Fazem dó e compaixão os mortos que hão de ser enterrados nos cemitérios das cidades. Quando postos no carro fúnebre e conduzidos através das ruas, é como se resmungassem e gemessem lá dentro do caixão. Alguns há que lastimam não haja penachos em seus coches mortuários. Outros se põem a contar as coroas, e não ficam satisfeitos e contentes. E há também os que, seguidos apenas de uma, duas, três carruagens, se sentem humilhados.
De tais cousas jamais precisam tomar conhecimento os mortos. Mas a gente das cidades não sabe de forma alguma como prestar homenagem àquele que vai dormir, lá dos sete palmos, o sono eterno. Compreendem-no um tanto melhor, porém, nos distritos rurais, e nenhures tão bem quanto na paróquia de Svartsjö, no Värmland.
Se morres na paróquia de Svartsjö, fica logo sabendo que ganharás um caixão em tudo igual ao que cabe aos demais – um caixão decente, forrado de preto, da mesma classe que os caixões em que o juiz distrital e o delegado de polícia baixaram à sepultura o ano passado. Isto porque o mesmo marceneiro faz todos os caixões, e só dispõe de um único modelo: nenhum há de sair melhor ou pior do que o outro. E fica sabendo também, pois tantas vezes o tem visto, que serás transportado até a igreja numa carroça de trabalho, adrede pintada de preto para o ato. Não deves de modo algum preocupar-te com penachos, cousas que todos desconhecem na paróquia. E fica sabendo, ainda, que os cavalos levarão xairéis, presos aos arções das selas, e hás de ser conduzido tão amorosamente, e de modo tão solene, quanto um simples campônio.
Mas não te alarmes, caso não tenhas tido coroas em número suficiente: não haverá uma só flor no féretro. Exige a praxe que o esquife seja forrado de preto, e rebrilhante, e nada impeça de vê-lo bem. Não tens de preocupar-te se terás um cortejo bastante numeroso, porquanto as pessoas que moram na tua aldeia sem dúvida te acompanharão todas juntas. Não procures saber se há quem chore ou soluce em torno do teu ataúde. Nunca se choram os mortos quando estes já se encontram no alto do outeiro, diante da igreja de Svartsjö.
Não se choram mais lágrimas por um rapaz novo, cheio de vida, que baqueou justamente quando começava a ser o arrimo dos seus pobres e velhos pais, do que por ti. Colocar-te-ão sobre dois cavaletes de cor preta, ante a porta do paço paroquial, e toda uma multidão, a lanço e lanço, se irá ajuntando em derredor de ti. As mulheres todas levarão os lenços nas mãos. Mas ninguém há de chorar: todos os lenços estarão bem dobrados, e nenhum deles há de procurar os olhos... Não receies que se derramem por ti tantas lágrimas quantas pelos demais defuntos. Haveriam de chorar se fosse o caso, mas tal não acontece.
Podes compreender agora que, se houvesse pesar em demasia sobre uma campa, quão triste não haveria de sentir-se aquele que ninguém pranteia! Eles sabem o que fazem, lá em Svartsjö. Eles se portam como é de uso e costume ali há muitas centenas de anos.
Mas, enquanto permaneces no outeiro da igreja, tu és um ser poderoso e magnífico, posto não hajas recebido flores nem lágrimas. Ninguém vai à igreja para saber quem és. E assim, em silêncio, aproximar-se-ão do ataúde e de pé o contemplarão. A ninguém ocorre ofender o defunto compadecendo-se dele. Ninguém manifesta outra opinião senão a de que foi bom que chegasse a sua hora.
De maneira alguma sucederá como na cidade, onde serias sepultado num dia qualquer da semana. Em Svartsjö, terás sepultura num domingo, de modo que em torno de ti esteja reunida a comunidade inteira. Lá verá, ao lado do teu féretro, tanto a jovem com quem dançaste na última noite de São João como o homem com quem fizeste troca de cavalos na última feira. Terás o mestre-escola que te ensinava a ler quando eras menino, e que de ti se esqueceu, embora ainda te lembre tanto dele; e terá também o velho parlamentar que nunca dantes te havia cumprimentado. Não, não é como na cidade: lá os homens mal se virariam para ver-te à tua passagem.
Quando chegam as compridas correias e as põem debaixo do caixão, não há ninguém que não acompanhe com interesse todos os movimentos.
