segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

"O crime (de plágio) perfeito"*


"Aconteceu em São Paulo, por volta de 1933, ou 4. Eu fazia crônicas diárias no Diário de São Paulo e além disso era encarregado de reportagens e serviços de redação; ainda tinha uns bicos por fora. Fundou-se naquela ocasião um semanário humorístico, O Interventor, que depois haveria de se chamar O Governador. Seu dono era Laio Martins, excelente homem de cabelos brancos e sorriso claro, boêmio e muito amigo. Pediu-me colaboração; o que podia pagar era muito pouco, mas eu não queria faltar ao amigo. Escrevi algumas crônicas assinadas. Depois comecei a falhar muito, e como Laio reclamasse, inventei um pretexto para não escrever. Seu jornal era excessivamente político (perrepista, se bem me lembro) e eu não queria tomar partido na política paulista, mesmo porque tinha muitos amigos antiperrepistas. Laio não se conformou: “Então ponha um pseudônimo!”

Prometi de pedra e cal, mas não cumpri. Laio reclamou novamente, me deu prazo certo para lhe entregar a crônica. No dia marcado eu estava atarefadíssimo, e quando veio o contínuo buscar a crônica para O Interventor eu cocei a cabeça – e tive uma idéia. Acabara de ler a crônica de Carlos Drummond de Andrade no Minas Gerais, órgão oficial de Minas, com um pseudônimo – algo assim como Antônio João, ou João Antônio, ou Manuel Antônio, não me lembro mais; ponhamos Antônio João. Botei papel na máquina, copiei a crônica rapidamente e lasquei o mesmo pseudônimo.

Dias depois recebi o dinheiro da colaboração, juntamente com o pedido urgente de outra crônica e um recado entusiasmado do Laio: a primeira estava esplêndida!

Daí para frente encarreguei um menino da portaria, que estava aprendendo a escrever à maquina, de bater a crônica de Drummond para mim; eu apenas revia, para substituir ou riscar alguma referência a qualquer coisa de Minas. Pregada a mentira e praticado o crime, o remédio é perseverar nesse rumo hediondo; se às vezes senti remorso, eu o afogava em chope no bar alemão ao lado, e o pagava (o chope) com o próprio dinheiro do vale de Antônio João.

O remorso não era, na verdade, muito: Carlos não sabia de nada, e o que eu fazia não era propriamente um plágio, porque nem usava matéria assinada por ele, nem punha o meu nome em trabalho dele. E Laio Martins sorria feliz, comentando com meu colega de redação. “O Rubem não quer assinar, mas que importa? Seu estilo é inconfundível!”

O estilo era inconfundível e o chope era bem tirado; mas você pode ter certeza, Carlos Drummond de Andrade, que muitas vezes eu o bebi à sua saúde, ou melhor, à saúde de Antônio João, isto é, à nossa. Dos 25 mil-réis que Laio me pagava, eu dava 5 para o menino que batia à máquina; era muito dinheiro para um menino naquele tempo, e isso fazia o menino feliz. Enfim, lá em São Paulo, todos éramos felizes graças ao seu trabalho: Laio, o menino, os leitores e eu – e você em Minas não era infeliz.

Não creio que possa haver um crime mais perfeito."

*Rubem Braga, In 200 Crônicas Escolhidas, Editora Record, Rio de Janeiro, 1978.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

...das pessoas que mais amei ...


E eis que do fundo do tempo me chega por email esta mensagem:

"Achei o textinho nos meus "escritos". Não tenho um cérebro brilhante, mas a leitura é breve, você sobreviverá a ele. Beijo, myrian


