“Não houve um homem da tripulação que não o considerasse perdido; e, quanto ao próprio Queequeg, o que ele pensava de seu caso demonstrou-se de maneira convincente por um curioso favor que pediu. Chamou um dos marinheiros para junto de si, na cinzenta vigília matinal quando o dia apenas raiava, e, pegando em sua mão, disse-lhe que vira por acaso em Nantucket pequenas canoas de madeira escura, como a preciosa madeira de guerra de sua ilha natal; e, informando-se, veio a saber que todos os baleeiros que morriam em Nantucket eram colocados naquelas mesmas canoas escuras e a ideia de jazer desse modo muito lhe agradara; pois não diferia do costume de sua própria gente, que, depois de embalsamar um guerreiro morto, o estendia em sua canoa e o deixava à deriva entre os arquipélagos estrelados; pois não apenas acreditava que as estrelas eram ilhas, mas que muito além do horizonte visível seus serenos mares sem continentes se mesclavam com os céus azuis; dando assim origem aos brancos vagalhões da Via-Láctea. Acrescentou que estremecia com a ideia de ser enterrado com sua rede, segundo o costume marítimo, atirado como alguma coisa desprezível aos tubarões devoradores de mortos. Não: ele desejava uma canoa como aquelas de Nantucket, tanto mais apropriadas, sendo ele um baleeiro, pois, como os botes baleeiros, essas canoas-caixão não portavam quilhas; embora isso implicasse uma navegação bastante incerta e uma grande deriva para as eras sombrias.
Ora, quando esse caso estranho foi levado à ré, o carpinteiro recebeu ordens de atender às vontades de Queequeg, quaisquer que fossem suas implicações. Havia a bordo uma velha madeira pagã, cor de caixão, que, no decurso de uma longa viagem anterior, havia sido cortada nos bosques nativos das ilhas Laquedivas, e dessas tábuas escuras recomendou-se que o caixão fosse feito. Não tardou mais o carpinteiro a receber a ordem do que, tomando a régua, encaminhar-se com toda a indiferente presteza que o caracterizava para o castelo de proa e tomar as medidas de Queequeg com muita perícia, tracejando regularmente o giz na pessoa do arpoador enquanto movia a régua.
[...]
De volta à sua bancada, o carpinteiro, por comodidade ou referência geral, transferiu-lhe o exato comprimento que o caixão deveria ter, e então tornou permanente essa transferência, talhando duas fendas nas extremidades. Feito isso, enfileirou tábuas e ferramentas e pôs-se a trabalhar.
Quando o último prego foi cravado, e a tampa devidamente aplainada e ajustada, o carpinteiro levou o caixão aos ombros sem esforço e seguiu com ele à frente, perguntando se ali já estavam prontos para usá-lo.
Ouvindo os gritos indignados, porém um tanto engraçados, com que as pessoas do convés empurravam o caixão para longe de si, Queequeg, para a consternação geral, ordenou que o objeto fosse imediatamente trazido até ele, e não houve quem o negasse; visto que, de todos os mortais, certos moribundos são os mais tirânicos; e, sem dúvida, uma vez que em pouco tempo eles nos darão tão pouco trabalho para sempre, os caprichos dos pobres diabos devem ser atendidos.
Debruçando-se na beira da rede, Queequeg demorou-se a contemplar o caixão com olhares atentos. Pediu então seu arpão, fez com que lhe tirassem o cabo de madeira e então ordenou que colocassem a parte metálica no caixão junto a um dos remos de seu bote. Ainda segundo sua vontade, foram espalhados biscoitos por toda sua volta interna: um frasco de água doce foi depositado à cabeceira, e um saquinho de pó de madeira lixada do porão posto a seus pés; e, sendo um pedaço de lona de vela enrolado à guisa de travesseiro, Queequeg apelou para que fosse levado a seu último leito, para poder experimentar de sua comodidade, se é que havia. Ficou ali deitado sem se mover por alguns minutos e então pediu para que alguém fosse a seu embornal e lhe trouxesse seu pequeno deus, Yojo. Então, cruzando os braços sobre o peito com Yojo entre eles, solicitou que a tampa do caixão (chamou-a de escotilha) fosse colocada sobre ele. A extremidade da cabeça abria-se com uma dobradiça de couro e ali Queequeg permaneceu, deitado em seu caixão, mostrando um pouco de seu semblante sereno. “Rarmai” (serve; é confortável), murmurou por fim, e fez sinal para que o recolocassem na rede.
[...]
Porém, agora que ele aparentemente havia encerrado todos os preparativos para a morte; agora que o caixão se mostrava bem adaptado, Queequeg subitamente se recobrou; logo parecia não haver mais necessidade da caixa do carpinteiro; e, daí que, quando alguém expressava sua alegre surpresa, ele respondia, em substância, que a causa de sua repentina convalescença era a seguinte – em um momento crítico, lembrara-se de uma pequena obrigação, que havia ficado pendente em terra; daí que mudara de ideia sobre morrer: ainda não podia morrer, declarou. Perguntaram-lhe, então, se viver ou morrer era uma questão de seu desejo e prazer soberanos. Certamente, respondeu. Resumindo, era do pensamento de Queequeg acreditar que, se um homem decidisse viver, uma simples doença não poderia matá-lo: nada, exceto uma baleia, uma tormenta, ou qualquer força destrutiva violenta, estúpida e ingovernável dessa natureza.
Ora, existe uma diferença digna de nota entre os selvagens e os civilizados; enquanto, digamos, um doente civilizado pode passar seis meses convalescendo, um doente selvagem pode ficar quase curado em um dia. Assim, em boa hora, meu Queequeg recuperou sua força; e depois de ter permanecido sentado ao molinete por uns poucos dias indolentes (mas comendo com apetite vigoroso), de repente pôs-se de pé, esticou os braços e as pernas, alongou-se bem, bocejou um pouquinho e então, saltando para a proa de seu bote suspenso, e brandindo o arpão, declarou estar pronto para a luta.
Com uma selvagem extravagância, servia-se agora do caixão como arca; e, retirando as roupas de seu embornal de lona, arrumou-as ali. Passou muitas horas de folga entalhando a tampa com todo o tipo de figuras e desenhos grotescos; e parecia desse modo empenhado, segundo sua rudeza de modos, em copiar partes da intricada tatuagem de seu corpo. E essa tatuagem fora obra de um finado profeta e vidente de sua ilha, o qual, mediante tais sinais hieroglíficos, escrevera em seu corpo uma teoria completa dos céus e da terra e um tratado místico sobre a arte de alcançar a verdade; de modo que Queequeg, por seu próprio corpo, era um enigma a ser decifrado; uma maravilhosa obra em um volume; mas cujos mistérios nem mesmo ele próprio podia ler, ainda que seu próprio coração pulsante batesse contra eles; e esses mistérios estivessem, portanto, destinados a se desfazer no pó do pergaminho vivo em que estavam inscritos e ficar sem solução até o fim. E deve ter sido esse pensamento que sugeriu a Ahab aquela sua furiosa exclamação, quando certa manhã ele retornava da visita ao pobre Queequeg – “Oh, diabólica tentação dos deuses!“.”
Herman Melville, In Moby Dick.