Não imaginas que espécie de zelador tem a igreja de Svartsjö. É um velho soldado, com uns ares de marechal-de-campo. Traz os cabelos cortados à escovinha, retorcidos os bigodes, e usa cavanhaque; é esbelto e alto, sempre empertigado, passo leve e firme. Aos domingos veste uma sobrecasaca bem escovada, de bom tecido. Na verdade, é o mais belo ancião que se poderia arranjar. É ele quem vai na frente, à testa do cortejo. Depois dele vem o porta-maça.
Escusado dizer que o porta-maça faz pobre figura em comparação com o zelador da igreja. Pode-se dar que o chapéu lhe fique demasiado grande, ou fora de moda. Nota-se que está bastante constrangido ali, mas desde quando não se sente contrafeito um porta-maça?
Assim chegas, tu mesmo, no teu féretro, com os seis carregadores, e vêm-se aproximando também o pastor e o sacristão, os moradores da aldeia, e a paróquia em peso. Todos os fiéis te acompanham ao campo-santo: disto podes estar certo.
Mas agora prestarás bem atenção a uma cousa: vê como parecem humildes e pobres esses que te acompanham. Não há entre eles pessoas enfatuadas como as da cidade; só a gente simples e modesta de Svartsjö. Apenas se encontra ali alguém que é deveras grande e digno de reverência, e esse alguém és tu, que morto estás. Os outros, coitados, terão de se levantar no dia seguinte para recomeçarem as suas duras e árduas fainas; sentar-se-ão em suas velhas e míseras choupanas, e tornarão a vestir as suas velhas roupas esfarrapadas. Os outros, coitados, hão de continuar sempre atribulados, atormentados, torturados, oprimidos, humilhados pela miséria.
Se um forasteiro marchasse a teu lado até à cova, ficaria mais comovido ao ver as pessoas que tomam parte no cortejo fúnebre do que ao pensar em ti, que morto estás. Não precisas nunca mais examinar a gola de veludo da casaca, a ver se a orla se lhe começa a desbotar pelos rebordos; já não é mister dobrares cuidadosamente o lenço a fim de lhe esconderes o rasgão. Nunca dos nuncas necessitarás pedir aos mercadores da aldeia que te vendam fiado; e não sentirás jamais como te vai fugindo a energia para o trabalho, e assim não estarás à espera do dia em que te convertas num pesado fardo para a comunidade.
Enquanto te acompanham ao túmulo, não há um só dentre eles que não imagine que é preferível morrer, que é melhor ir para o Céu, em meio às brancas nuvens da manhã, do que sofrer sempre esta vida cheia de tantas vicissitudes.
Quando se chega ao muro do cemitério, onde a cova está aberta, substituem-se as correias por grossas cordas, e os que te conduzem o féretro sobem para os montes de terra solta e te fazem baixar à tumba.
Concluído isto, o sacristão se aproxima da beira do sepulcro e põe-se a cantar: - “Eu vou para a morte...”
Ele canta o salmo sozinho: nem o pastor nem ninguém da congregação o ajuda. Mas o sacristão tem de cantar; e, por mais rijo que sopre o vento norte, por mais abrasador que lhe bata o sol no rosto, ele canta.
O sacristão já é muito velho, e não lhe resta muita voz para cantar. Sabe que esta já não soa tão melodiosa agora, ao cantar para o morto no fundo da sepultura, como o era nos dias da sua mocidade, mas cantará, porque este é o seu dever.
Pois, fica sabendo, no dia em que lhe faltasse de todo a voz, de modo que não pudesse cantar, ver-se-ia obrigado a pedir demissão do cargo, e seria o mesmo que lançar-se na mais negra miséria.
Por isso, toda a congregação se toma de ansiedade sempre que o velho sacristão principia a cantar: todos perguntam a si mesmos se essa voz se agüentará firme através de todos os versículos. Mas ninguém o acompanha, nem um só dos fiéis presentes, porque não é possível tal cousa, não é de uso. Jamais se canta à beira do túmulo em Svartsjö. Na igreja só se canta o primeiro salmo, nas matinas de Natal.
Contudo, se alguém prestasse bem ouvidos, haveria de observar que o sacristão não está cantando sozinho. Em verdade, outra voz o acompanha, mas o tom lhe é tão precisamente igual que as duas vozes se misturam, como se fossem uma só.
Essa outra voz, que canta em acompanhamento, pertence a um velhinho que traja uma comprida vestidura de burel pardo. É mais idoso que o sacristão, mas solta tudo quanto tem de voz para ajudá-lo.
