segunda-feira, 31 de maio de 2010

sopa com cleis


O vocabulário de cozinha que herdei de minha mãe tem duas palavras que não pertencem ao português e nem ao alemão, de onde certamente se originaram. A primeira é “estrói”, como ela chamava aquela farofa de manteiga, farinha de trigo e açúcar que vai por cima do cuque ou cuca, um bolo delicioso e bastante comum nas regiões de forte imigração alemã, como o Paraná e Santa Catarina. A outra é “cleis”, massa rústica e fácil de fazer, ideal para enriquecer sopas de qualquer tipo, e que, na falta de macarrão, pode muito bem substituí-lo. Prepara-se da seguinte maneira:
Bate-se um ovo com meia xícara de água e meia colher de chá de sal; vai-se acrescentando e misturando farinha de trigo até o ponto de uma massa pouco mais consistente que a de um bolinho de chuva, por exemplo; com uma colher de chá, vão-se apanhando os tantinhos de massa e soltando-os na sopa fervente e praticamente pronta (a massa não deve soltar-se sozinha da colher). Quando todas as massinhas estiverem sobrenadando, cozinhe por mais uns cinco minutos e sirva.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Introdução às "notas de uma cozinheira para um filósofo glutão e preguiçoso"


De minha avó paterna sei apenas que era uma caboclinha de uns Lopes lá de Ipiranga; que morreu devido ao desabamento de um paiol durante um temporal, três dias após o casamento de meus pais; que foi dela que minha prima Têca herdou os modos de princesa. Teria gostado de mim, essa avó? A outra, que felizmente conheci, com quem convivi até a idade adulta, não gostava. Mas essa, quem sabe? Às vezes imagino que a visito na casa que não conheci, mas havia de ser parecida com a de minha tia Helena, sua filha, mãe da princesa Têca. Sento-me no caixote de lenha ao lado do fogão, e enquanto ela cozinha e se move e anda com gestos extremamente delicados, vou perguntando coisas de seu tempo de menina, das gentes que vieram antes de nós, de seu casamento com o espanhol meu avô, de meu pai e tios quando pequenos. Ela a tudo me responde, lá do seu tempo, assim como eu aqui do meu tempo converso com os que ainda virão de mim, e que porventura precisem que lhes diga qualquer coisa. Eu entretanto não a ouço, porque tudo que sei dessa avó é a vaga notícia de sua delicadeza, impressa nos genes de minha prima. Bem que eu podia ter perguntado mais dela no tempo em que os que a conheceram ainda viviam, mas quando se é jovem a vida é eterna e são eternos os que nos rodeiam; de repente nos damos conta de que “estão todos dormindo/ estão todos deitados/dormindo profundamente”, e então a vida daqueles sobre os quais nada ou pouco nos contaram fecha-se em irremediável esquecimento. Assim também acontece com as receitas cujos segredos em tempo não perscrutamos; perdem-se para sempre, como a da broa de centeio de minha tia Helena. É por isso, para contar algo de mim e de meu tempo, a pretexto de ensinar minhas receitas, ou o contrário, que vou fazendo estas notas. Se me dirijo explicitamente ao filósofo, é porque dos três porquinhos é o que mais gosta da minha comida; mas é claro que tudo aqui é igualmente para os três.

