O conto "Branca", fictício, eu o construí a partir do relato de meu pai sobre um episódio engraçado ocorrido em sua pequena cidade natal. Ao conceber a história, por alguma razão que um psicanalista adoraria explorar, apropriei-me de alguns nomes de minha família, de frases ouvidas aqui e ali, inclusive uma de um dos meus filhos quando bem pequenininho, carregada de poesia, e fiz alusão a acontecimentos verídicos, como a morte de minha avó paterna durante um temporal. Apropriei-me por fim da voz amada de um narrador amado, meu tio Darci, que tinha um jeito delicioso de contar um causo. Tive desde o começo inexplicável carinho pela personagem "Nininha"; mais tarde consegui identificar, no meu "baú de lembranças insuportáveis", a origem desse carinho, a pessoa real a quem a personagem remete, pessoa que aparecerá numa breve crônica a ser postada aqui futuramente.
Dois amigos acusaram-me o "tom e o clima roseanos" dessa história, coisa que eu, inocentemente, não tinha notado. Depois que me falaram ficou mais do que evidente que é um conto totalmente inaproveitável, ainda que eu trabalhe muito nele, inclusive porque o argumento chega a ser muito parecido mesmo com o de um conto de Guimarães Rosa, "Desenredo", que, juro de pés juntos, eu não conhecia quando escrevi o meu.
Todo este palavrório é para me desculpar por trazer mais uma vez a público esta história, que infelizmente chegou a ser publicada numa revista de literatura por um amigo tendencioso, antes que os outros dois me apontassem o defeito grave.
É que é para agradar minha prima Zaclis, que adora um causo, e certamente vai gostar deste. Os outros que me desculpem o mau jeito.
Branca
O Juca me contou. Aconteceu lá no Ipiranga, faz muito tempo.
O Emílio era um sujeito alegre e bom, todo mundo gostava dele. Pediam-lhe opinião, conselhos. Tinha umas idéias que ninguém mais tinha, e mesmo quando dizia o comum, o comum dito por ele era diferente, clareava o claro, consolava o consolável. Se era caso de muito sofrimento ele sofria junto, ajudava a sofrer: "a vida é assim, compadre, é bonita, e é triste; às vezes é tão triste que não tem o que se faça, é sentar-se por aí num toco e chorar".
Já se disse que o Emílio era alegre. Era. Mas quando falava assim, sentido, não falava à toa. Tinha uma vez sido golpeado pela vida, a dor foi muita, quase ele não sobreviveu. Achavam que era dessa dor que ele tirava a sabedoria estúrdia. Deu-se num meado de agosto, quando os ipês parecem absurdos de tão bonitos. O Emílio vivia com a primeira mulher e uma filha de dois para três anos, na mesma casa em que viveu depois com a Nininha, lá para os lados do Avencal. Saíram uma manhã bem cedo, ele para a serraria, a mulher com a filha para a casa de nhá Dina, mãe dele, ajudar a sogra numas tarefas de costura. Mal ele tinha pegado no serviço quando viu o dia escurecer de repente e o vento furioso na copa das árvores. Em vinte minutos relampeou e trovejou, as nuvens desabaram todas, e o sol apareceu de novo no céu limpo. Vieram avisar. Quando chegou na casa da mãe não tinha mais a casa, o que viu foi o mundo forrado de amarelo, o ipê imenso tombado pela raiz. E a mãe, a mulher e a filha, pálidas e imóveis em leito de lama e flores. Nenhuma sobrou que o consolasse das outras duas.
O Emílio desceu aos infernos. Ainda teve forças para as velar o resto daquele dia e a noite inteira; de manhãzinha o cortejo saiu, e ele foi se revezando em carregar um trecho cada uma delas. Jogou seus três punhados de terra e três vezes disse "a terra lhe seja leve". Depois não disse mais nada. Ficou esquisito, meio aparvalhado.