E essa voz, como foi dito, é absolutamente do mesmo timbre que a do sacristão, e tão semelhantes são as duas que não se pode deixar de ficar maravilhado.
Mas repara-se de mais perto, e vê-se que o velhinho do burel pardo é, deveras, muito parecido com o sacristão: o mesmo nariz, a mesma barba, a mesmíssima boca, somente um tanto mais velho e mais maltratado pela vida. Compreende-se logo que o pobrezinho é irmão do sacristão, e fica-se sabendo, por igual, o motivo que o fez acudir em auxílio deste.
Imagina só: jamais ao velhinho lhe correram bem as cousas neste baixo mundo, sempre perseguido da má sorte, e de uma feita abriu falência, arrastando o sacristão na sua desgraça. Ele sabe que, por culpa sua, o irmão tem de lutar com sérias dificuldades.
O sacristão tentou endireitar-lhe a vida e os negócios, mas sem resultado, porque o velhinho não é daqueles a quem se possa dar a mão: ele sempre carregou consigo o infortúnio, e nunca teve a necessária força para vencer.
Ao invés, o sacristão tem sido a luz refulgente da família, enquanto o outro não tem feito senão receber e receber sempre, sem nada restituir.
Oh! Falar em restituir, santo Deus! Ele que é tão pobre! Devíeis, Senhor Deus, ir ver a choça em que mora, lá no bosque!
Bem sabe o velhinho que tem sido um fardo pesado, a tristeza e o tormento, sim, um suplício, para o irmão e para todos os seres humanos.
Mas considera: nos últimos tempos tornou-se importante, e presentemente correm-lhe os negócios à feição. Já agora, pode restituir alguma cousa. E é o que está fazendo. Ajuda o irmão, o sacristão, que tem sido o seu farol, a animação e alegria em todos os dias da sua vida. Ajuda-o neste instante a cantar, a fim de que possa manter-se no emprego.
O velhinho não vai à igreja, por lhe parecer que todos reparam em sua pessoa, pois não tem roupas pretas domingueiras. Mas sobe a encosta da igreja aos domingos, a ver se lá em cima há algum caixão por sobre os cavaletes pretos, diante do paço paroquial. Se encontra algum, acompanha-o até o cemitério, e faz o sacrifício de apresentar-se com a sua velha estamenta parda, e ajuda o irmão com a sua desafinada voz.
Ele ouve perfeitamente quão mal lhe sai o canto, e, assim, coloca-se por detrás de todos, e não ousa acercar-se do túmulo. Mas canta, ah! isto ele o faz. E não seria muito perigoso se a voz do sacristão falhasse numa que outra nota, porque “ele” ali está para garanti-lo...
No cemitério ninguém se ri do canto. Mas, de regresso aos lares, e desfeita a recolhida unção, falam do que passou na igreja, e riem do canto do sacristão – riem tanto dele como do irmão. Não se zanga o sacristão com tal cousa, pois não é do seu temperamento, mas o velhinho sofre com isto e preocupa-se. A semana inteira treme ao só pensamento do domingo, mas, chegado este, e apesar de tudo, ei-lo a subir pontualmente ao cemitério e cumprir o seu dever.
Tu, porém, lá do fundo do caixão, tu não pensas tão mal assim de tais cânticos. Achas até que é boa música. Não é verdade que gostarias de ser enterrado em Svartsjö só por causa desses cantos?
Diz o salmo que tudo é um eterno caminhar para a morte, e, quando os dois velhos cantam, esses dois que passaram a vida inteira pelejando um pelo outro, sente-se quão dura e amarga é a vida, e fica-se muito contente de estar morto.
E assim acaba o canto: o pastor lança alguns punhados de cinza sobre o ataúde e reza uma oração por ti.
Ao depois, põem-se de novo a cantar as duas velhas vozes: - “Eu vou para o Céu...”
E não cantam agora estes versos melhor do que antes. As duas vozes se lhes tornam mais fracas e mais lamentosas à medida que cantam.
Mas para ti se abre o espaço, vasto e infinito, e lá vais subindo com ansioso júbilo, flutuando, e tudo o que é da Terra vai sumindo, esfumando-se, empalidecendo.
Mas as derradeiras notas que da Terra ouves são, todavia, como um hino de Fidelidade e Amor. Em meio ao teu vôo indeciso, há de o pobre canto despertar em ti saudade de tudo quanto aqui na Terra encontraste, levando-te para o Alto. E ele far-te-á transfulgir ainda como uma luz esplendorosa e far-te-á belo como um anjo do Senhor..."
