terça-feira, 25 de maio de 2010

Introdução às "notas de uma cozinheira para um filósofo glutão e preguiçoso"


De minha avó paterna sei apenas que era uma caboclinha de uns Lopes lá de Ipiranga; que morreu devido ao desabamento de um paiol durante um temporal, três dias após o casamento de meus pais; que foi dela que minha prima Têca herdou os modos de princesa. Teria gostado de mim, essa avó? A outra, que felizmente conheci, com quem convivi até a idade adulta, não gostava. Mas essa, quem sabe? Às vezes imagino que a visito na casa que não conheci, mas havia de ser parecida com a de minha tia Helena, sua filha, mãe da princesa Têca. Sento-me no caixote de lenha ao lado do fogão, e enquanto ela cozinha e se move e anda com gestos extremamente delicados, vou perguntando coisas de seu tempo de menina, das gentes que vieram antes de nós, de seu casamento com o espanhol meu avô, de meu pai e tios quando pequenos. Ela a tudo me responde, lá do seu tempo, assim como eu aqui do meu tempo converso com os que ainda virão de mim, e que porventura precisem que lhes diga qualquer coisa. Eu entretanto não a ouço, porque tudo que sei dessa avó é a vaga notícia de sua delicadeza, impressa nos genes de minha prima. Bem que eu podia ter perguntado mais dela no tempo em que os que a conheceram ainda viviam, mas quando se é jovem a vida é eterna e são eternos os que nos rodeiam; de repente nos damos conta de que “estão todos dormindo/ estão todos deitados/dormindo profundamente”, e então a vida daqueles sobre os quais nada ou pouco nos contaram fecha-se em irremediável esquecimento. Assim também acontece com as receitas cujos segredos em tempo não perscrutamos; perdem-se para sempre, como a da broa de centeio de minha tia Helena. É por isso, para contar algo de mim e de meu tempo, a pretexto de ensinar minhas receitas, ou o contrário, que vou fazendo estas notas. Se me dirijo explicitamente ao filósofo, é porque dos três porquinhos é o que mais gosta da minha comida; mas é claro que tudo aqui é igualmente para os três.

2 comentários:

  1. Tamanha sensibilidade encontro nesse texto narrado, não sei se é ficção ou um fato verídico, mas o que se narra com veracidade, torna-se verdade. E quantos contos fictícios são muito mais verdadeiros que muitos fatos reais. Mas acreditei na veracidade dessa simples e bela história, e assim será, então. Tudo aqui é tão bonito, as imagens escolhidas, os textos descritivos, amei esse blog. Pena não poder saber mais sobre o seu perfil. Mas não importa, percebo a sua alma lapidando-se enquanto vai permitindo que as suas letras se façam verdades. Parabéns! Uma ótima noite pra você.

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  2. Obrigada, Sandra, pela visita e pelo comentário tão amável. O que narrei aqui, assim como em todas as postagens com o marcador "crônica minha" é fato verídico, pelo menos até onde uma narração pode ser verídica (há quem diga que nenhuma narrativa pode ser nem inteiramente verídica nem inteiramente ficcional). As imagens - pinturas, desenhos, fotos - são minhas, exceto quando creditada outra autoria.
    Um abraço.

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