Minha Prima

Minha prima tinha olhos azuis. Fomos amigas desde antes de nos descobrirmos primas. Na escola, inseparáveis até nos separarmos (a gente achava que não sobreviveria). Dividimos muitas vezes o mesmo “pão com molho” da cantina do colégio: o sanduíche completo a gente deixava para as mais abastadas.
Somávamos uma à solidão adolescente da outra.
Se estudávamos, o que quer que fosse eu aprendia com ela – claro, sem o mesmo brilhantismo- mas com semelhante paixão pelas descobertas ou incertezas da vida. Por outra, se éramos nós o objeto do estudo, ela aprendia comigo – claro, sem a mesma convicção- a levantar os atributos que demonstravam que não era feia como se imaginava.
Por bons anos, compartilhamos a escola, nossos familiares, nossas casas, nossas roupas, a comida, o sono, a insônia, nosso cigarro, nossas músicas, nossa experiência, a inexperiência, as maluquices, os sonhos, os ideais, os planos, os complexos, as lágrimas (poucas), os risos (muitos)... Só amigos... não me lembro de compartilharmos. Acho que nos bastávamos, auto-suficientes como éramos.
Então um dia... eu me fiz mãe e ela se fez engenheira. Des-com-par-ti-lha-mos nossas vidas, e faz tanto tempo. Mas sempre que a saudade me põe a espiar pelo espelho embaçado do retrovisor, eu os vejo lá... os olhos azuis da minha prima."

17.10.2010 02h45

myrian

domingo, 23 de janeiro de 2011

mais do espírito de Curitiba

(imagem de Washington Takeuchi)
Eu diria que meu amigo Takeuchi é um japonês com espírito meio polaco. Todos que vivem ou viveram em Curitiba ficam meio polacos, como eu.
Para ver mais, visite o www.circulandoporcuritiba.blogspot.com

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Por que as mulheres comem restos


(imagem de Petr David Josek)
Depois que meus filhos nasceram há coisas que eu só como se sobrarem: a última porção que ficou na travessa depois que todos já se empanturraram, ou, o que é mais comum (sob engulhos e vaias da platéia indignada), as aparas, os restos rejeitados do prato de cada um. Meu marido atribui esse hábito feio a um abominável franciscanismo de que gosta de me acusar; no fundo ele sabe que não se trata disso, pois já me contou que sua primeira mulher fazia coisa parecida. Ora, eu não conheço mulher “normal” que não o faça. Que me atire a primeira pedra a mãe – mãe normal - que consiga abrir e comer sem culpa um danoninho inteiro, limpinho e só dela, ainda que a geladeira esteja abarrotada de danoninhos.
Eu já contei aqui que tivemos uma cadela, criatura elegante e de espírito refinado, chamada Olívia. A Olívia, quando tinha filhotes já taludos, em idade de consumir comida sólida, era incapaz de se servir de qualquer bocado que já não estivesse bem roído, babado, revirado, triturado em mil pedacinhos e disperso pelo quintal pela criançada. Se a separávamos dos filhotes bem saciados e insistíamos que aceitasse de nossa mão um belo pedaço de carne, por exemplo, ela educadamente o abocanhava e ficava por ali disfarçando, até que finalmente conseguisse entregar a guloseima aos miúdos. Se daí sobrasse alguma coisa, ela comia.
Pois as mulheres, como as fêmeas de qualquer espécie, têm impulsos atávicos que os homens são incapazes de compreender.

sábado, 8 de janeiro de 2011

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

os homens e as mulheres*


*a propósito da coluna da Nina Horta no Jornal Folha de São Paulo, neste 06/01/2011