Selma Lagerlöf In “Mar de histórias: antologia do conto mundial, VI: caminhos cruzados/ [organizadores e tradutores] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. -4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
De tais cousas jamais precisam tomar conhecimento os mortos. Mas a gente das cidades não sabe de forma alguma como prestar homenagem àquele que vai dormir, lá dos sete palmos, o sono eterno. Compreendem-no um tanto melhor, porém, nos distritos rurais, e nenhures tão bem quanto na paróquia de Svartsjö, no Värmland.
Se morres na paróquia de Svartsjö, fica logo sabendo que ganharás um caixão em tudo igual ao que cabe aos demais – um caixão decente, forrado de preto, da mesma classe que os caixões em que o juiz distrital e o delegado de polícia baixaram à sepultura o ano passado. Isto porque o mesmo marceneiro faz todos os caixões, e só dispõe de um único modelo: nenhum há de sair melhor ou pior do que o outro. E fica sabendo também, pois tantas vezes o tem visto, que serás transportado até a igreja numa carroça de trabalho, adrede pintada de preto para o ato. Não deves de modo algum preocupar-te com penachos, cousas que todos desconhecem na paróquia. E fica sabendo, ainda, que os cavalos levarão xairéis, presos aos arções das selas, e hás de ser conduzido tão amorosamente, e de modo tão solene, quanto um simples campônio.
Mas não te alarmes, caso não tenhas tido coroas em número suficiente: não haverá uma só flor no féretro. Exige a praxe que o esquife seja forrado de preto, e rebrilhante, e nada impeça de vê-lo bem. Não tens de preocupar-te se terás um cortejo bastante numeroso, porquanto as pessoas que moram na tua aldeia sem dúvida te acompanharão todas juntas. Não procures saber se há quem chore ou soluce em torno do teu ataúde. Nunca se choram os mortos quando estes já se encontram no alto do outeiro, diante da igreja de Svartsjö.
Não se choram mais lágrimas por um rapaz novo, cheio de vida, que baqueou justamente quando começava a ser o arrimo dos seus pobres e velhos pais, do que por ti. Colocar-te-ão sobre dois cavaletes de cor preta, ante a porta do paço paroquial, e toda uma multidão, a lanço e lanço, se irá ajuntando em derredor de ti. As mulheres todas levarão os lenços nas mãos. Mas ninguém há de chorar: todos os lenços estarão bem dobrados, e nenhum deles há de procurar os olhos... Não receies que se derramem por ti tantas lágrimas quantas pelos demais defuntos. Haveriam de chorar se fosse o caso, mas tal não acontece.
Podes compreender agora que, se houvesse pesar em demasia sobre uma campa, quão triste não haveria de sentir-se aquele que ninguém pranteia! Eles sabem o que fazem, lá em Svartsjö. Eles se portam como é de uso e costume ali há muitas centenas de anos.
Mas, enquanto permaneces no outeiro da igreja, tu és um ser poderoso e magnífico, posto não hajas recebido flores nem lágrimas. Ninguém vai à igreja para saber quem és. E assim, em silêncio, aproximar-se-ão do ataúde e de pé o contemplarão. A ninguém ocorre ofender o defunto compadecendo-se dele. Ninguém manifesta outra opinião senão a de que foi bom que chegasse a sua hora.
De maneira alguma sucederá como na cidade, onde serias sepultado num dia qualquer da semana. Em Svartsjö, terás sepultura num domingo, de modo que em torno de ti esteja reunida a comunidade inteira. Lá verá, ao lado do teu féretro, tanto a jovem com quem dançaste na última noite de São João como o homem com quem fizeste troca de cavalos na última feira. Terás o mestre-escola que te ensinava a ler quando eras menino, e que de ti se esqueceu, embora ainda te lembre tanto dele; e terá também o velho parlamentar que nunca dantes te havia cumprimentado. Não, não é como na cidade: lá os homens mal se virariam para ver-te à tua passagem.
Quando chegam as compridas correias e as põem debaixo do caixão, não há ninguém que não acompanhe com interesse todos os movimentos.
Não imaginas que espécie de zelador tem a igreja de Svartsjö. É um velho soldado, com uns ares de marechal-de-campo. Traz os cabelos cortados à escovinha, retorcidos os bigodes, e usa cavanhaque; é esbelto e alto, sempre empertigado, passo leve e firme. Aos domingos veste uma sobrecasaca bem escovada, de bom tecido. Na verdade, é o mais belo ancião que se poderia arranjar. É ele quem vai na frente, à testa do cortejo. Depois dele vem o porta-maça.
