A moça muito antiga,
a prematura morta,
é uma criança inquieta
que ninguém sabe ninar.
Menor a cada dia,
a cada hora mais menina,
a morta muito antiga
toma a pista contrária
e vem ao nosso encontro.
Quando passar por nós
sequer terá nascido.
Será um capricho nosso,
imagem que desenhamos,
saudade de viver.
saudade de viver.
Pareceu-me cicatriz do teu rosto
a marca no papel fotográfico.
Pareceu-me especial efeito
a luz (tão viva) dos velhos olhos teus.
Pareceu-me, enfim, amarga essa foto,
como boneca dormindo de mentira
qual menina morta de verdade.
Assim as fotos, espelhos de alma própria:
parece que são tudo o que olham
e se enganam nas verdades, e acertam nas mentiras
- porque refletem nos desejos outra luz,
e em outras luzes o mesmo desejo.
Também ocorre que nada mais reflitam
quando se guardam num cristal fechados
nas pálpebras do tempo
Viagem
imagine
se sobre a casca do ovo pequenino
tombasse uma gota de limão corrosivo
e mal nascido quanto mal desperto
o filhotinho tivesse que voar
contra cortantes facas amarelas
como haveria ele de entender
a beleza sem parar das feridas?
teria tempo para sentir
a falta das penas sonhadas?
saberia como cantar
o brilho de cada susto de morrer?
(Não sei te explicar
essa luz que fia e desconcerta
meus melhores dias)
Eurídice
Eurídice caminha pelo palco descalça mais que nua:
os pés que a levam leve sabem todo o alvor.
Desliza como dança, e deita os olhos no caminho.
Cobre de frescor o arrepio dos regatos.
Eurídice, para além de todo inferno e céu
Atira Orfeu para os bichos da floresta,
Como a onça, como o tigre, como eu.
Dádiva
As maldades mais fundas do meu poço emergem
[só para mim
[só para mim
Imediatamente viram flores. Ofereço o buquê
[a amigos
[a amigos
que o tomam no colo e reconhecem pétala a pétala
a graça de tantas corolas. E dizem: que bonito!
Mas logo baixamos o olhar, como quem do chão
[ouve
[ouve
o ruído das águas turvas, inquietando-se."
VILLAÇA, Alcides. ONDAS CURTAS, Cosac Naify, São Paulo, 2014.
VILLAÇA, Alcides. ONDAS CURTAS, Cosac Naify, São Paulo, 2014.
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