domingo, 23 de maio de 2010

o retrato de minha tia, por van Gogh


A natureza extremamente compassiva de van Gogh levou-o a fazer inúmeros retratos de trabalhadores do campo, por cujos gestos - o de arar, o de semear, principalmente - parece que ele tinha certa obsessão. Compreendia ele muito bem que a lida da gente que mói no aspro não tem nada de idílica; é penosa e desgastante, aviltante muitas vezes, e é assim que em geral a retratava.
Essa “cabeça de camponesa com touca esverdeada” que aí está comove-me por dois motivos: primeiro porque a dor dessa mulher quase se pode tocar; segundo, porque ela me lembra muito uma tia querida, também camponesa, também devastada pela dura vida do campo com que tirou seu sustento.
Minha tia Helena era a irmã mais velha de meu pai, o caçula de vários irmãos. Sobreviveu vários anos a ele. Quando ele morreu, lá se vão 29 anos, e eu cheguei de longe para vê-lo morto, ela me recebeu como um animal ferido e se agarrou desesperadamente em mim como se eu tivesse o poder de trazê-lo de volta.
De quando eu era muito criança e morávamos todos na serraria da Saudade, eu me lembro que ela fazia uns biscoitos de polvilho diferentes de todos que há por aí, muito grandes, redondos e altos, assados em forno de barro. Guardava-os num enorme saco de pano branco que, aberto, exalava o cheiro inesquecível da delícia que ela me oferecia quando a visitava.
Bem mais tarde, quando meus pais e meus tios moravam já em Guarapuava, ela fazia quase toda semana uma broa de centeio que ninguém mais, nem mesmo suas filhas com a mesma receita, foi capaz de reproduzir depois que ela se foi. Também era assada em forno de barro, numa forma grande; ficava enorme e esparramada, em formato oval, com casca muito preta e rija e o interior rendado e consistente como o do pão italiano, só que preto, evidentemente. Meu pai, que a visitava regularmente, a cada fornada dessas ganhava uma broa. Quando eu ou um de meus irmãos “loucos por broa da tia” estávamos em casa, e calhava de ele ter ganhado uma dessas, ele por brincadeira chegava da visita à irmã com a broa sem nenhum embrulho bem acomodada no sovaco, que era, conforme dizia, para não repartir com ninguém.

van Gogh 1


Li outro dia a notícia de que a extensa pesquisa de um estudioso europeu levou-o à conclusão de que, ao contrário do que se alardeia por aí, a obra de van Gogh - sua genialidade - não tinha absolutamente nada a ver com sua loucura. Ora, eu não conheço detalhes nem o mérito e nem mesmo a natureza dessa pesquisa, mas sempre me bastou olhar para a obra de van Gogh para chegar à mesma conclusão . Me parece que se um artista encontra uma forma tão eloquente de expressão, o que, aliás é o que define um artista, isto só pode se dar com a porção mais lúcida de seu ser, ainda que ele tenha uma bela porção de louco varrido.
Nas pinceladas enérgicas e mesmo nervosas de sua fase madura, que o senso comum e bem educado vê como índice de seu destempero, de sua loucura, eu sempre vejo uma enorme alegria, a exultação diante da epifania, a inigualável sensação de poder que imagino ter um artista absolutamente senhor de seus recursos.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

a propósito,


A costela de porco e o toucinho que defumei outro dia com a ajuda diligente do filósofo, que gentilmente se dignou a trazer os olhos das coisas do céu para as brasas do fumeiro. Se ficou bom? Nem te conto.

quando o gato sai, os ratos e os cães aqui de casa comem frango de panela


Feito conforme uma receita "caipira do Paraná", que é a base do virado viajado. Este daqui com gostinho especial porque feito em panela de ferro antiga herdada de minha mãe e temperado com uma paçoca de alho e sal que defumei outro dia junto com umas costeletas de porco e toucinhos.
Eu não quero me gabar, mas hoje devo ter matado de desejo a vizinhança, com o cheiro deste frango. A princesa Karina, aí na foto mal podendo esperar, que o diga.