Já eu era meio mulher disfarçada de homem. Sem ser propriamente feia, reconheço agora, andava curvada sob o peso de minha feiúra. Se os homens me olhavam, e olhavam muito, eu considerava que isto se devesse a alguma tara muito excêntrica, ou, no mais das vezes, ao brilho da minha inteligência. Cresci com a convicção inabalável de que era muito feia e muito inteligente.
Fui engenheira, ainda no tempo em que essa palavra nem existia; as engenheiras éramos todas “engenheiros”, até que, lá pelo final dos anos 80, decretaram que a palavra “engenheira” passasse a existir, e me convocaram ao CREA para alterar gratuitamente a designação na carteira profissional. Não fui: sou oficialmente “engenheiro” até hoje.
Pois fui engenheira, civil, não dessas de bota e capacete (só muito raramente), que não fazem muito o meu gênero: sempre tive medo de altura, de escorregar, de cair, de me machucar. Vivi grande parte de minha juventude às voltas com papelada e providências sem a menor graça. Gostava é de que me mandassem lá de cima a ordem: “considere tal hipótese”. Então eu, desde sempre um tantinho autista e inclinada ao devaneio, era capaz de passar semanas a fio esquecida de tudo, esquecida de mim, imune ao frio, ao calor, à chuva, aos apelos todos da vida sensível, semanas a fio mergulhada em especulações que ia tecendo na língua de Newton e Leibnitz, como que encantada, não tanto pelo que me diziam, mas sobretudo pelo adorável desenho que faziam em metros e metros de papel contínuo. Era bom.
Um dia tive um filho, e isso mudou completamente o foco de minhas incertezas. Passei a enxergar tudo através do filtro desse acontecimento. Acabei por ir-me embora com o poeta pai do meu filho, e de quebra tive outros dois. Brinquei de engenheira por uns bons anos ainda, mas agora não mais: há tempos vivo do suor diário do pai de meus filhos. Nunca me deixei analisar por causa disso, ainda que por isso e por muitas outras coisas eu seja ligeiramente louca. Eu não ligo: meu poeta diz que tem uma certa queda pelas loucas.

van Gogh 2



"Basta que me assalte o medo do tédio, a desconfiança de que um mito é apenas fumaça num espelho retrovisor, de que o futuro é pouco mais que um exercício para o salto de trampolim – bastam esses avisos para que eu abra"* esse livro nesta página:

*Alcides Villaça, "In" Carta de Amor.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

"música barata"

A Saga de Gösta Berling


Dos romances de Selma Lagerlöf conheço dois: “O Imperador de Portugal” e este “A Saga de Gosta Berling”, que acabei de ler por estes dias. O primeiro (o mais tardio dos dois), bem menor, me pareceu – como romance - mais bem realizado, mais submetido à mão firme da escritora. Se o “A Saga de Gosta Berling” tivesse recebido outro título, algo como “aquele ano na província de Värmland”, por exemplo, talvez eu não tivesse ficado com a impressão de que o personagem do título, Gösta Berling, funciona apenas como o fio condutor de várias histórias contíguas (à maneira do condutor do trem no Dodeskaden de Kurosawa, ou do corvo, no Kaos dos irmãos Taviani). É uma falsa impressão, reconheço, mas ocorre que as outras personagens, as histórias das outras personagens, e principalmente o tratamento que a escritora dá às histórias das outras personagens são tão fortes, que o drama central, o do padre exonerado e proscrito, parece diluir-se. O que acontece na verdade é que vários capítulos desse romance têm a força de contos, e contos extraordinários, com vida quase independente. Assim é com “A morte libertadora”, “O patrão Julius”, “O cemitério” e “Os santos de barro”, de que me lembro de imediato. Em “Os santos de barro” estão reunidas em grande estilo as características que mais admiro na escritora: o ritmo perfeito, as imagens poderosas - aqui, na prosa, essas qualidade tão caras à poesia – a facilidade com que ela faz transitar suas personagens entre a aspiração ao sublime e a subjugação à realidade patética, entre o grotesco e de novo o sublime. Esse capítulo é de fato tão belo que é possível que eu o transcreva aqui, por esses dias.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

e mais Bandeira

A VIRGEM MARIA

O Oficial do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da Santa Casa e o administrador do cemitério de São João Batista
Cavaram com enxadas
Com pás
Com as unhas
Com os dentes
Cavaram uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia
Depois me botaram lá dentro
E puseram por cima
As Tábuas da Lei

Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da cova
Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria
Dizer que fazia sol lá fora
Dizer insistentemente
Que fazia sol lá fora.

Manuel Bandeira "In" POESIA COMPLETA E PROSA, Ed. Nova Aguilar, S.A., Rio, 1985.