quarta-feira, 27 de outubro de 2010

arco íris feito em casa


Deus às vezes é pai

Anos atrás, num pleito em que concorriam ao governo do estado de São Paulo os candidatos Mário Covas e Paulo Maluf*, eu era a primeira de uma longa e empacada fila de eleitores numa seção eleitoral aqui de Barão Geraldo. Vindos do reservado da urna eletrônica ouviam-se uns “ai meu Deus, como é que é isso?, o que é que eu faço agora?”. Os mesários, do lado de fora, evidentemente, com a maior boa vontade tentavam orientar a eleitora dentro dos conformes da lei: “ a senhora precisa digitar o número do seu candidato... vão aparecer o nome e a fotografia dele... é ele mesmo?... se for a senhora confirma na tecla verde, senão a senhora cancela na tecla vermelha e começa tudo de novo... faz com calma que a gente não está com pressa”. Ao cabo de alguns minutos ouviu-se com alívio o sinal de votação encerrada, após o que a mulher aparece, em pânico, querendo por toda lei refazer o voto, porque tinha votado no candidato errado. “Mas minha senhora, isso não é possível, a senhora confirmou o voto, não dá para modificar agora”, dizia a presidenta da mesa. “Mas tem que ter como modificar, eu não queria de jeito nenhum votar no Covas e acabei votando justo nele”, implorava a mulher. E a mesária, para encerrar de vez o assunto: “minha senhora, nem que a gente quisesse, não é possível modificar voto confirmado. A senhora faz o seguinte: vai pra casa, toma uma água com açúcar, põe a sua cabeça tranqüila no travesseiro e entrega na mão de Deus, que Deus sabe o que faz.

* para quem não conhece, Paulo Maluf é um tradicionalíssimo político paulista que se vangloria de não se conseguir provar nenhum dos crimes de corrupção de que volta e meia é acusado.

coisas amáveis


segunda-feira, 18 de outubro de 2010

três poemas de Alberto Martins



1) Na padadaria com Flávio Di Giorgi

quando Horácio encontrou uma ânfora
com vinho fabricado
no ano de seu nascimento
`
"Ó tu, nascido comigo
quando Mânlio era cônsul..."

bebeu com júbilo
o vinho de sua infância

- dois mil anos mais tarde
Flávio sorve o café
no balcão de fórmica da padaria
canta de novo esses versos
depois sobe lentamente a ladeira de casa


2) Vira-lata

passa a maior parte do dia
no quintal
entre o corredor
e a porta da cozinha.
À noite quando sai
leva debaixo do pelo
a corrente de metal.
Finge que não dói.
Às vezes escapa
pela porta entreaberta
mas sempre volta.
Esfrega no chão
o corpo diminuído
e me olha fundo
mais fundo que um irmão.


3) Inutilidades domésticas

joguei no lixo
a velha fechadura
do quarto das crianças

as portas
que ela trancou
e abriu
os risos que ouviu
não ouviu
agora são - lembranças

só as chaves não sabem
e vagam pela casa
de gaveta em gaveta

em andamento

sábado, 16 de outubro de 2010

amor implacável



"Eu também tive nos meus belos dias” a mania dos versos. No comecinho da década de 80 cheguei a inscrever um livro de poemas num concurso literário, Cruz e Souza, com sincera esperança de que enfim reconhecessem meu valor. Anos depois meu marido deu com os originais desse livro, um tal “Álbum de retratos”, por “João Abóbora”. Ele, crítico honesto diante de coisa quase nada, não teve dúvida: delicadamente desceu-lhe o sarrafo, como se diz lá na minha terra, e de quebra, como nossa intimidade permitisse, pinçou dali um verso que é um primor, quase uma caricatura de imagem comum, para volta e meia usá-lo em nossas conversas, quando quer que sua fala tenha um efeito, digamos, expressionista.
Porém, como as folhas apenas grampeadas do “Álbum” já então ameaçassem se desfazer de tanto rolar pelas gavetas da indiferença, da “nem sequer menção honrosa”, ele amorosamente redatilografou-o, isso mesmo, datilografou-o, página por página, arranjou-lhe capa, deu-lhe enfim encadernação modesta mas segura. É este o volume que guardo em minha coleção de cacarecos, junto com o álbum de poesias de minha infância, o da foto; o original, grampeei-o de volta e dei para uma irmã que tinha por ele grande apreço.