terça-feira, 8 de junho de 2010

outros tempos


Faz já uns trezentos anos eu trabalhei na fiscalização dos serviços de hidrometria que a SUREHMA fazia (não sei se ainda faz) para a COPEL. Era um trabalho para lá de chato, que consistia basicamente em receber os dados de campo, prepará-los para digitação, corrigir os que voltavam da digitação, alimentar com eles os programas que geravam os dados secundários, desenhar uma infinidade de curvas, verificar as inconsistências, encher o saco do pessoal da SUREHMA por causa das inconsistências, enfim ... Periodicamente ia-se a campo, eu e meus colegas, para fiscalizar a condição dos postos de observação ao longo dos rios: de ordinário era só verificar a condição dos pluviômetros, o nivelamento das réguas e a presteza dos observadores recrutados entre os ribeirinhos. Mas, às vezes, era preciso entrar no rio para fazer uma medição direta, e isto só era possível junto com uma das equipes de hidrometristas, não só porque eles é que tinham o barco e o equipamento de medição, mas principalmente porque eles é que sabiam enfrentar o rio. O trabalho de um hidrometrista é mal pago, pesado e penoso, exige que se viva a maior parte do tempo em trânsito, praticamente o mês todo longe de casa, acampado na barranca dos rios, com frio, com calor, abaixo de chuva, e com frequência em condições muito perigosas, na época das cheias. Não é de se admirar que grande parte dos hidrometristas com quem convivi naquele tempo tivesse problemas de alcoolismo. A SUREHMA contornava essa questão “temperando” as duplas de técnicos que saiam a campo, de modo que um deles fosse sempre muito sóbrio e careta, mesmo que apenas medianamente competente, e de preferência com ascendência moral sobre o companheiro, o “problemático”, mas de cuja competência não se podia prescindir. Dos “problemáticos” eu me lembro especialmente de um, uma figura engraçada e já folclórica entre nós da hidrologia, de quem se dizia ser a pessoa mais confiável para se ter ao lado no barco, se o rio não estivesse para peixe. Esse camarada, acaso o encontrasse nas reuniões esporádicas em nossas sedes em Curitiba, bem composto e escanhoado, parecendo sempre um pouco desconfortável, tratava-me com uma cerimônia fora de propósito, só se dirigindo a mim em último caso, sem nunca me olhar nos olhos e me tratando por “senhora”. Já se o encontrasse no campo, ele, ainda cerimonioso, mas agora de modo franco e natural, sempre ligeiramente “alegre”, tratava-me por “neguinha”.
Na foto, à direita, numa balsa de travessia do rio Ivaí, em Tereza Cristina, meu colega Ruy Dikran Stephen; à esquerda um hidrometrista da SUREHMA (não o desta crônica), de quem só me ficou o apelido (Beto) e a lembrança de que passava dias a fio se alimentando de bolacha de mel, por nojo de comer nas espeluncas em que a gente comia ao longo do trajeto.

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