terça-feira, 26 de setembro de 2017

Anna Kariênina

Anna Kariênina é uma personagem tão chata que se demorasse mais um pouquinho eu mesma pinchava ela para debaixo do trem.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

uma página soberba


“Mas aqui quero aliviar minha consciência e admitir com sinceridade que eu não era um vigia muito bom. Com o problema do universo revolvendo em minha cabeça, como poderia eu – estando totalmente sozinho numa altitude tão propícia a pensamentos -, como poderia eu cumprir, senão levianamente, a obrigação de cumprir todas as ordens do navio baleeiro, “Mantenha os olhos bem abertos e sinalize tudo o que avistar”.
Deixai-me solenemente preveni-los aqui, proprietários de navios de Nantucket! Ao alistar vigilantes em suas pescarias, estai atentos a qualquer rapaz de rosto magro e olhos côncavos, propenso a meditações impróprias, e que se propõe de embarcar com o Fédon em lugar dos ensinamentos náuticos de Bowditch na cabeça. Cuidado com esse tipo, eu digo: as baleias devem ser avistadas antes de serem mortas; e esse jovem platônico de olhos fundos arrastará vosso barco dez vezes ao redor do mundo e não vos tornará um quartilho de espermacete mais ricos. Essas advertências não são desnecessárias. Pois nos dias de hoje a pesca da baleia oferece refúgio para muitos jovens românticos, melancólicos e distraídos, desgostosos das maçantes responsabilidades da terra, que saem em busca de emoção na gordura e no alcatrão. Childe Harold não raro se empoleira no topo do mastro de algum navio baleeiro desafortunado e declama com melancolia: -
“Desliza, oceano profundo e azul, desliza!
 Em vão dez mil caçadores de gordura te vasculham.”
          É frequente que esses capitães chamem a atenção desses jovens e avoados  filósofos, censurando-os por não se mostrarem devidamente “interessados” na viagem; como que sugerindo que estão de tal modo perdidos e desenganados para toda ambição honrada que, do fundo do coração, prefeririam qualquer coisa a avistar as baleias. Mas tudo é inútil; esses jovens platônicos sabem que sua visão é imperfeita; eles são míopes; de que adianta, então, forçar o nervo óptico? Deixaram seus binóculos de ópera em casa.
         “Mas seu vadio”, disse um arpoador a um desses rapazes, “já estamos viajando há três anos e tu ainda não avistaste nenhuma baleia. As baleias são tão raras quanto os dentes da galinha quando estás aqui em cima.” Talvez fossem mesmo; ou talvez houvesse um bando delas no horizonte distante, mas esse jovem distraído é de tal modo embalado pela cadência de ondas e pensamentos imiscuídos que, na letargia opiácea de um vago e apático devaneio, perde, por fim, sua identidade; toma o místico oceano a seus pés pela imagem visível da alma infinita, azul e profunda, que penetra humanidade e natureza; e tudo o que é belo, estranho, imprevisto e deslizante, toda barbatana de forma indiscernível que se erga, parece-lhe a materialização dos pensamentos ilusórios que povoam a alma, movendo-se continuamente por ela. Nesse enlevo, teu espírito segue as correntes rumo ao lugar de onde veio; torna-se difuso pelo tempo e pelo espaço; como as cinzas panteísticas de Cranmer espalhadas, formando por fim uma parte das praias do globo terrestre.
         Não há vida em ti, agora, exceto a vida concedida pelo gentil navio que balança; por ele, tomada ao mar; pelo mar, às inescrutáveis marés de Deus. Mas enquanto esse sono, esse sonho está em ti, mexe um pouco teu pé ou tua mão, solta-te completamente; e tua identidade retornará com terror. Estás suspenso sobre vórtices cartesianos. E talvez, ao meio dia, quando o tempo é mais belo, com um grito meio sufocado, caias através desse ar transparente no mar estival, para jamais voltar à superfície. Prestai muita atenção, vós, panteístas!”.

MELVILLE, Herman. Moby Dick. COSAC NAIFY, São Paulo SP, 2016