Fabricados
de pura luz pela mão direita de Deus, serviam-lhe os Anjos de lenitivo à
solidão divina. Concebeu-os como instrumentos em que pudesse interpretar-se a
si mesmo, em sua melodia essencial – a inefável perfeição do silêncio criador.
Haverá
maior solidão que a solidão divina? Criar, criar, de palmas abertas, dando
sempre e apenas dando, sem nada receber? Assim, ao menos, na lúdica assistência
da corte angelical, podia entregar-se à ilusão de ouvir-se a si mesmo,
repercutido em eco, ou retratar-se no espelho dos puros espíritos. Não de outro
modo, na escala humana, um grande poeta apura o ouvido para ouvir-se nos
outros, com inquieto amor próprio, já que não lhe é concedida a graça de mudar
de pele, para respirar um pouco, desobrigado enfim dos compromissos de sua
consagração.
Na fábrica
dos Anjos, bastou a Deus uma cintila dos olhos para transmitir-lhes um pouco do
seu próprio resplendor. O fogo divino acende o fogo da vida em todas as coisas;
sua luz traspassa de luz a própria sombra, que não é senão a confirmação dessa
presença luminosa pelos corpos opacos. Se a matéria, ao receber a luz, é
obrigada a tranformá-la em sombra, o fato mesmo da presença da sombra já está
proclamando a luz.
Os Anjos
todos até então se tingiam das inevitáveis oscilações prismáticas da meditação
criadora. A uns, concebidos na mais profunda altitude do empíreo, deu-lhes a
graça divina o azul, essa vertigem do olhar, que é uma ilusão da distância. A
outros, incendiou-os com o chamejamento das pupilas, e, a um bater de asas,
abriam largos sulcos de fogo, ateando incêndios aurorais no espaço.
Pergunto
eu: Quem traça no Céu aquelas riscas de sete cores, miragem de uma ponte
projetada no ar? E respondo: Os Anjos, quando louvam o Senhor em vôos
concêntricos, entoando: Hossana! Só lá no Céu seria possível compreender o que
significa uma sinestesia, ao ouvir-se o arco-íris de todas as legiões celestes
vibrando em sonoridades multicoloridas, coro feito de todas as cores. A cada
categoria dessa milícia espiritual, Anjos, Arcanjos, Potestades, Virtudes,
Dominações, Querubins e Serafins – corresponde uma cor simbólica e um emblema,
segundo a exegese mística dos tratados de lapidação. Assim, por exemplo, o
verde é a cor angélica e a esmeralda o seu emblema.
Em certas
condições, todavia, esses puros espíritos podem mudar de cor. Sabido é que
William Blake ceerta vez viu um Anjo ficar azul, de santa indignação, passando
aos poucos a amarelo, branco – e finalmente, já pacificado, parecia sorrir, de
tão róseo. E quem não acompanhou com olhos abismados no horizonte cada vez mais
profundo, ao raiar da madrugada, aquelas cambiantes esmaecidas em novas
cambiantes, que são o sinal mais certo de uma festa no Céu? Do outro lado de
oceanos de nuvens, legiões de Anjos em revoada celebram o eterno dia do Senhor,
cantando: - Santo, Santo é o teu nome! Para sempre amanhecem as tuas obras,
cada vez mais orvalhadas e radiosas, como no primeiro dia da Criação!
Ora, -
assim rezam as crônicas do Céu e do Inferno – o coro celestial era a princípio
de uma unissonância para nós quase inconcebível, monodia da rosa mística na
irrespirável pureza do empíreo.
Mas, como
há sempre uma superação das perfeições, e até Deus, em virtude da onipotência,
é obrigado por si mesmo a superar-se, momento houve em que, da incessante
sublimação dos puros espíritos, brotou a suprema pureza, como da superação das
cores afinal se irradia a cor suprema, que é o Branco.
Lúcifer
nasceu da própria fulguração da luz branca, e nasceu com ele a inquietação da
beleza. Criara-o Deus como um filho dileto, já mais próximo da compreensão
divina. Dera-lhe, como a Gabriel, Miguel, Azrael, Uriel e Rafael, não só a
fulminante rapidez do pensamento, mensageiro que leva aos confins do mundo a
mensagem do Senhor, e o dom musical de modular ao mesmo compasso do Verbo, mas além
disso, não sei que indefinível graça, talvez sutileza, inquietação, melancolia
contemplativa... Deu-lhe ainda, mistura de tudo isto, para mais e melhor,
aquela consciência da fragilidade na plenitude que só muito mais tarde e depois
da queda viria a chamar-se: ironia. Quando Lúcifer nasceu, a estrela da manhã e
a estrela da tarde cintilaram do mesmo fulgor pensativo.
Fria,
distante, lúcida era a estrela de Lúcifer, e um leve halo azulíneo cingia-lhe a
fronte, como diadema. Resplandecia tanto, na sua perfeição, que a seu lado os
outros Anjos anoiteceram, por força de contraste. Murmuram as crônicas
infernais que assim começaram as intrigas na corte celeste. Suporta-se com
humildade a ofuscação do próximo, diziam alguns espíritos impuros, decaídos do
primor antigo. De qualquer modo, sobre esta sovada questão as glosas de que
disponho se desentendem muito. Ela engravidou em discussões intermináveis,
graças à argúcia dos teólogos e seu conhecido amor à controvérsia. Eu por mim
prossigo na cópia do meu apógrafo, sem mais delongas.