Nhá Mira o levou para casa dela, era sua madrinha de batismo. Madrinha naquele tempo era diferente, em tudo tinha que ser a mãe na falta da mãe, mas não foi por obrigação que cuidou dele. Gostava dele, como todos, gostava porém de um jeito que ninguém mais podia gostar. Quando o Emílio nasceu nhá Dina ficou muito fraca, daí que o menino passava muito tempo junto da madrinha, aproveitando o leite farto do Juca, nascido no mesmo tempo. Por isso o coração de nhá Mira havia de ver o afilhado sempre do mesmo jeito: uma coisinha de nada agarrada em seu peito, olhinhos muito abertos pregados nos seus.
Pois nem os cuidados dela adiantaram. O Emílio não comia, não andava, não falava, parece que nem mesmo entendia o que falavam com ele. Em um mês ficou em pele e osso. Quando o médico disse que precisavam levar para Ponta Grossa, internar no Franco da Rocha, nhá Mira desesperou. Podiam então pedir que ela largasse o filho num hospício?
- É hospital de todo tipo de doença nervosa. A nhá Mira sossegue, tenho por lá muita gente conhecida, hão de cuidar dele como se parente meu fosse. Garanto. Lhe custa, eu sei, mas se não for assim é questão de dias e ele morre.
A madrinha consentiu, varada de dor. E varada de dor ela passou oito meses, que foi o tempo que levaram para trazer o Emílio do fundo do inferno. Enfim ele veio, abatido, encovado, mas era ainda o mesmo Emílio alegre e bom. Alguma coisa nele tinha se modificado, é verdade. Acaso alguém passa por esses abismos da vida e fica igual ao que era antes? Não fica. Pois o que mudou no Emílio foi que tudo o que ele já era se acentuava. Era bom, ficou bom demais; era alegre, sabia agora de uma alegria escondida nas coisas, onde ninguém suspeitava.
Por vários meses esteve ainda muito magro, muito pálido. Nhá Mira se desdobrava em pudins e garrafadas milagrosas, ansiosa por fazê-lo engordar um pouquinho que fosse. Ele gostava de brincar com a aflição dela; tomava o rosto da velha nas mãos e dizia: "a madrinha deixe estar, que daqui a cem anos lhe garanto que estou no peso certo". Brincava, mas ia devorando doces e poções da madrinha, ou porque não gostasse de a ver aflita, ou porque também tivesse pressa de se ver inteiro de novo. Cuidava-se. Uma vez por mês ele voltava para uma consulta no Franco da Rocha, até que um dia os médicos lhe disseram que estava bom de todo e pronto para outra. Dessa vez ele veio com a novidade: que ia se casar.
Nhá Mira primeiro gostou da idéia de o ver casado, tomasse outra vez o rumo da vida, e logo, que a vida é curta; depois desgostou, quando soube com quem. A moça ela conhecia, era Nina de Tal, filha de um juiz de direito, gente de posses lá em Ponta Grossa. Coincidiu de os dois se conhecerem no hospital, que lá a moça esteve uns tempos internada, para tratamento dos nervos. Fizeram logo amizade, viram-se outras vezes, quando ele ia a Ponta Grossa para as consultas. Acabaram apaixonados, a família dela não se opunha, era natural que se casassem.
Nhá Mira não era dada a romantismos. Era mulher, e vivida, tinha aprendido bem a economia da vida. Tudo ela pensava e pesava, quase não havia o que escapasse de seus noves-fora; chegava a parecer impiedosa, às vezes. Que a Nininha não fosse para o bico do Emílio, isso é o que ela devia estar ponderando. Está certo que ele era moço bonito, vistoso, e amável, compreendia-se que muita mulher se enamorasse dele. Também era sério, trabalhador, mecânico de confiança do alemão dono da serraria, emprego garantido. De modo que podia dar vida digna à mulher, mas vida simples, sem o fausto e as facilidades a que essa Nina estava acostumada. Passado o fogo da lua de mel, a moça na certa se desencantava, fazia sofrer o marido. Ainda mais, sendo moça nervosa... Admirava que a família dela consentisse. Devia ser esse o assunto da conversa reservada que a madrinha teve com o Emílio, que de verdade mesmo ninguém nunca soube. O que se sabe é que os dois entraram e saíram da conversa com a mesma disposição: a velha, amofinada; o Emílio, pronto para se casar com a Nininha.
