domingo, 31 de janeiro de 2010
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
54 anos
Meus tios Iracy e Manuel, em 1956
"Reconhecimento do amor
Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.
Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez – sem o perceber, juro –
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
no caos universal.
Como nos enganamos fugindo do amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.
Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos transmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
à revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.
Levou tempo, eu sei,para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar."
Carlos Drummond de Andrade, In Poesia Completa, Ed. Nova Aguillar, Rio de Janeiro, 2006.
"Reconhecimento do amor
Amiga, como são desnorteantes
os caminhos da amizade.
Apareceste para ser o ombro suave
onde se reclina a inquietação do forte
(ou que forte se pensava ingenuamente).
Trazias nos olhos pensativos
a bruma da renúncia:
não querias a vida plena,
tinhas o prévio desencanto das uniões para toda a vida,
não pedias nada,
não reclamavas teu quinhão de luz.
E deslizavas em ritmo gratuito de ciranda.
Descansei em ti meu feixe de desencontros
e de encontros funestos.
Queria talvez – sem o perceber, juro –
sadicamente massacrar-te
sob o ferro de culpas e vacilações e angústias que doíam
desde a hora do nascimento,
senão desde o instante da concepção em certo mês perdido na História,
ou mais longe, desde aquele momento intemporal
em que os seres são apenas hipóteses não formuladas
no caos universal.
Como nos enganamos fugindo do amor!
Como o desconhecemos, talvez com receio de enfrentar
sua espada coruscante, seu formidável
poder de penetrar o sangue e nele imprimir
uma orquídea de fogo e lágrimas.
Entretanto, ele chegou de manso e me envolveu
Em doçura e celestes amavios.
Não queimava, não siderava; sorria.
Mal entendi, tonto que fui, esse sorriso.
Feri-me pelas próprias mãos, não pelo amor
que trazias para mim e que teus dedos confirmavam
ao se juntarem aos meus, na infantil procura do Outro,
o Outro que eu me supunha, o Outro que te imaginava,
quando – por esperteza do amor – senti que éramos um só.
Amiga, amada, amada amiga, assim o amor
dissolve o mesquinho desejo de existir em face do mundo
com olhar pervagante e larga ciência das coisas.
Já não defrontamos o mundo: nele nos diluímos,
e a pura essência em que nos transmutamos dispensa
alegorias, circunstâncias, referências temporais,
imaginações oníricas,
o vôo do Pássaro Azul, a aurora boreal,
as chaves de ouro dos sonetos e dos castelos medievos,
todas as imposturas da razão e da experiência,
para existir em si e por si,
à revelia de corpos amantes,
pois já nem somos nós, somos o número perfeito:
UM.
Levou tempo, eu sei,para que o Eu renunciasse
à vacuidade de persistir, fixo e solar,
e se confessasse jubilosamente vencido,
até respirar o júbilo maior da integração.
Agora, amada minha para sempre,
nem olhar temos de ver nem ouvidos de captar
a melodia, a paisagem, a transparência da vida,
perdidos que estamos na concha ultramarina de amar."
Carlos Drummond de Andrade, In Poesia Completa, Ed. Nova Aguillar, Rio de Janeiro, 2006.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
oh-trem-oh
Acho interessante que uma casa tenha coisas bonitas guardadas, não escondidas, guardadas em local discreto ou de trânsito mais raro, de modo que quem eventualmente dê por elas sinta-se distinguido por uma espécie de revelação. Foi inspirada nessa idéia que criei a “caixa do segredo” que aparece na banda de “gadgets” à direita: por fora fiz esse abstrato/geométrico lembrando vagamente umas telas de Paul Klee; a coisa meio lúdica do quadriculado colorido já me agrada bastante, mas reservei para o interior da caixa algo que acho muito mais bonito, a reprodução de uma obra de Monet. A caixa do segredo serve para nada ou para guardar coisas preciosas, tais como cartas do namorado, fotos, um objeto qualquer que remeta a um tempo feliz do passado, etc. O importante é que ela, ainda que vazia, contenha sem alarde essa coisa bela e inesperada. Meu marido, que tem obsessão por trens, batizou esta caixa de “oh-trem-oh”, e eu gostei.
terça-feira, 26 de janeiro de 2010
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
Ainda o namorado
Minha amiga Ieda, que tem a incrível capacidade de reconhecer todos os gansos de Águas de Lindóia, me fez por email esta inusitada revelação:
"[...]
Fiquei emocionada ao ler suas palavras, reconhecendo na foto o Lino. Afetivamente, chamei a princípio esse gansinho branco de Tontolino: ele nunca vinha comer guloseimas da minha mão como os outros e dificilmente encontrava no chão os pedaços de bolacha que eu jogava para ele.
Mas, Ayde, como você sabe, o Tontolino não é tonto: a sua sensibilidade, enorme, se reconhece. O Tontolino, o Lino não é tonto: ele é cego.
