em
frente à casa de meus pais construiu-se há pouco tempo um prédio de
escritórios. Estive numa dessas salas noutro dia, e, à janela do quarto andar, olhei de um ângulo novo o sobrado em
que nasci e me criei. Surpreendeu-me a visão do telhado, que nunca antes tinha
visto inteiro, escondido que fica por uma platibanda, se o olhamos de baixo. É um belo telhado, caprichoso e
caprichado como são em geral os telhados antigos, mas ainda que fosse banal e
feio teria me proporcionado a mesma sensação: é como se pelo fato de eu nunca
tê-lo visto, de nunca tê-lo contaminado com o meu olhar - o olhar que vai se
modificando com a gente aprender a amar e desamar, sofrer e afligir, afundar e
emergir - como se por isso uma parte de mim, original e fresca, tivesse se
preservado ali, naquele lugar esquecido como um fundo de armário, que
entretanto assistiu a todas as ao transformações da minha vida até os primeiros
anos da juventude.
Conto
esse episódio para dizer que sua carta proporcionou-me sensação idêntica, com
um ingrediente novo: descobrir-me preservada num lugar improvável e
principalmente estranho é descobrir-me existindo fora de mim, não somente numa
pasta vermelha no fundo de um arquivo, mas no fundo de outra pessoa. Pois se é
verdade que seu olhar tocou meu pudor em minha antiga nudez, é verdade também
que minha palavra de então tocou em alguma parte de você que aspira a reconhecer-se em outro e a revelar-se...
Álvares,
meu amigo, ”vamos aos fatos”: quatorze
anos é tempo suficiente para que uma vocação imperfeita, menos que isso, uma
veleidade tão comum na adolescência, se apague em definitivo. Não persisti nos versos, e, sossegue, não foi
pelo “golpe de nem-sequer-menção-honrosa”, que aliás experimentei mais de uma
vez; o que é, é, e não há golpe que possa interromper uma verdadeira carreira.
O que se deu comigo é que passou o meu tempo de versos, ainda que não tenha
passado o da poesia, esse atalho em minha vida
por onde chegam, entre outras coisas amáveis, notícias de ex-burocratas
alucinados na madrugada. Perdoe-me, Álvares, a brincadeira: é que eu sou mesmo
uma mulher, e você certamente concorda comigo que todo romântico se expõe um
pouco à crueldade feminina. A crueldade feminina, acredite-me, é puro artifício
de sobrevivência neste mundo dos homens.
Creio
que não tomarei nenhuma providência legal quanto ao seu deslize de quatorze
anos atrás. Não haveria nisto, como você mesmo notou, nenhuma vantagem prática,
e se o deslize não tivesse acontecido eu jamais teria recebido tão bela carta.
Outrossim,
um abraço do seu/sua
João
Abóbora/Maria
P.S.: me
conte, se quiser, o que faz agora você,
que abandonou a burocracia?