sábado, 25 de novembro de 2017

um conto dentro do romance

“Não houve um homem da tripulação que não o considerasse perdido; e, quanto ao próprio Queequeg, o que ele pensava de seu caso demonstrou-se de maneira convincente por um curioso favor que pediu. Chamou um dos marinheiros para junto de si, na cinzenta vigília matinal quando o dia apenas raiava, e, pegando em sua mão, disse-lhe que vira por acaso em Nantucket pequenas canoas de madeira escura, como a preciosa madeira de guerra  de sua ilha natal; e,  informando-se, veio a saber que todos os baleeiros que morriam em Nantucket eram colocados naquelas mesmas canoas escuras e a ideia de jazer desse modo muito lhe agradara; pois não diferia do costume de sua própria gente, que, depois de embalsamar um guerreiro morto,  o estendia em sua canoa e o deixava à deriva entre os arquipélagos estrelados; pois não apenas acreditava que as estrelas eram ilhas, mas que muito além do horizonte visível seus serenos mares sem continentes se mesclavam com os céus  azuis; dando assim origem aos brancos vagalhões da Via-Láctea. Acrescentou que estremecia  com  a ideia de ser enterrado com sua rede, segundo o costume marítimo, atirado como alguma coisa desprezível aos tubarões devoradores de mortos. Não: ele desejava uma canoa como aquelas de Nantucket, tanto mais apropriadas, sendo ele um baleeiro, pois, como os botes baleeiros, essas canoas-caixão não portavam quilhas; embora isso implicasse uma navegação bastante incerta e uma grande deriva para as eras sombrias.
Ora, quando esse caso estranho foi levado à ré, o carpinteiro  recebeu ordens de atender às vontades de Queequeg, quaisquer que fossem suas implicações. Havia a bordo uma velha madeira pagã, cor de caixão, que, no decurso de uma longa viagem anterior, havia sido cortada nos bosques nativos das ilhas Laquedivas,  e dessas tábuas escuras  recomendou-se que o caixão fosse feito. Não tardou mais o carpinteiro a receber a ordem do que, tomando a régua, encaminhar-se com toda a indiferente presteza que o caracterizava para o castelo de proa e tomar as medidas de Queequeg com muita perícia, tracejando regularmente o giz na pessoa do arpoador enquanto movia a régua.
[...]
De volta à sua bancada, o carpinteiro, por comodidade ou referência geral, transferiu-lhe o exato comprimento que o caixão deveria ter, e então tornou permanente essa transferência, talhando duas fendas nas extremidades. Feito isso, enfileirou tábuas e ferramentas e pôs-se a trabalhar.
Quando o último prego foi cravado, e a tampa devidamente aplainada e ajustada, o carpinteiro levou o caixão aos ombros sem esforço e seguiu com ele à frente, perguntando se ali já estavam prontos para usá-lo.
Ouvindo os gritos indignados, porém um tanto engraçados, com que as pessoas do convés empurravam o caixão para longe de si, Queequeg, para a consternação geral, ordenou que o objeto fosse imediatamente trazido até ele, e não houve quem o negasse; visto que, de todos os mortais, certos moribundos são os mais tirânicos; e, sem dúvida, uma vez que em pouco tempo eles nos darão tão pouco trabalho para sempre, os caprichos dos pobres diabos devem ser atendidos.
Debruçando-se na beira da rede, Queequeg demorou-se a contemplar o caixão com olhares atentos. Pediu então seu arpão, fez com que lhe tirassem o cabo de madeira e então ordenou que colocassem a parte metálica no caixão junto a um dos remos de seu bote. Ainda segundo sua vontade, foram espalhados biscoitos por toda sua volta interna: um frasco de água doce foi depositado à cabeceira, e um saquinho de pó de madeira lixada do porão posto a seus pés; e, sendo um pedaço de lona de vela enrolado à guisa de travesseiro,  Queequeg  apelou para que fosse levado a seu último leito, para poder experimentar de sua comodidade,   se é que havia. Ficou ali deitado sem se mover por alguns minutos e então pediu para que alguém fosse a seu embornal e lhe trouxesse seu pequeno deus, Yojo. Então, cruzando os braços sobre o peito com Yojo entre eles, solicitou que a tampa do caixão  (chamou-a de  escotilha) fosse colocada sobre ele. A extremidade da cabeça abria-se com uma dobradiça de couro e ali Queequeg permaneceu, deitado em seu caixão, mostrando um pouco de seu semblante sereno. “Rarmai” (serve; é confortável), murmurou por fim, e fez sinal para que o recolocassem na rede.