Difícil alimentá-lo, porque a natureza deu a meus outros amigos, inúmeros, a visão imediata da comida. O tempo do Lino é outro, mais demorado. Impressionante o modo como é capaz de atravessar o lago e passear ora pela grama, ora pelo galinheiro-“ganseiro”: talvez iluminado parcialmente pelo sol e pela presença dos demais, com a proximidade às vezes de dois gansinhos seus irmãos; e sempre o invisível, vivo interesse sentido por você.
Soou trágico o que eu escrevi, afinal talvez o Lino apenas não enxergue tão bem. Mas não deixa de ser cômica essa revelação sobre o seu “namorado”, até porque eu mesma andei com as “retinas fatigadas” [...], e a imagem do Lino é bonita inclusive por ele enxergar de outra forma. [...]"
sábado, 23 de janeiro de 2010
sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
Um namorado
Num parque central de Águas de Lindóia propus-me a encontrar um ganso branco de olhos azuis que é muito amigo de minha amiga Ieda Lebensztayn, e que eu talvez reconhecesse por já tê-lo pintado a partir de uma foto que a Ieda me mostrou. Como a gansarada fosse inúnera, e estivessem muito longe, e eu impossibilitada de andar muito, não consegui identificá-lo. Em compensação arranjei um namorado, este gansinho da foto, que ficou vivamente interessado em mim, mesmo eu não estando com nenhuma daquelas guloseimas que costumam atrair os gansos. Vai ver ele reconheceu em mim sua alma gêmea.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
Estranhamento poético (em série)
Há muitos anos já, saindo para levar dois de meus filhos ainda bem pequenos para a escola, fui surpreendida por um nevoeiro tão espesso que mal se podia perceber qualquer coisa poucos metros à frente do carro. A situação evocou-me a imagem de uma outra, vivida muito tempo antes, com tal força que eu falei aos meninos de repente, sem nenhum preâmbulo: “Uma vez, numa manhãzinha assim de muita névoa, num lugar chamado Balsa do Cantú, eu vi amamentarem dois filhotes órfãos: um bezerro e um cabritinho”. Após alguns segundos de silêncio cavernoso, o menino mais velho disse: “como era mesmo, mãe, o nome desse lugar?” E em seguida o menorzinho: “ah, mãe, confessa, isso não é verdade, é poesia!”
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
Beijo no asfalto
Ontem, parada no semáforo de uma avenida movimentada aqui em Campinas, presenciei uma cena incomum e delicada: quando o sinal fechava, um pobre-diabo postava-se na frente dos carros fazendo uns malabarismos bem mambembes; ao fim da exibição, demasiadamente rápida - penso que mais pela imperícia do artista do que pela iminência de abertura do semáforo - ele tirava da cabeça um gorro surrado de papai Noel e ia até os carros ver se descolava algum agrado pela performance. Em meu carro, no banco do passageiro, eu, muito generosa, aguardava minha vez de colaborar já com umas moedas na mão, observando o homem dirigir-se ao motorista do carro parado à minha frente na pista da direita; depois de trocarem rápidas palavras, vi que ele se inclinou até a altura da janela, enquanto o motorista, na verdade uma motorista, muito jovem e louçã, espichou-se um pouco para fora e delicadamente beijou-o no rosto, após o que ele voltou-se e veio em minha direção. Pensei, apreensiva, que aquilo fizesse parte de uma performance interativa, tão comum nos dias de hoje, e que também eu teria que beijá-lo. Enganei-me: o homem, com ar de quem levita, aceitou distraidamente minhas moedas, enquanto me confidenciava, entre surpreso e maroto: -“ganhei um beijo!”
sábado, 9 de janeiro de 2010
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Arquitetura do pássaro com diamante partido
sábado, 2 de janeiro de 2010
Ainda os sabiás 2
Hoje pela manhã fui bisbilhotar no limoeiro, ver se achava outra vez os filhotes. Não os vi, mas ouvi seus pios, que julgo reconhecer, assim como os pios dos pais. Tendo me afastado um pouco, percebi que um dos adultos chegou, e me coloquei a postos outra vez para flagrá-lo alimentando os moleques. O papai ou mamãe não gostou disto e iniciou uma série de vôos entre os galhos do limoeiro, aproximando-se a afastando-se de mim, no que era claramente uma abordagem de advertência. Infelizmente sou péssima fotógrafa e além disso me atrapalho ainda mais com a circunstância, mas captei estas imagens do adulto enquanto ele me admoestava, e de quebra acho que consegui captar também a atmosfera feérica que sinto sob o limoeiro, mas que parece escapar da lente sempre que tento retratá-la.
sexta-feira, 1 de janeiro de 2010
Ainda os sabiás
Encontrei no limoeiro do quintal os filhotes que hoje abandonaram o ninho. Primeiro achei o gorduchinho num galho; depois o irmãozinho empoleirado na escada. Os pais ainda os alimentam; não insisti em flagrá-los em ação porque eles ficam preocupados, ariscos, mas os pequeninos não se alteram com minha presença.
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