terça-feira, 18 de maio de 2010

virado de restos


Deve haver poucas pessoas no mundo que já não tenham aproveitado os restos de comida da geladeira (naturalmente entre aqueles com acesso à comida e a geladeiras) num virado ou num mexido qualquer; imagino que isto seja um hábito instintivo e universal. Qualquer coisa serve, mas basta - e para mim é melhor do que tudo - um tanto do feijão e arroz que sobraram do almoço ou de ontem e que, sozinhos, não compõem exatamente uma refeição completa, quer pela quantidade, quer pela qualidade. Sempre soube aproveitar bem essas sobras, mas depois de anos de prática e de observação dos truques de uma mineira que trabalhou aqui em casa, penso que estou perto da excelência. Como não sou mineira nem ciumenta das coisas que sei, ensino a quem quiser aprender, passo a passo:
1 – Uma duas horas antes do preparo do virado, pegue um bom pedaço de bacon com pele e congelado (lembre-se de que é sempre preferível cortar o bacon congelado, mesmo aquele em tiras fininhas, quando se quer pedacinhos pequenos e de forma homogênea). Corte o pedaço de bacon em fatias de aproximadamente dois centímetros, depois corte-as transversalmente em pedaços finos, de uns dois ou três milímetros, mais ou menos. Leve ao fogo numa frigideira, mexendo sempre para que os pedaços fritem homogeneamente e não queimem. Quando estiverem fritos, desligue o fogo e reserve, na própria frigideira da fritura.
2 – Coloque a sobra de arroz numa tigela e, se for o caso, desmanche com um garfo os pelotes, de modo que fique bem soltinho. Coloque sobre o arroz a sobra de feijão e misture delicadamente. Acrescente farinha de mandioca, de preferência em flocos, aos poucos, até uma quantidade suficiente para “soltar”os ingrediente anteriores. Reserve.
3 – Pique em cubinhos pequenos mas “mordiscáveis” um tanto qualquer de cebola, dependendo de quanto você aprecie este ingrediente. Numa panela grande coloque um pouco de óleo de soja e aqueça bem, até sentir o cheiro do óleo aquecido. Ponha a cebola sobre o óleo (tem que chiar) e mexa por alguns segundos, o suficiente para sentir o cheiro da cebola. É importante observar que a quantidade de óleo deve ser a mínima possível para soltar o perfume da cebola, porque mais gordura vai ser acrescentada no final do preparo do virado. Despeje sobre a cebola a mistura de feijão, arroz e farinha e vá virando delicadamente para aquecer, bastando amornar um pouco; nesta etapa, experimente o sal e corrija, se for o caso. Desligue o fogo e reserve.
4 – Leve ao fogo novamente a frigideira com o bacon, que já está pronto e frio. Ao aquecer, a pele vai pururucar completamente, ficando bem crocante. Cuidado para não queimar. Retire da gordura e reserve.
5 – E aqui, “o pulo do gato”: aqueça muito bem essa gordura que resultou do bacon frito, até o ponto de soltar fumaça. Quando isto acontecer, despeje a gordura quente sobre o virado reservado e devolva-o ao fogo, misturando bem e aquecendo completamente, por alguns minutos. Acrescente bastante cheiro verde picado (salsa e cebolinha) e vire mais um pouco, até sentir o perfume destes dois últimos ingredientes. Desligue o fogo, sirva o virado no prato, salpique com o bacon crocante que estava reservado.
“Voilá”.
Coma-se com pimentas vermelhas em conserva, picantes, como a malagueta e a dedo de moça, ou doces, como a biquinho. Vegetais de gosto pungente como o agrião, o nabo, o rabanete, combinados com uma fruta muito doce, como a banana e a manga, fazem um magnífico acompanhamento.

apesar de tudo ele me ama

segunda-feira, 17 de maio de 2010

o essencial


Um comilão esperto tem sempre à mão uns poucos temperos e ingredientes básicos com os quais é possível preparar refeições rápidas, deliciosas (nutritivas também, “mas quem liga pra isso?” perguntaria o filósofo) e requintadas. O requinte na cozinha, como em toda a arte, é o resultado de uma depuração, da limpeza de todo excesso, que alguns praticam instintivamente e outros, como eu, levam décadas para aprender.
O essencial, além de sal e açúcar, naturalmente:
Alho
Cebola
Salsa e cebolinha
Manjericão
Ovos
Tomates
Farinha de trigo
Farinha de mandioca
Arroz
Feijão
Pão
Óleo de soja
Óleo de oliva
Bacon