Escusado dizer que o porta-maça faz pobre figura em comparação com o zelador da igreja. Pode-se dar que o chapéu lhe fique demasiado grande, ou fora de moda. Nota-se que está bastante constrangido ali, mas desde quando não se sente contrafeito um porta-maça?
Assim chegas, tu mesmo, no teu féretro, com os seis carregadores, e vêm-se aproximando também o pastor e o sacristão, os moradores da aldeia, e a paróquia em peso. Todos os fiéis te acompanham ao campo-santo: disto podes estar certo.
Mas agora prestarás bem atenção a uma cousa: vê como parecem humildes e pobres esses que te acompanham. Não há entre eles pessoas enfatuadas como as da cidade; só a gente simples e modesta de Svartsjö. Apenas se encontra ali alguém que é deveras grande e digno de reverência, e esse alguém és tu, que morto estás. Os outros, coitados, terão de se levantar no dia seguinte para recomeçarem as suas duras e árduas fainas; sentar-se-ão em suas velhas e míseras choupanas, e tornarão a vestir as suas velhas roupas esfarrapadas. Os outros, coitados, hão de continuar sempre atribulados, atormentados, torturados, oprimidos, humilhados pela miséria.
Se um forasteiro marchasse a teu lado até à cova, ficaria mais comovido ao ver as pessoas que tomam parte no cortejo fúnebre do que ao pensar em ti, que morto estás. Não precisas nunca mais examinar a gola de veludo da casaca, a ver se a orla se lhe começa a desbotar pelos rebordos; já não é mister dobrares cuidadosamente o lenço a fim de lhe esconderes o rasgão. Nunca dos nuncas necessitarás pedir aos mercadores da aldeia que te vendam fiado; e não sentirás jamais como te vai fugindo a energia para o trabalho, e assim não estarás à espera do dia em que te convertas num pesado fardo para a comunidade.
Enquanto te acompanham ao túmulo, não há um só dentre eles que não imagine que é preferível morrer, que é melhor ir para o Céu, em meio às brancas nuvens da manhã, do que sofrer sempre esta vida cheia de tantas vicissitudes.
Quando se chega ao muro do cemitério, onde a cova está aberta, substituem-se as correias por grossas cordas, e os que te conduzem o féretro sobem para os montes de terra solta e te fazem baixar à tumba.
Concluído isto, o sacristão se aproxima da beira do sepulcro e põe-se a cantar: - “Eu vou para a morte...”
Ele canta o salmo sozinho: nem o pastor nem ninguém da congregação o ajuda. Mas o sacristão tem de cantar; e, por mais rijo que sopre o vento norte, por mais abrasador que lhe bata o sol no rosto, ele canta.
O sacristão já é muito velho, e não lhe resta muita voz para cantar. Sabe que esta já não soa tão melodiosa agora, ao cantar para o morto no fundo da sepultura, como o era nos dias da sua mocidade, mas cantará, porque este é o seu dever.
Pois, fica sabendo, no dia em que lhe faltasse de todo a voz, de modo que não pudesse cantar, ver-se-ia obrigado a pedir demissão do cargo, e seria o mesmo que lançar-se na mais negra miséria.
Por isso, toda a congregação se toma de ansiedade sempre que o velho sacristão principia a cantar: todos perguntam a si mesmos se essa voz se agüentará firme através de todos os versículos. Mas ninguém o acompanha, nem um só dos fiéis presentes, porque não é possível tal cousa, não é de uso. Jamais se canta à beira do túmulo em Svartsjö. Na igreja só se canta o primeiro salmo, nas matinas de Natal.
Contudo, se alguém prestasse bem ouvidos, haveria de observar que o sacristão não está cantando sozinho. Em verdade, outra voz o acompanha, mas o tom lhe é tão precisamente igual que as duas vozes se misturam, como se fossem uma só.
Essa outra voz, que canta em acompanhamento, pertence a um velhinho que traja uma comprida vestidura de burel pardo. É mais idoso que o sacristão, mas solta tudo quanto tem de voz para ajudá-lo.
E essa voz, como foi dito, é absolutamente do mesmo timbre que a do sacristão, e tão semelhantes são as duas que não se pode deixar de ficar maravilhado.
Mas repara-se de mais perto, e vê-se que o velhinho do burel pardo é, deveras, muito parecido com o sacristão: o mesmo nariz, a mesma barba, a mesmíssima boca, somente um tanto mais velho e mais maltratado pela vida. Compreende-se logo que o pobrezinho é irmão do sacristão, e fica-se sabendo, por igual, o motivo que o fez acudir em auxílio deste.
