segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
domingo, 27 de fevereiro de 2011
sábado, 26 de fevereiro de 2011
"Os Santos de Barro"*
Imagem de Nego Miranda
"A igreja de Svartsjö é branca por fora e por dentro, as paredes são brancas, o púlpito, as bancadas, o coro, os caixilhos das janelas e o frontal, tudo é branco. Na igreja de Svartsjö não há decorações, nem quadros, nem brasões. Dantes, não era assim. Dantes, o tecto estava cheio de pinturas, e havia nesta casa de Deus muitas obras garridas de pedra e barro.
Uma vez, há muito tempo, um pintor de Savartsjö estava a contemplar um céu de dia de Verão, observando a passagem das nuvens em direcção ao Sol. Tinha visto como as nuvens brancas e luminosas, que de manhã se encontravam no horizonte, vão crescendo. Tinha visto como as enormes massas se alargavam e se apressavam para subir com velocidade. Içavam velas como os barcos. Levantavam estandartes como soldados. Preparavam-se para invadir o céu inteiro. Estes monstros em crescimento fingiam ter uma forma inofensiva perante o Sol, o dono do espaço. Um leão voraz transformou-se numa dama empoada. Um gigante com braços asfixiantes tomou a posição de uma esfinge sonhadora. Algumas nuvens adornavam a sua nudez branca com mantas de bordas douradas. Outras punham maquilhagem vermelha nas faces de neve. Havia planícies. Havia florestas. As nuvens brancas tornaram-se donas do céu de Verão. Enchiam todo o firmamento. Chegaram até o Sol, tapando-o. “Oh, que bom seria”, pensou o dócil artista, “se as almas langorosas pudessem subir para estas montanhas de nuvens e serem transportadas por elas como um navio oscilante, sempre mais alto!”
E então compreendeu, de repente, que as nuvens brancas dum dia de Verão eram os navios em que viajavam as almas dos mortos.
Estava a vê-las. Encontravam-se naquelas formulações deslizantes com lírios nas mãos e coras de ouro nas cabeças. O seu canto ressoava no espaço.
Havia anjos que em asa largas e fortes vinham ao seu encontro. Oh, que grande multidão de almas de defuntos! À medida que as nuvens se espalhavam, apareciam sempre mais almas. Repousavam nas nuvens, como nenúfares num lago. Adornavam-nas como os lírios enfeitam os campos. Que ascensão jubilosa! Apareciam sempre mais e mais nuvens. E em todas havia exércitos celestiais com armaduras de prata e cantores imortais em mantas debruadas de púrpura.
Foi este pintor que depois pintou o tecto da igreja de Svartsjö. Ele quis aí mostrar como as nuvens que se levantam num dia de Verão levam os mortos à glória do Céu. A mão que segurava o pincel era forte, mas também um pouco dura, de modo que as nuvens mais pareciam as ondas crespas de uma peruca de juiz do que uma montanha fofa de neblina. E à medida que os santos tomavam forma na imaginação do pintor, ele não era bem capaz de reproduzi-los, e vestiu-os como seres humanos, em mantos vermelhos e mitras severas, ou em sotainas pretas com golas rijas e caneladas. Deu-lhes cabeças grandes e corpos pequenos e muniu-os de lenços de bolso e breviários. Das suas bocas saíram sentenças em latim, e para aqueles que considerava mais importantes, colocou cadeiras robustas de madeira nas nuvens, para que viajassem com comodidade até a eternidade.
Mas o povo sabia bem que nem os espíritos nem os anjos jamais tinham aparecido ao pobre pintor, e por isso não davam importância ao facto de ele não ter conseguido fazê-los divinamente belos. Mas as pinturas do pintor devem ter parecido a muitas pessoas mesmo maravilhosas, tendo causado muita santa emoção. Bem que teriam sido dignas de serem vistas pelos nossos olhos também.
Durante o ano em que os cavalheiros mandaram, o conde Dohna mandou pintar de branco toda a igreja. Assim, todas as pinturas foram destruídas. E também os santos de barro.
Ai, os santos de barro!
Melhor para mim seria qualquer outra miséria humana que aquela que senti por causa da perda dos santos. Nem a crueldade de homens uns contra os outros me poderia encher da mesma amargura que aquela que senti por causa dos santos de barro.
Imaginem só! Havia um santo Olavo com coroa no elmo, machado na mão e debaixo dos seus pés um gigante ajoelhado. No púlpito estava uma Judite, de camisola vermelha e saia azul, com uma espada numa mão e, na outra, uma ampulheta em vez da cabeça do general assírio. Havia uma rainha de Sabá de camisola azul, com pata de ganso numa das pernas e a mão cheia de livros sibilinos. Havia um São Jorge cinzento, deitado sozinho num banco de coro, porque tanto o cavalo como o dragão tinham sido esmagados. Havia um São Cristóvão com o bordão cheio de folhas e São Erik, com ceptro e machado, vestindo um hábito com flores douradas que descia até os calcanhares.
