quarta-feira, 11 de março de 2015

Quatro poemas de Paulo Neves

O nevoeiro

A alma acredita
que há uma terra sem mal
para além do nevoeiro,
um vale encantado, improvável,
mas não menos real
que o pulsar e a antimatéria.
E ela põe-se a caminho, à espera
de que o nevoeiro se abra.
E de tanto atravessá-lo
e ser por ela atravessada
descobre enfim sua veste branca
e aceita que ela mesma é o nevoeiro.

Francesco

Não foi virtude
o que ele viu na pobreza
mas o ultimo véu da carne.
E a carne é somente um meio
de abordar o enigma
que há na carne,
de receber os estigmas
que só se leem na carne.

Maborosi

Da última vez que ela o viu,
ele saiu andando,
levava um guarda-chuva.
Seu amor sem esperança
ficou ali parado
como um coração na chuva.

Pasto

Meus olhos na relva
onde as ovelhas pastam.
O sol declina os tons do verde
e a paz do campo me domina
como um cheiro imemorial.
O frio da relva é macio,
dá vontade de ser um focinho
e fechar os olhos.
Eu sei um segredo da terra.
Eu pasto.



Paulo Neves, "in" viagem, espera, Companhia das Letras, SP, 2006