E casou. A cerimônia foi breve e simples, sem convidados, na casa mesma da moça. No mesmo dia o juiz levou os noivos até a casinha no Ipiranga, despejou os dois lá, mais as canastras de enxoval e alfaias da filha, e deu sua missão por encerrada. Nunca mais apareceu, nem ninguém de sua gente.
A madrinha no começo foi seca demais com a moça, coisa que naqueles dias ninguém entendeu direito. Ciúmes de mãe? Isso não era. A Nininha não se deu por achada: tratava com respeito a sogra postiça, não a bajulava, não forçava nada para vencer a secura da velha. Mas, como dizia o Emílio, tudo na vida se arruma, se é tempo da vida. E arrumou-se que ele, casado, entrasse logo a ganhar carnes e viço; nhá Mira, vendo que a moça podia assim fácil o que seu desvelo de mãe não pôde, foi se amansando, ficou doce. E quanto mais o Emílio viçava, mais ela se adocicava com a Nininha. Acabaram amigas, mais que isso: a velha, não tendo parido mulheres, mãe amorosa da filha que lhe coube por dois acasos; a moça, filha dedicada dessa mãe que o acaso pôs no lugar da que a esquecia. Tinha outra coisa ainda entre as duas, difícil de explicar: era um entender-se quieto lá delas, um negócio que dava para sentir no ar, sem que nunca se soubesse onde é mesmo que se realizava. Era assim.
A Nininha na verdade era pessoa fácil de um qualquer gostar. Delicada, atenciosa com todos, nunca pareceu desgostosa da vidinha simples que levava com o marido, decerto muito mais modesta que a que teve na casa do pai. Tinha gosto na lida doméstica, trazia cheirosa a casinha deles, trastejada com finura e despojamento, os linhos e louças muito brancos de suas canastras. Era bonita, a Nininha. De uma beleza sem exagero, sem artifício, lembrava um amor-perfeito, uma réstia de cebolas pequenas, uma estradinha de terra no meio do pasto verde. O Emílio estando por perto ela parecia um girassol: grudava nele uns olhos amolecidos de ternura, e a beleza dela se iluminava com a ternura que olhar do marido lhe devolvia.
Iam vivendo. Gostavam da vidinha que viviam. A bem dizer, a vida de um pobre, naquele tempo e naquelas lonjuras, era mais ou menos a mesma vida de todos, e, mesmo, era boa. É que eles pareciam saber que era boa já enquanto a viviam, e iam vivendo o miúdo e o de todo dia com o mesmo gosto com que dançavam os bailes do Clube Operário, pé de valsa que eram, todo mundo admirado da graça deles dançando. Tinham muito zelo um com o outro. A Nininha não admitia que o Emílio almoçasse a bóia amanhecida que os cabras da serraria levavam de madrugada para requentar no serviço; organizava-se para estar com o almoço pronto e fresco lá pelas tantas da manhã, arranjava tudo entre dois pratos de sua louça mais bonita, embrulhava em papel grosso para não esfriar, amarrava com um pano muito branco e saía correndo levar para o marido. Chegava na serraria exato quando apitava onze horas, pedia a alguém do escritório que entregasse ao Emílio; não gostava de interromper a camaradagem lá deles na folga do almoço. Na volta do serviço, à tardinha, ele tratava de arranjar pelo caminho um mimo qualquer, uma fruta do mato, uma flor, uma pedrinha bonita... punha dentro da louça que tinha ido com a bóia. Era assim.
