sábado, 2 de março de 2024

Joseph Roth

 Eu confesso que sou presa fácil do pensamento cínico segundo o qual a vilania humana é incontornável, portanto inculpável (não sei se uso adequadamente a ideia de cinismo; corrija-me por favor quem puder). Por isso acho especialmente espantoso que uma pessoa como Joseph Roth, que vivenciou os horrores da primeira guerra e, sendo judeu, os acontecimentos que precederam a segunda (morreu em 1939), que alguém assim escreva o que reproduzo abaixo, uma espécie de libelo contra o que chamo aqui de cinismo (ao  mesmo tempo uma declaração de consciência da altitude de sua literatura). Numa cena anterior ao excerto a seguir, o ordenança Onufrij oferece ao tenente Trotta (um janota) todas as suas suadas economias para que este salde suas dívidas de jogatina:

"O tenente lembrou-se daquela noite de outono na guarnição da cavalaria, na qual ouvira, às suas costas, os passos soantes e ritmados de Onufrij. E pensou nos livrinhos de humor militar, encadernados de verde, que lera na biblioteca do hospital. Estavam repletos de ordenanças comoventes, camponeses ingênuos com corações de ouro. E muito embora o tenente Trotta não tivesse nenhum gosto literário, e muito embora, se por acaso ouvisse a palavra literatura, fosse capaz apenas de pensar na tragédia Zriny, de Theodor Körner, e em mais nada, criara uma certa aversão inconsciente à delicadeza melancólica daqueles livrinhos e às suas personagens com corações de ouro. O tenente Trotta não tinha suficiente experiência para saber que, também no mundo real, existem rapazes camponeses ingênuos de corações nobres, e que os livros ruins contam muitas verdades do mundo real, só que as contam mal. Ele era, ainda, um homem inexperiente, o tenente Trotta.".

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