Muitos domingos estive eu sentada na igreja de Svartsjö, lamentando a perda das figuras e sentindo a sua falta. Para mim, não tinha qualquer importância faltarem-lhes narizes ou pés, ou os dourados perderam o brilho e as cores terem desbotado. Tê-los-ia, à mesma, visto rodeados do esplendor das lendas.
Parece que acontecia a estes santos perderem ceptros, orelhas ou mãos, precisando assim de conserto e polimento. Na congregação as pessoas ficaram fartas e desejaram ver-se livres deles. Mas os lavradores de Svartsjö não haviam de lhe ter feito qualquer dano, se não fosse o conde Henrik Dohna. Foi ele quem os mandou retirar de lá.
Tenho-o odiado por isso, como só uma criança pode odiar. Odiava-o como o mendigo esfomeado odeia a avarenta dona de casa que lhe nega o pão. Odiava-o como um pobre pescador odeia um rapaz travesso que lhe estraga as redes e faz um buraco no seu barco. E não passava eu fome e sede durante as longas missas? Não me tirou ele o pão de que minha alma podia viver? Não suspirava eu pelo infinito, pelo céu? Ele estragou o meu barco e rasgou a rede, com a qual eu podia ter apanhado visões sagradas.
No mundo dos adultos, não há lugar para o ódio verdadeiro. Como poderia eu hoje em dia odiar um ser tão lamentável como o conde Dohna, um louco como Sintram, ou uma depravada senhora da alta sociedade como a condessa Marta? Mas quando eu era criança! Ainda bem para eles já estarem mortos há muito tempo.
Bem podia o padre falar, do seu púlpito, em paz e reconciliação que, do nosso lugar na igreja, as suas palavras não podiam ser ouvidas. Oh, se eu os tivesse tido lá comigo, os velhos santos de barro! Eles poderiam ter pregado para mim, para eu ouvir e compreender.
Hoje em dia, lembro-me muitas vezes o que aconteceu quando os santos foram roubados e destruídos.
O facto de o conde Dohna ter mandado anular o seu casamento em vez de procurar a sua mulher e mandar legalizá-lo causou indignação a todos, porque todos sabiam que a sua mulher só tinha abandonado a casa para não ser atormentada até a morte. Parecia que, agora, ele queria tentar reconquistar a graça de Deus e a boa consideração do povo através de uma boa acção, mandando restaurar a igreja de Svartsjö. Fez caiar de branco toda a igreja e tirar as pinturas do tecto. Ele próprio e os seus criados levaram as imagens, num barco, e afundaram-nas nas profundezas do lago Löven.
Mas como ousava ele erguer a mão contra estas formidáveis imagens do Senhor?
Oh, como foi possível esse crime? A mão que cortou a cabeça a Holofernes não sabia mais servir-se da espada? A rainha de Sabá terá esquecido todos os conhecimentos secretos que ferem mais que uma flecha envenenada? Santo Olavo, Santo Olavo, o velho viking, São Jorge, o matador de dragões, o rumor das vossas façanhas terá morrido e a glória dos vossos milagres ter-se-á apagado?! Deve ter sido porque os santos não queriam empregar violência para com os seus destruidores.Foi porque os lavradores de Svartsjö já não queriam gastar tinta para os mantos, e folha dourada para as coroas, e deixaram que o conde Dohna tirasse os santos da igreja e os afundasse no lago Löven. Os santos já não queriam ficar e desfear a casa de Deus. Oh, santos desamparados, já não se lembram dos tempos em que orações e genuflexões vos foram oferecidas?
Penso no barco com a sua carga de santos, deslizando pela superfície do Löven, uma tranqüila tarde de Verão. O homem que o rema lentamente olha com timidez para os estranhos passageiros que se encontravam da proa à popa. Mas o conde Dohna, que também ali está, não tem medo.
Pegou, com as suas próprias mãos, nos santos, um a um, e atirou-os para a água. O seu semblante estava límpido, e respirou profundamente. Sentia-se como um defensor da pura doutrina evangélica. E não aconteceu nenhum milagre em honra dos velhos santos. Calados e desanimados afundaram-se no vazio.
Mas no dia seguinte a igreja de Svartsjö era deslumbrante na sua brancura. Não havia qualquer imagem que pudesse perturbar a tranqüilidade da contemplação íntima. Só com os olhos da alma os piedosos verão a glória do céu e o rosto dos santos. As orações dos homens chegarão pelas suas próprias fortes asas ao Ser Supremo. Nunca mais se vão agarrar à bainha da roupa dos santos.