Sendo assim, dava para acreditar que essa mulher traísse o Emílio? Quem primeiro desconfiou foi o Doca, por causa de um sujeito de fora, um viajante que andou lá pelo seu armazém. Esse homem viu a Nininha passando na rua e fez um comentário vago, malicioso. O Doca quis duvidar, por na conta da bazófia do sujeitinho, mas depois andou ouvindo outra coisa, e mais outra. Por fim, ele e o Juca, eles mesmos por acaso viram o que queriam nunca ter visto: a Nininha, afogueada, saindo com um cabra estranho de um paiol velho que havia por ali num lugar meio retirado, perto de um capão. A pá de cal foi quando o Doca andou por Ponta Grossa, especulando a vida da moça. Pois que lá todo mundo contava a mesma história: que ela era uma ordinariazinha, vergonha da família importante; que ela nunca sofreu dos nervos, que nada, que o pai a tinha internado para remediar a honra, dizer que ela fazia o que fazia por que fosse meio desmiolada.
Então, muita coisa se explicava...
O Juca sofreu, não sabia o que fizesse, desejou nunca ter sabido de nada, que, sabendo, de todo jeito era como se também traísse o Emílio: se contava para ele, sentia como se o traísse junto com a vida; se não contava, traía junto com a Nininha. E como gostava do Emílio! Criaram-se juntos e amigos, foram irmãos de leite e de diabruras no quintalão sem fim de nhá Mira, compartilharam as carícias dela, juntos muito apanharam da velha. Gostava dele mais do que gostava dos irmãos de sangue.
O Doca também não sabia o que fazer, daí que tiveram a idéia de entregar o caso nas mãos da mãe. Bobagem. Nhá Mira não estava sabendo pensar, era só um bicho com a cria no peito. Queria o menino sossegado, que nada lhe doesse. Isso foi o que eles imaginaram, porque a velha mesma não lhes deu razões. Saiu com eles nas costas, disse que se cuidassem bem de suas vidas já estava mais do que bom, que quem desfeiteasse a Nininha ia é se haver com ela, nhá Mira.
Covardia deles, mesmo. Erraram. Deviam ter ido direto falar com o Emílio, por mais duro que fosse. Ele de tudo sabendo, e querendo, aí sim, estava certo que se envolvesse nhá Mira, que ela com autoridade de velha e de mãe ajudasse a devolver a moça e seus baús de brancuras lá para o juiz. Então que numa tarde se encheram de coragem, o Emílio ia passando pelo armazém, de volta do serviço, e os dois o chamaram para uma conversa. Ele parece que adivinhou que coisa boa não era; ficou muito pálido, sentou-se.
- Vocês me falem, eu agüento.
Foram falando, nada esconderam. O Emílio, enquanto ouvia aquilo, quieto, ia recobrando o sangue fugido. Quando viu que tinham acabado, e ele na inteira posse de sua cor e alegria, disse:
- Isso? Arre, que vocês me assustam! Pensei que tinha acontecido alguma coisa com a Nininha.
- Homem! Se estamos lhe dizendo que essa mulher lhe trai!
- Pois, Doca, eu lhe digo: conheço a Nininha e o que se passa na vida dela como a palma da minha mão. Ela não me trai. Nunca ela me traiu.
E levantou-se, com a cara limpa que ele sempre teve, pediu licença para se apressar, porque ia ter o baile da primavera no Operário, e ainda queria colher para a Nininha umas pitangas gordas que tinha avistado de manhã, no caminho para a serraria.
Pode um vivente comum pensar disso coisa sensata? O Juca também não pôde. A bem dizer ele pensou foi nada, não quis. Sentia que lhe tiravam o mundo dos ombros, e a mesma impressão desde menino, de que o Emílio sabia de coisas que nunca ele ia saber; que o Emílio quando dizia um isso, isso de um jeito ou de outro era sempre a verdade.
Também o Juca foi ao baile naquela noite. Tocavam "Branca" quando chegou, ele lembrava bem, porque lá chegando viu o Emílio e a Nininha. E mesmo tendo estado com eles até velhos, era aquela a imagem que guardava deles: os dois bonitos e namorados, se olhavam e se olhavam, valsando no meio do mundo em volta.
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Só posso dizer que é imensamente lindo.
ResponderExcluirMe senti muito honrada.
Adorei.