[...]
Porém, agora que ele aparentemente havia encerrado todos os preparativos para a morte; agora que o caixão se mostrava bem adaptado, Queequeg subitamente se recobrou; logo parecia não haver mais necessidade da caixa do carpinteiro; e, daí que, quando alguém expressava sua alegre surpresa, ele respondia, em substância, que a causa de sua repentina convalescença era a seguinte – em um momento crítico, lembrara-se de uma pequena obrigação, que havia ficado pendente em terra; daí que mudara de ideia sobre morrer: ainda não podia morrer, declarou. Perguntaram-lhe, então, se viver ou morrer era uma questão de seu desejo e prazer soberanos. Certamente, respondeu. Resumindo, era do pensamento de Queequeg acreditar que, se um homem decidisse viver, uma simples doença não poderia matá-lo: nada, exceto uma baleia, uma tormenta, ou qualquer força destrutiva violenta, estúpida e ingovernável  dessa natureza.
Ora, existe uma diferença digna de nota entre os selvagens e os civilizados; enquanto, digamos, um doente civilizado pode passar seis meses convalescendo,  um doente selvagem pode ficar quase curado em um dia. Assim, em boa hora, meu Queequeg recuperou sua força; e depois de ter permanecido sentado ao molinete por uns poucos dias indolentes (mas comendo com apetite vigoroso), de repente pôs-se de pé, esticou os braços e as pernas, alongou-se bem, bocejou um pouquinho e então, saltando para a proa de seu bote suspenso, e brandindo o arpão, declarou estar pronto para a luta.
Com uma selvagem extravagância, servia-se agora do caixão como arca; e, retirando as roupas de seu embornal de lona, arrumou-as ali. Passou muitas horas de folga entalhando a tampa com todo o tipo de figuras e desenhos grotescos; e parecia desse modo empenhado, segundo sua rudeza de modos, em copiar partes da intricada tatuagem de seu corpo. E essa tatuagem fora obra de um finado profeta e vidente de sua ilha, o qual, mediante tais sinais hieroglíficos, escrevera em seu corpo uma teoria completa dos céus e da terra e um tratado místico sobre a arte de alcançar a verdade; de modo que Queequeg, por seu próprio corpo, era um enigma a ser decifrado; uma maravilhosa obra em um volume; mas cujos mistérios nem mesmo ele próprio podia ler, ainda que seu próprio coração pulsante batesse contra eles; e esses mistérios estivessem, portanto, destinados a se desfazer no pó do pergaminho vivo em que estavam inscritos e ficar sem solução até o fim. E deve ter sido esse pensamento que sugeriu a Ahab aquela sua furiosa exclamação, quando certa manhã ele retornava da visita ao pobre Queequeg – “Oh, diabólica tentação dos deuses!“.”

Herman Melville, In Moby Dick.

sábado, 18 de novembro de 2017

Ainda no encalço da baleia

"Pois, pensou Ahab, se mesmo na felicidade terrena mais elevada sempre existe oculta uma certa mesquinhez insignificante, enquanto, no fundo, todas as dores do coração escondem um significado místico e, em certos homens, uma grandeza angelical; assim, sua análise diligente não desmente a dedução óbvia. Percorrer a genealogia dessas altas misérias mortais nos conduz afinal às primogenituras sem origens dos deuses; de modo que, diante de todos os alegres sóis fecundos e das rotundas  luas outonais, iluminando o suave farfalhar da colheita, é necessário dar-se conta disso: de que os próprios deuses nem sempre são felizes. O sinal de nascença, triste e indefectível na fronte do homem, é apenas a marca da tristeza dos que a imprimiram."

Herman Melville (na belíssima tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza), In Moby Dick