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Mais um

"No aconchego da grande mãe

Durante quarenta anos gerou filhos que, ampla e generosa, continuava a abrigar no ventre passado o tempo da gestação. Por que atirá-los no mundo se, mãe, a todos podia conter e alimentar?
Achando porém necessário dar-lhes boa educação, fez quatro vezes o serviço militar para atender às necessidades cívicas dos seus filhos homens, e completou oito cursos de corte e costura para garantir o futuro de suas filhas mulheres.
Já estava quase chegando à velhice, quando a doçura de netos começou a lhe parecer mais desejável do que tudo. Não resistindo, deitou-se enfim no centro da cama e, abertas as poderosas coxas, começou o esforço. Em vão suou lençóis e fronhas, em vão inchou as veias do pescoço. Passadas horas, passados dias em que sem descanso lutava para expelir, compreendeu: por amor e segurança seus filhos se recusavam a deixá-la. Nunca seria avó.
Então a tristeza abateu-se sobre ela. Emagreceram as pernas, emagreceram os braços. Só a barriga não emagreceu, vagando imensa pela casa. Mas a pele se fez cada vez mais fina, e em certas horas da manhã, quando a luz bate clara e penetrante sobre o ventre de opalina, já se podem ver os rapazes garbosos na ordem unida, e as moças que cosem infindáveis camisolas."

Marina Colasanti, InUM ESPINHO DE MARFIM o outras histórias, L&PM Editores S/A, Porto Alegre, 1999

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Ninguém fala dessa bela escritora


Sem novidades no front

Esperava que o marido voltasse da guerra. Durante os primeiros anos, quando ele certamente não chegaria, preparou compotas. Depois, a partir do momento em que o regresso se tornava uma possibilidade iminente, assou pães, e a cada semana uma torta de peras, enchendo a casa com o perfume açucarado que, antes mesmo do seu sorriso, lhe daria as boas-vindas.
Um dia chegou o vizinho da frente. No outro chegou o vizinho do lado. E seu marido não chegou. Voltaram os gêmeos morenos. Voltaram os três irmãos louros. E seu marido não voltou. Aos poucos, todos os homens da pequena cidade estavam de volta a suas casas. Menos um. O seu.
Paciente, ainda assim ela espanava os vidros de compotas, abria em cruz a massa levedada, e descascava peras.
Há muito a guerra havia terminado quando a silhueta escura parou hesitante frente ao seu portão. Antes que sequer batesse palmas, foi ela recebê-lo, de avental limpo. E puxando-o pela mão o trouxe para dentro, fez que lavasse o rosto na pia mesmo da cozinha, sentasse à mesa, enfim um homem no espaço que a ele sempre fora dedicado.
Encheu-lhe o copo de vinho, serviu-lhe a fatia de torta. Profunda paz a invadia enquanto o olhava comer esfaimado. E, esforçando-se para não perceber que aquele não era o seu marido, começou a fazer-lhe perguntas sobre o front.

Marina Colasanti, In “UM ESPINHO DE MARFIM e outras histórias”, L&PM Editores, S/A, Porto Alegre, 1999.

terça-feira, 11 de maio de 2010

autorretrato do menino João Lopes


Não é uma coisa linda?

Cecília 2



Confesso que nunca me acertei muito bem com essa poeta: às vezes o rigor da forma explícita (o rigor da forma sutil me agrada muito, veja-se em Carta, de Drummond, que é um soneto e nem se percebe; eu pelo menos não percebi até que me apontaram), muitas vezes as rimas que me martelam no ouvido, às vezes um lusitanismo que me assusta ... enfim, não é a minha poeta e para dizer exatamente o porquê eu teria que me dedicar a ela de cabo a rabo. Eu gosto nela é do “feminino”, coisa pela qual tenho certa obsessão, ainda que não saiba precisar exatamente o que seja. Mas o que quer que seja é quase sempre curto e sem heroismo.
Alguns exemplos:


Valsa

Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos
e nas tuas antigas palavras.
O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos
Que tornei a viver contigo enquanto o vento passava.

Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto
E modelou tua voz entre as algas.
Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege
E estudo apenas o ar e as águas.

Coitado de quem pôs sua esperança
Nas praias fora do mundo...
- Os ares fogem, viram-se as águas,
Mesmo as pedras, com o tempo, mudam.



