quarta-feira, 11 de março de 2015

Quatro poemas de Paulo Neves

O nevoeiro

A alma acredita
que há uma terra sem mal
para além do nevoeiro,
um vale encantado, improvável,
mas não menos real
que o pulsar e a antimatéria.
E ela põe-se a caminho, à espera
de que o nevoeiro se abra.
E de tanto atravessá-lo
e ser por ela atravessada
descobre enfim sua veste branca
e aceita que ela mesma é o nevoeiro.

Francesco

Não foi virtude
o que ele viu na pobreza
mas o ultimo véu da carne.
E a carne é somente um meio
de abordar o enigma
que há na carne,
de receber os estigmas
que só se leem na carne.

Maborosi

Da última vez que ela o viu,
ele saiu andando,
levava um guarda-chuva.
Seu amor sem esperança
ficou ali parado
como um coração na chuva.

Pasto

Meus olhos na relva
onde as ovelhas pastam.
O sol declina os tons do verde
e a paz do campo me domina
como um cheiro imemorial.
O frio da relva é macio,
dá vontade de ser um focinho
e fechar os olhos.
Eu sei um segredo da terra.
Eu pasto.



Paulo Neves, "in" viagem, espera, Companhia das Letras, SP, 2006

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Orides Fontela

Olhando com atenção, daqui, deste lugar no tempo, já dá para adivinhar Orides Fontela.


NOTURNO

Os que nascem de noite
e, entre ossos, vigiam 
o fogo
os que olham os astros
e, oprimidos, respiram
em cavernas

os que vão viver apesar
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
acendem

os que não sonham, os que nascem
de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra.

Orides Fontela

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Rute

Imagem de Adi Nes

[...] Elimelec, marido de Noemi, morreu; e ela ficou com os filhos, os quais casaram com mulheres moabitas, das quais uma se chamava Orfa, e a outra Rute. Viveram lá dez anos. Morreram ambos, a saber, Maalon e Quelion; e a mulher ficou privada dos dois filhos e do marido.
[...] Saiu pois do lugar da sua peregrinação com as suas duas noras. Indo já no caminho de volta para a terra de Judá, disse para elas: Ide para a casa de vossa mãe, o Senhor use convosco de misericórdia, como vós usastes com os que morreram e comigo. Ele vos vos faça encontrar paz nas casas dos maridos, com que tiverdes a sorte de casar. E beijou-as. E elas em alta voz começaram a chorar e a dizer: Nós iremos contigo para o teu povo. Ela respondeu-lhes: Voltai, minhas filhas, e ide-vos, porque já estou acabada pela velhice, e incapaz de vínculo conjugal. Ainda que eu pudesse conceber esta mesma noite e dar à luz filhos, e se vós quisésseis esperar até que crescessem e chegassem aos anos da puberdade, vos faríeis velhas antes de casardes. Não (continueis), minhas filhas,vos peço, porque a vossa angústia custa-me muito, e a mão do Senhor está levantada contra mim. Elas, levantando a voz, começaram de novo a chorar. Orfa beijou sua sogra e foi-se. Rute porém ficou com sua sogra.
Noemi disse-lhe: Eis que a tua cunhada voltou para o seu povo e para os seus deuses; vai com ela. Rute respondeu: Não insistas comigo para que te deixe e me vá, porque para onde tu fores, irei também eu, e onde quer que morares, morarei eu também. O teu povo será o meu povo e o teu Deus o meu Deus. Na terra que te receber, quando morreres, nessa morrerei eu também e aí terei o meu sepulcro. O Senhor me faça e me acrescente aquilo, se outra coisa que não for a morte me separar de ti.

RUTE, Bíblia Sagrada, Ed. Paulinas, São Paulo, 1982

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

sobre irmãos

"[...] Octave havia começado justamente por se sentir o protetor do menino que não se chamava ainda Rémo. Quando convidou o jovem Fernand a fazer em sua companhia a primeira viagem, perguntando-lhe onde desejaria ir, o menino respondeu: "Muito longe!". Daquela vez, ele o levou a Hanover. Mas, em todos os domínios, Rémo foi muito longe, e mais longe do que seu irmão mais velho. Antes mesmo de seus estágios em Weimar e em Iena, o estudante transformado em seu anjo da guarda, colocando de lado o próprio trabalho na universidade de Bruxelas, passou longas semanas a revisar o manuscrito do primeiro esforço literário de Octave, obrigando-o a reduzir pela metade as quinhentas páginas nas quais se sentia perdido há anos. Foi forçado a faltar aos seus próprios exames. Esse rapaz de dezessete anos, por uma preocupação de imparcialidade rara em qualquer idade, nada fizera para atenuar a maneira pessoal de externar as ideias que deplorava no irmão.[...] Depois da morte de Rémo , Octave se lembrará de que o jovem, quando eles passeavam juntos por uma vereda escarpada ou à beira de um rio, tomava sempre o lado do vazio, temendo uma distração ou uma vertigem do companheiro. Anotou um sonho, muitas vezes repetido, no qual, exposto a um perigo mortal, era salvo por seu jovem irmão. "Mas está morto!", exclamava admirado. - "Não me fales de mim", respondia caracteristicamente Rémo. "Eu não sei"."*

* Marguerite Yourcenar, "in" Recordações de Família.