quarta-feira, 22 de abril de 2020

Uma criatura com (muito) tutano

Reproduzo aqui um longo excerto do D. Quxote que trata ao mesmo tempo de dois temas caros para mim: o que faz de um poeta, poeta, e de como se devem orientar os filhos.

"[...]
- Eu, senhor D. Quixote - respondeu o fidalgo -, tenho um filho que, se não o tivesse, talvez me julgasse mais ditoso do que sou, e não porque ele seja mau, mas porque não é tão bom como eu quisera. Tem de idade perto de dezoito anos, seis dos quais passou em Salamanca, aprendendo as línguas latina e grega, e quando eu quis que ele entrasse a  estudar outras ciências, achei-o tão embebido na da poesia (se é que se pode chamar ciência), que não é possível fazê-lo arrostar a das leis, que eu quisera que estudasse, nem a rainha de todas elas, a teologia. Quisera eu que ele fosse coroa da sua linhagem, pois vivemos num século em que nossos reis premiam altamente as virtuosas e boas letras, porque letras sem virtude são pérolas no muladar. Todo o dia ele passa a averiguar se Homero disse bem ou mal em tal verso da Ilíada, se Marcial se mostrou desonesto  ou não em tal epigrama, se se hão de entender de uma maneira ou outra tais e tais versos de Virgílio. Enfim, todo seu trato é com os livros dos referidos poetas, e com os de Horácio, Pérsio, Juvenal e Tibulo, pois dos modernos e vernáculos não faz muito caso, e apesar da pouca estima que mostra ter pela poesia em romance, tem agora os pensamentos desvanecidos em fazer uma glosa a quatro versos que lhe enviaram de Salamanca, e penso que são de justa literária.

Ao que respondeu D. Quixote:

- Os filhos, senhor, são pedaços das  entranhas dos pais,e assim hão de ser amados, sejam eles bons ou maus, como às almas que nos dão a vida. Aos pais cumpre encaminhá-los desde pequenos pelos passos da virtude, da boa criação e dos bons e cristãos costumes, para que, quando grandes, sejam báculo da velhice dos pais e glória da sua posteridade; e quanto a forçá-los a estudar esta ou aquela ciência, não o tenho por acertado, bem que a persuasão não seja danosa, e quando não se há de estudar para pane lucrando, sendo o estudante venturoso de ter recebido do céu pais que o sustentem, seria eu de parecer que o deixem seguir aquela ciência a que mais o virem inclinado,e, ainda que a da poesia seja menos útil que deleitável, não é daquelas que soem desonrar a  quem as possui. A poesia, senhor fidalgo, a meu ver é como uma donzela tenra e de pouca idade e em extremo formosa, a qual têm cuidado de enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências, e ela se há de servir de todas, e todas se hão de abonar com ela; mas essa tal donzela não quer ser manuseada, nem levada pelas ruas, nem publicada pelas esquinas das praças nem pelos cantos dos palácios. Ela é feita de uma alquimia de tal virtude que quem a souber tratar a mudará em ouro puríssimo de inestimável preço; quem a tiver há de ter sempre mão nela, sem deixar que corra em torpes sátiras nem em desalmados sonetos; não há de ser vendável de maneira alguma, quando não seja em poemas heroicos, em penosas tragédias ou em comédias alegres e artificiosas; não se há de deixar tratar por maganos, nem pelo ignorante vulgo incapaz de conhecer nem estimar os tesouros que nela se encerram. E não penseis, senhor, que chamo vulgo só à gente plebeia e humilde, pois todo aquele que não sabe, ainda que seja senhor e príncipe, pode e deve entrar no número do vulgo. E assim, quem tratar e tiver a poesia com os requisitos que tenho dito será famoso e seu nome estimado em todas as nações políticas do mundo. Quanto ao que dizeis, senhor, que o vosso filho não estima muito a poesia em romance, tenho aqui para mim que não anda nisso muito acertado, e a razão é a seguinte: o grande Homero não escreveu em latim, porque era grego, nem Virgílio escreveu em grego, porque era latino. Em conclusão, todos os poetas antigos escreveram na língua que mamaram no leite, e não foram buscar as estrangeiras para declarar a alteza dos seus conceitos. E sendo isso assim, razão seria que tal costume se estendesse por todas as nações,e que não se desmerecesse o poeta alemão porque escreve em sua língua, nem o castelhano, nem sequer o vascongado que escreve na dele. Mas o vosso filho (segundo eu imagino, senhor)  não deve de estar mal com a poesia em romance, senão com os poetas que a ele se limitam, sem saber outras línguas nem outras ciências que adornem e espertem e ajudem seu natural impulso, e ainda nisto pode haver erro, porque, segundo é opinião verdadeira,o poeta nasce, querendo com isso dizer que o poeta natural sai poeta do ventre de sua mãe, e com aquela inclinação que o céu lhe deu, sem mais estudo nem artifício, compõe coisas que abonam a verdade daquele que disse "Est Deus in nobis", etc.* Também digo que o natural poeta que se ajudar da arte será muito melhor e fará vantagem ao poeta que só por saber a arte o pretenda ser. A razão é que a arte não faz vantagem à natureza, mas a aperfeiçoa, assim que, misturadas a natureza e a arte, e a arte com a natureza, sairá um perfeitíssimo poeta. Seja, pois, a conclusão da minha fala, senhor fidalgo, que vossa mercê deixe o seu filho caminhar aonde sua estrela o chama, pois, sendo ele tão bom estudante como deve de ser, e tendo já galgado felizmente o primeiro grau das ciências, que é o das línguas, com elas por si mesmo galgará até os píncaros das letras humanas, as quais tão bem parecem em um cavaleiro de capa e espada e assim o adornam, honram e engrandecem como as mitras aos bispos ou as garnachas aos peritos jurisconsultos. [...]"


*grifo meu

Miguel de Cervantes Saavedra, em O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha, segundo livro, Capítulo XVI (Do que aconteceu a D. Quixote com um discreto cavaleiro de La Mancha)