No primeiro
olhar de Lúcifer sentiu o Senhor que ele próprio criara um princípio
subversivo, ao conceber a sua criatura mais perfeita. No primeiro olhar do
Senhor sentiu Lúcifer que acabava de ser criado para ser condenado,
- O excesso
de perfeição já não é perfeição, - assim dizia com seus abismos o supremo
artífice – pois a verdadeira perfeição não vai sem justa medida. Com demasiado
amor o engendrei da mais pura essência de mim mesmo, luz de seio a seio, hálito
de boca a boca, e sinto que já não obedece à amorosa pressão dos meus dedos,
onde latejava a sua forma ideal... Amar e criar é fácil para a sabedoria
divina; mais difícil é ser amado pela criatura, isto é, ser compreendido, mesmo
pelos puros espíritos moldados à minha semelhança. Pois, quando apenas há
reflexo, já não há desejo de compreender e, sim, uma simples reprodução. Deste
filho dileto esperava eu um gesto espontâneo, um movimento livre, um primeiro
passo...
Tudo isto
ia lendo Lúcifer no semblante formidável do Senhor, como num livro aberto.
Sentia-se enjeitado, antes do primeiro gesto.
Falou,
então, e havia uma risonha placidez na sua voz, um brilho calmo no olhar. A
estrela parecia dançar-lhe na testa, a cada palavra:
- Senhor,
aqui estou, e bem sabes que a minha presença já é uma confirmação da tua
vontade. Eu por mim não ignoro a alta sabedoria dos teus desígnios, sabendo que
fui criado apenas para ser condenado. Não há rebelião mais ameaçadora na corte
celeste do que a transparência de um pensamento sereno, que logo vai mostrando
na cor dos olhos a cor das intenções. Bastou um olhar para sentenciar-me. E não
obstante, sou eu talvez o único puro espírito capaz de compreender-te,
confirmando ao mesmo tempo a grandeza e a perfeição da tua obra. Sabias que não
era possível dialogar verdadeiramente se ficasses no monólogo divino, repetido
pelos Anjos, espécie de ventriloquismo sublime, porém um tanto enfadonho, e
decerto áulico, cheirando a murmuração louvaminheira.. E assim, tu me
convocaste e aqui estou, Senhor, para o primeiro diálogo da Criação. Não sei
afinar muito bem pelo coro dos Anjos, mas é dessa fraqueza mesma que decorre a
possibilidade de um diálogo. Além disso, uma voz a menos, nesse empostado coro,
que diferença poderá trazer ao concerto final das hossanas? Tu é aquele que é,
aquele que é sempre, e só ele para sempre – ao passo que todos nós, simples
espíritos puros, servimos quando muito de apagado eco à confirmação da tua
eternidade, débeis reflexos da tua onipotência. Mas, pergunto eu, onde está em
tudo isto o verdadeiro diálogo? Só do contraste, da falha, da fragilidade
ameaçada poderia provir o balbucio de um diálogo vivo e então sim, não apenas
monótono ou divino, mas contrastado, sofrido, trágico...
“Senhor,
basta de prólogo nos bastidores do Céu, entre nuvens e harpas, com a fria assistência
de puros espíritos. Não há boa tragédia sem o concurso da Morte e do Tempo.
Aproveita, pois, o estranho animal sem asas que acabaste de criar, para
escândalo dos Anjos. Ele vive a trepar nas árvores do Paraíso, a provar de
todas as frutas, a puxar pela cauda de todos os animais. Já lhe deste uma
companheira que é, mais do que ele, um desafio à nobilitação angelical da
forma. Dá-lhe agora o medo da Morte, além da consciência na vontade; dá-lhe a
angústia do irreversível, o suplício da recordação feliz, do paraíso perdido e
do irrecuperável; dá-lhe a um só tempo a insatisfação constante e a ilusão da
plenitude, para que não se acabe o sofrimento. Sairemos então do solilóquio
divino, e começará o verdadeiro diálogo”.
E Deus viu
que era bom, isto é, ao mesmo tempo mau e bom, pois indispensável era o
concurso do mal, e sem ele a obra da criação não passava de um insosso prólogo
celeste, monologado e sem graça. E maravilhava-se da arte com que sabia
escrever direito por linhas tortas, criando Lúcifer. E como, a um silêncio
mortal, sucedera um crescente sussurro de enxames de abelhas irritadas, traçou
no ar um imenso gesto de reprovação.
- Senhor,
tu és perfeito em tuas obras! Confirmou logo o coro.
Mas o
Senhor, dando execução imediata ao diálogo, trovejou:
- Adão,
onde estás?
Há muito não lia Augusto Meyer, ecos de um Bandeira, misto de candura e argúcia. Parece que vivemos em outro mundo, infinitamente mais raso. Grato por postá-lo. Abraço amigo
ResponderExcluirEsses intelectuais à antiga, sem boca torta de cachimbo, são mesmo uma delícia de ler. Abração.
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