulher que diz: “com licença, doutor...”. E ao ver o olhar do chefe voltar-se na direção da voz ele tem a súbita sensação de que algo estranho está acontecendo, e ele mesmo se volta e vê entrar a mulher vestida com o uniforme azul dos “Serviços Gerais”, acompanhada de uma outra mulher.

De fato era estranho, porque essa gente os “Serviços Gerais” não costumava pedir licença para entrar nos escritórios. Podiam chegar a qualquer hora do dia para executar um reparo, trocar uma lâmpada, servir o café, recolher o lixo,etc.. Era quase como se fizessem parte do mobiliário, do equipamento, e ninguém se incomodava com a presença deles, nem mesmo quando era preciso interromper uma discussão importante devido à barulheira que faziam com copos e xícaras, por exemplo. Tinham, em geral, mas as mulheres especialmente, os olhos postos no chão ou nalgum ponto fugidio, e de ordinário não falavam nada; quando falavam, era o essencial, algo como “café ou chá?”, açúcar?, “gelo?”.

Mas, por algum motivo indecifrável, naquele dia uma mulher de uniforme azul abriu a porta do gabinete da chefia, olhou nos olhos do chefe, e disse: “com licença, doutor, eu vim apresentar uma nova funcionária da limpeza, dona Rosália”. E isso era ainda mais estranho, pois ninguém jamais havia julgado necessário apresentar quem quer que fosse dos “Serviços Gerais”. Então o engenheiro oito começou a temer pela mulher de azul e pela outra, porque imaginou que o engenheiro chefe podia achar extremamente impertinente tal intromissão, e sobretudo porque aquela dona Rosália, funcionária nova, ainda sem o estigma do uniforme azul, era assim ainda mais lamentável, quase andrajosa, talvez um pouco descuidada do asseio de suas roupas puídas... Decerto aconteceu de a secretária ausentar-se no preciso momento em que as duas chegavam; do contrário ela teria percebido o incomum da situação e de alguma forma civilizada evitado que as pobres entrassem e se expusessem à grosseria, à crueldade de que o chefe era capaz com a gente humilde.

E porque a secretária não estava em seu posto naquele momento, como por um desses ínfimos acasos que precipitam os eventos do Universo a secretária se ausentasse naquele preciso momento, eis que agora a mulher de uniforme azul conduz uma andrajosa dona Rosália, funcionária nova da limpeza, ainda sem o uniforme azul a remediar-lhe a aparência lamentável, até o estupefato engenheiro chefe, sem suspeitar que a conduz e a si mesma para o desastre, a humilhação, como se já não lhes bastassem o desastre e a humilhação de existirem assim, de forma tão precária. E não há nada que o engenheiro oito possa fazer para salvá-las. De nada serve cerrar os dentes e contrair todos os músculos do corpo quando a mulher diz “este é doutor fulano, o engenheiro chefe”, e uma desavisada dona Rosália estende a mão maltratada para cumprimentá-lo, e inconcebível seria deixar escapar o grito que ecoa no cérebro: “não faça isso, dona Rosália, esse homem nunca vai lhe dar a mão!”. Que dona Rosália fique com a mão suspensa, humilhada, ainda não é nada; é certo que o chefe as escorrace do gabinete, primeiro por existirem em sua presença, depois por interromperem, sem qualquer motivo justificável, a conversa de dois engenheiros.

Ocorre que há dias em que tudo de estranho acontece. É com espanto que o engenheiro oito vê o chefe, talvez pego de surpresa, tocar frouxamente a mão grossa e curtida de dona Rosália, não sem que hesitasse, lhe parece. Aliviado, ligeiramente arfante da tensão do minuto anterior, quase chega a inclinar-se adiante para que quando ouça a mulher dizer “e este é doutor sicrano, o engenheiro oito”, ele prontamente aperte a mão escalavrada de dona Rosália, sem nenhuma hesitação, sem sombra de repugnância.

Mas a mulher de azul julga que já está bem cumprida a formalidade, e diz: “era isto, doutor, com licença”. E saem as duas, sem mais delongas, sob o olhar ainda estupefato do chefe, que enfim se refaz e passa da porta que se fecha às costas das mulheres para as linhas entre as paredes e o teto, daí às colunas das estantes, e se demora nos objetos dispostos em rigorosa ordem sobre a mesa, como a procurar a palavra justa que diga uma coisa extremamente importante.

aveloh

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