Pausa

Agora é como depois de um enterro.
Deixa-me neste leito, do tamanho do meu corpo,
junto à parede lisa, de onde brota um sono vazio.

A noite desmancha o pobre jogo das variedades.
Pousa a linha do horizonte entre as minhas pestanas,
e mergulha silêncio na última veia da esperança.

Deixa tocar esse grilo invisível
- mercúrio tremendo na palma da sombra -
deixa-o tocar a sua música, suficiente
para cortar todo arabesco da memória...



Desventura

Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
teu lábio sorriu para todos os ventos
E o mundo inteiro ficou feliz.

Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
como um segredo que cai do sonho.

Depois, abri as mãos, - e perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.

Cecília Meireles, OBRA COMPLETA, José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1967

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Eu que fiz


Manta de crochê em lâ de tapeçaria. Pesa uns quinhentos quilos e é coisa praticamente inútil aqui no calorão de Campinas. Mas que é bonita, é.

sábado, 8 de maio de 2010

Cecília 1

Houve um tempo em que orientandos de meu marido, aqueles com os quais tínhamos maior afinidade, quase todos, na verdade, frequentavam em bandos a nossa casa. Eram dias agradáveis, com almoço e muito vinho, que invariavelmente desembocavam, com todos já meio “comovidos”, em sarau literário. Numa dessas ocasiões, em que cada um se aplicava em ler em voz alta um poema ou um trecho de prosa de sua predileção, fui em socorro de uma moça que trabalhava com a poesia da Cecília Meireles e queria muito falar um determinado poema; ocorria que lá pelo quarto ou quinto verso ela desatava a chorar, parava, recompunha-se, recomeçava, desatava a chorar, recompunha-se, recomeçava, e por aí ia. Por fim desistiu da tarefa e queria porque queria que alguém lesse em seu lugar; nenhum dos outros, já um pouco assustados com a sugestão do tema e dos primeiros versos, se habilitou. Eu, que como alguém uma vez disse, “não sou do ramo mas acompanho bem a conversa” inadvertidamente (eu não conhecia o poema) assumi a empreitada: “ora, que coisa, deixa que eu leio”. Li até o fim, mas deve ter sido um desempenho horroroso, pois logo percebi que eu teria que pensar em outra coisa enquanto lia, para não fazer o mesmo aguaceiro da moça.
Hoje, procurando um outro poema de que gosto muito, a propósito da maternidade, dei com ele. Não me atrevo nem a transcrevê-lo; quem quiser que o procure; chama-se “LAMENTO DA MÃE ÓRFÔ e está no livro MAR ABSOLUTO.
O outro, aqui vai:


A mulher e o seu menino

MULHER DE PEDRA,
que é do menino
que houve em teu doce
braço divino,
- nesse teu braço
que ainda está preso,
plácido e curvo,
à eterna idéia
de um vago peso?

“Vento do tempo
me estremeceu:
ele era pedra
da minha pedra,
mas nunca soube
se era bem meu.

Vento do tempo
passou por mim:
foi-se o menino,
deixou-me assim.
Foi sem palavras.
Tão pequenino,
que ia falar?
Talvez soubesse
para onde é que ia...
Eu não conheço
senão meu peito:
há outro lugar?

Têm vindo coisas:
não sei que são.
coisas que cantam,
coisas que brilham.
Mas ele, não.
E era tão feito
só de ficar
que, embora longe,
sinto-o comigo:
meu braço é sempre sua cadeira,
todo o meu corpo
seu espaldar.”

Mulher de pedra,
que é do menino?

“Vento do tempo
quebrou meu seio
para o arrancar.
A mim, deixou-me.
A ele, levou-o.
(Há algum lugar?)

Desde o Princípio,
comigo vinha.
Meu Nascimento
nele nasceu.
Foi-se – por onde? –
tudo que eu tinha.

Ele era pedra
Da minha pedra,
Porém é certo
Que nunca soube
se era bem meu...”


Cecília Meireles, OBRA POÉTICA, Cia. José Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1967