segunda-feira, 1 de março de 2010

Para o Tirpe


Entre meus quatro e sete anos de idade vivi na vila de uma serraria muito grande no interior do Paraná, num distrito chamado Saudade, à época pertencente ao município de Guarapuava, hoje ao de Turvo. Lá eu aprendi a ler, a dor, a finitude, a morte, e ainda lá comecei a desconfiar de que “um anjo torto, desses que vivem na sombra”, havia presidido meu nascimento. Nunca pertenci a nenhum outro lugar mais do que àquele e quando o deixei foi como se fosse para o exílio. Não é possível voltar para lá, pois há muito tempo, quando eu ainda era criança, tudo que havia ali foi como que varrido da face da Terra. Gosto de pensar que se me fosse dado escolher uma alucinação para a hora da morte, eu escolheria estar outra vez na cozinha espaçosa, olhando as vidraças embaçadas pelo ar quente, enquanto chiam os pinhões na chapa do fogão vermelho, ou na varanda, num sábado de aleluia, olhando a noite muito escura e constelada, sonhando com a surpresa da manhã de páscoa, ou ainda num dia qualquer de verão, simplesmente fruindo o frescor da casa grande e a doçura da madeira clara de que tudo ali era feito. É provável que eu volte a falar muito desse lugar e que venha a reconstruí-lo em desenhos, certamente alterado de sua realidade pela perspectiva de minha memória infantil. Hoje, porém, conto uma anedota simples daqueles tempos, atendendo um pedido de meu irmão numa postagem mais antiga.
Minha mãe tocava lá na Saudade um armazém bem típico do interiorzão, guarnecido de tudo um pouco do que os viventes daquele fim de mundo pudessem precisar, incluindo aí sua sabedoria de primeiros socorros. Além da numerosa gente da serraria vinham ali se abastecer todos os sitiantes do entorno. Entre os sitiantes havia uma família muito esquisita, de quem se dizia ser, todos, inclusive crianças e cavalos, bêbados irrecuperáveis. Eu os achava uma gente deplorável, suja e desgrenhada, e ficava francamente assustada quando dava com a carroça de Tirpe e Glória, era assim que se chamava o casal, atrelada na frente do armazém. Meu irmão, incapaz de perder uma oportunidade de me atormentar, não tardou a perceber minha repugnância e passou a me chamar desde então de Glória, depois “Grória”, forma que rendia um chilique maior da minha parte. O que mais me indignava era que se eu o chamasse de Tirpe, para retribuir a ofensa, isso não produzia efeito esperado, e mais ele ria e se comprazia em me chamar de “Grória”, como chama até hoje. Aliás, passados quase cinqüenta anos disso, quase não me lembro de tê-lo ouvido me chamar por meu nome verdadeiro.
Na foto acima, O Tirpe e a Glória, ele com cinco, eu com um ano de idade.

9 comentários:

  1. Que lindos!
    ...bateu uma saudadinha da tia!

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  2. Cara Ayde,
    Resolvi te responer aqui seu desafio.
    Penso melhor. Vou provocar o tema às minhas acompanhantes propondo, não só a cozinha, mas um fragmento ou cômodo ou espaço da casa, que mais seja a sua cara.
    Que tal?
    Conto e começo com você que deu a idéia.
    Diga o que acha.
    bj, lina


    E que belo relato biográfico o seu, Grógria!

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  3. Obrigada, Lina, adorei a idéia. Vamo nessa.
    Um beijo,
    ayde

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  4. Linda a foto, Ayde, e o seu texto também!

    Um beijo,
    Ieda.

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  5. Ieda,
    obrigada, e um bejão para você também.

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  6. Até que enfim assumiste Grória.
    Seu texto é uma Glória.
    Saudades um beijão
    do Tirpe,

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  7. Uma bela narrativa!
    Gostei da foto e da pintura também, muito!

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  8. Olá, tia. Estive procurando seu blog, não tinha certeza de como procurar por você, mas ao começar a ler esta postagem tive a certeza de que era quem eu procurava, pelo "interior do Paraná" e "Guarapuava". Sou filha da Eunice, sua sobrinha que é filha da Bernardina, Dina. Gostaria de manter contato, a mãe está mandando um beijão. Achei lindas suas pinturas.

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  9. Menina Francine, só agora descobri você aqui. É um prazer imenso te conhecer. Acabei de fazer um comentário lá no teu blog. Beijão da tia-avó,
    ayde

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