Notícia
Uma coisa é a mãe que acorrenta o filho de onze anos
viciado em crack
à sua cama miserável
para evitar uma tragédia
outra é rodar os sebos de Pinheiros
atrás dos poemas de Villon
e voltar para casa
com uma novela sobre um urso
uma coisa é a mãe que acorrenta o filho de onze anos
porque quando fica louco
ameaça a irmã com uma faca
e bebe perfume se não tem birita
outra é passar duas horas num engarrafamento
conversando com um taxista irritado
que garante que antes do Viagra
as ruas eram cheias de mulheres casadas
procurando sexo
uma coisa é a mãe que acorrenta o filho de onze anos
por desespero
e sem temer um processo
outra é faltar ao trabalho
por ter cheirado cocaína a noite inteira
ouvindo Bach
e falando merda
uma coisa é a mãe que acorrenta o filho de onze anos
é presa e diz
que não se arrepende de nada
pois seu menino é seu tesouro
outra é esquecer o aniversário
de uma amiga querida mas neurótica
que não perdoa quem não telefona
para lhe dar os parabéns
Bairro
lá vem o homem deformado
não quero desviar os olhos
nem prender a respiração
ao passar por ele
eu me concentro
quase nos trombamos
a pele do rosto inchado
a ponto de explodir
tenho 35 anos
nenhum dinheiro no banco
uma vaga memória
de que vale a pena viver
etc.
mas o que faz o homem deformado
quando está alegre
quando sente o coração tomado
pelo fogo alaranjado
das estrelas de verão?
Pelo sul
em algum momento entendi que adorava
varais com roupas estendidas
no quintal de casa
nos filmes italianos
num bairro do século XVIII em Marselha
a maneira como as camisas
não se desesperam
as calças não se cansam
as cuecas e as calcinhas convivem
pacificamente
embora continuem a desejar
as meias não se iludem
os sutiãs ignoram
e os vestidos e as saias existem
pelo mesmo motivo que os poetas escrevem -
para que os ossos brilhem na noite
desde então
o mundo pode ter atirado
meus mortos num poço de merda
mas se topo de manhã com um varal pelas ruas
rio por dentro porque sei que no fundo
fui quase sempre amoroso e feliz
Manual da faxineira
meu grande desejo seria escrever
um livro triste e engraçado
ao mesmo tempo
que fizesse as pessoas
rirem e chorarem
dentro do instante desprotegido
meu grande desejo seria escrever como Lucia Berlin
para ser amado por Lucia Berlin
para ser amigo de Lucia Berlin
e um dia ser convidado por ela
para ir ao México
Lucia Berlin minha mulher e eu
de carro pelos pueblos de Oaxaca
saudando os mortos e os sobreviventes
tomando mezcal nos bares escuros
mergulhando nas águas cristalinas
e partilhando histórias e bombinhas
de cortisona
na última noite elas me deixariam no aeroporto
com um beijo e a promessa de viajarmos juntos
no ano seguinte de novo talvez