Imagina só: jamais ao velhinho lhe correram bem as cousas neste baixo mundo, sempre perseguido da má sorte, e de uma feita abriu falência, arrastando o sacristão na sua desgraça. Ele sabe que, por culpa sua, o irmão tem de lutar com sérias dificuldades.
O sacristão tentou endireitar-lhe a vida e os negócios, mas sem resultado, porque o velhinho não é daqueles a quem se possa dar a mão: ele sempre carregou consigo o infortúnio, e nunca teve a necessária força para vencer.
Ao invés, o sacristão tem sido a luz refulgente da família, enquanto o outro não tem feito senão receber e receber sempre, sem nada restituir.
Oh! Falar em restituir, santo Deus! Ele que é tão pobre! Devíeis, Senhor Deus, ir ver a choça em que mora, lá no bosque!
Bem sabe o velhinho que tem sido um fardo pesado, a tristeza e o tormento, sim, um suplício, para o irmão e para todos os seres humanos.
Mas considera: nos últimos tempos tornou-se importante, e presentemente correm-lhe os negócios à feição. Já agora, pode restituir alguma cousa. E é o que está fazendo. Ajuda o irmão, o sacristão, que tem sido o seu farol, a animação e alegria em todos os dias da sua vida. Ajuda-o neste instante a cantar, a fim de que possa manter-se no emprego.
O velhinho não vai à igreja, por lhe parecer que todos reparam em sua pessoa, pois não tem roupas pretas domingueiras. Mas sobe a encosta da igreja aos domingos, a ver se lá em cima há algum caixão por sobre os cavaletes pretos, diante do paço paroquial. Se encontra algum, acompanha-o até o cemitério, e faz o sacrifício de apresentar-se com a sua velha estamenta parda, e ajuda o irmão com a sua desafinada voz.
Ele ouve perfeitamente quão mal lhe sai o canto, e, assim, coloca-se por detrás de todos, e não ousa acercar-se do túmulo. Mas canta, ah! isto ele o faz. E não seria muito perigoso se a voz do sacristão falhasse numa que outra nota, porque “ele” ali está para garanti-lo...
No cemitério ninguém se ri do canto. Mas, de regresso aos lares, e desfeita a recolhida unção, falam do que passou na igreja, e riem do canto do sacristão – riem tanto dele como do irmão. Não se zanga o sacristão com tal cousa, pois não é do seu temperamento, mas o velhinho sofre com isto e preocupa-se. A semana inteira treme ao só pensamento do domingo, mas, chegado este, e apesar de tudo, ei-lo a subir pontualmente ao cemitério e cumprir o seu dever.
Tu, porém, lá do fundo do caixão, tu não pensas tão mal assim de tais cânticos. Achas até que é boa música. Não é verdade que gostarias de ser enterrado em Svartsjö só por causa desses cantos?
Diz o salmo que tudo é um eterno caminhar para a morte, e, quando os dois velhos cantam, esses dois que passaram a vida inteira pelejando um pelo outro, sente-se quão dura e amarga é a vida, e fica-se muito contente de estar morto.
E assim acaba o canto: o pastor lança alguns punhados de cinza sobre o ataúde e reza uma oração por ti.
Ao depois, põem-se de novo a cantar as duas velhas vozes: - “Eu vou para o Céu...”
E não cantam agora estes versos melhor do que antes. As duas vozes se lhes tornam mais fracas e mais lamentosas à medida que cantam.
Mas para ti se abre o espaço, vasto e infinito, e lá vais subindo com ansioso júbilo, flutuando, e tudo o que é da Terra vai sumindo, esfumando-se, empalidecendo.
Mas as derradeiras notas que da Terra ouves são, todavia, como um hino de Fidelidade e Amor. Em meio ao teu vôo indeciso, há de o pobre canto despertar em ti saudade de tudo quanto aqui na Terra encontraste, levando-te para o Alto. E ele far-te-á transfulgir ainda como uma luz esplendorosa e far-te-á belo como um anjo do Senhor..."
Selma Lagerlöf In “Mar de histórias: antologia do conto mundial, VI: caminhos cruzados/ [organizadores e tradutores] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. -4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
É de fato muito bom. Enquanto lia, uma história maior parecia formar-se na minha mente. Denso. Fiquei pensativo alguns minutos! Muito bom! Muito bom!
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