quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

os homens e as mulheres*


*a propósito da coluna da Nina Horta no Jornal Folha de São Paulo, neste 06/01/2011


Já eu era meio mulher disfarçada de homem. Sem ser propriamente feia, reconheço agora, andava curvada sob o peso de minha feiúra. Se os homens me olhavam, e olhavam muito, eu considerava que isto se devesse a alguma tara muito excêntrica, ou, no mais das vezes, ao brilho da minha inteligência. Cresci com a convicção inabalável de que era muito feia e muito inteligente.
Fui engenheira, ainda no tempo em que essa palavra nem existia; as engenheiras éramos todas “engenheiros”, até que, lá pelo final dos anos 80, decretaram que a palavra “engenheira” passasse a existir, e me convocaram ao CREA para alterar gratuitamente a designação na carteira profissional. Não fui: sou oficialmente “engenheiro” até hoje.
Pois fui engenheira, civil, não dessas de bota e capacete (só muito raramente), que não fazem muito o meu gênero: sempre tive medo de altura, de escorregar, de cair, de me machucar. Vivi grande parte de minha juventude às voltas com papelada e providências sem a menor graça. Gostava é de que me mandassem lá de cima a ordem: “considere tal hipótese”. Então eu, desde sempre um tantinho autista e inclinada ao devaneio, era capaz de passar semanas a fio esquecida de tudo, esquecida de mim, imune ao frio, ao calor, à chuva, aos apelos todos da vida sensível, semanas a fio mergulhada em especulações que ia tecendo na língua de Newton e Leibnitz, como que encantada, não tanto pelo que me diziam, mas sobretudo pelo adorável desenho que faziam em metros e metros de papel contínuo. Era bom.
Um dia tive um filho, e isso mudou completamente o foco de minhas incertezas. Passei a enxergar tudo através do filtro desse acontecimento. Acabei por ir-me embora com o poeta pai do meu filho, e de quebra tive outros dois. Brinquei de engenheira por uns bons anos ainda, mas agora não mais: há tempos vivo do suor diário do pai de meus filhos. Nunca me deixei analisar por causa disso, ainda que por isso e por muitas outras coisas eu seja ligeiramente louca. Eu não ligo: meu poeta diz que tem uma certa queda pelas loucas.