Oh, verde é a terra, a querida habitação dos homens, azul é o céu, a meta do seu anseio. O mundo brilha de cores. Por que é branca a igreja? Branca como o Inverno, nua como a pobreza, pálida como a angústia! Não cintila de geada como uma floresta no Inverno. Não brilha com pérolas e rendas numa noiva branca. A igreja está coberta de cal branca, sem uma imagem, sem um quadro.
Nesse domingo, o conde Dohna estava sentado no coro numa poltrona enfeitada de flores, para ser visto e louvado por todos. Agora ia ser honrado como o homem que mandou reparar as velhas bancadas, destruiu as feias imagens, mandou pôr novos vidros em todas as janelas estragadas e mandou caiar toda a igreja. Certamente, ele tinha toda a liberdade para fazer tais coisas. Se desejava aplacar a ira do Todo-Poderoso, estava bem que enfeitasse o seu templo como bem entendia. Mas por que é que ele quis louvor por isso?
Ele, que na sua consciência trazia dureza não reconciliada, antes devia era ter ajoelhado no banco da vergonha e pedido a seus irmãos e irmãs, na igreja, para implorarem a Deus que o aceitasse no Seu templo. Seria melhor para ele estar aí como um pobre malfeitor do que estar sentado no coro, honrado e bendito e recebendo honras, por se ter querido reconciliar com Deus.
Oh, conde, com certeza Ele te esperava ver no banco da vergonha. Ele não se deixou enganar pelo facto de os homens não ousarem acusar-te. Ele ainda é o Deus zeloso que deixa falar as pedras, quando os homens ficam calados.
Quando a missa acabou e o último hino foi cantado, ninguém saiu da igreja, mas o padre subiu ao púlpito para fazer um discurso de agradecimento ao conde. Mas tal não aconteceu.
Porque as portas da igreja abriram-se, e lá aparecem de novo os santos na igreja, ensopados da água do Löven, sujos de lodo verde e lama castanha. Devem ter ouvido que ia ser louvado quem os tinha tentado aniquilar, quem os tinha expulsado da santa casa de Deus e afundado nas ondas frias. Os velhos santos gostariam de ter uma palavra neste assunto.
Eles não gostam do marulhar monótono das ondas. Estão acostumados a cantos, hinos e orações. Calaram-se e deixaram fazer o que se fazia, enquanto pensaram que tudo era em honra de Deus. Mas afinal não era. Pois ali está o conde Dohna sentado no coro, querendo ser adorado e louvado na casa de Deus. Tal coisa não podem aceitar. Por isso, levantaram-se do seu túmulo aquático e entraram na igreja, bem reconhecíveis para todas as pessoas. Aí vem o Santo Olaf com a coroa no elmo, e São mErik com as flores douradas no manto, e o cinzento São Jorgew e São Cristóvão. Mas só vieram estes. A rainha de Sabá e Judite não vieram.
Mas quando as pessoas se tinham refeito da surpresa, correu um murmúrio pela igreja:
“Os cavalheiros!”
Pois, são os cavalheiros. E eles vão directamente ao conde e sem dizer uma única palavra, põem a sua cadeira aos ombros e saem com ele da igreja para o pôr no chão.
Não dizem nada e não olham nem à direita nem à esquerda. Tiram simplesmente o conde Dohna da casa de Deus, e depois de o fazerem, vão-se embora, escolhendo o caminho mais curto que leva ao lago.
Eles não foram importunados e não perderam tempo em declarar a sua intenção. A intenção era bem clara. “Nós, os cavalheiros de Ekeby, temos a nossa opinião. O conde Dohna não é digno de ser louvado na casa de Deus. Por isso, tirámo-lo. Quem quiser que o volte a levar para dentro.”
Mas ninguém o levou para dentro. O discurso de louvor do padre não foi feito. As pessoas saíram da igreja. Não havia ninguém que pensasse que os cavalheiros não tivessem agido bem. Lembravam-se da jovem condessa, que fora tão cruelmente tratada em Borg. E lembravam-se dela que fora tão boa para com os pobres, que fora tão bela, que só de vê-la era uma consolação.
Era pecado vir à igreja com partidas loucas, mas tanto o padre como o povo sentiam que eles tinham estado à beira de fazer uma brincadeira ainda maior ao Omnisciente. E sentiram-se envergonhados perante os velhos loucos indisciplinados.
“Quandos homens se calam, as pedras têm de falar”, disseram.
Mas desde esse dia, o conde Henrik não se sentiu bem em Borg. Uma noite escura de Agosto, um coche coberto parou junto à escada grande. Todos os criados se puseram à volta do coche, e a condessa Marta saiu, envolta em xailes e um denso véu a tapar-lhe a cara. O Conde levou-a, e ela estremecia. Fora com a maior dificuldade que a tinham convencido a atravessar o vestíbulo e a varanda.
Entrou no coche, e o conde atrás dela, as portas fecharam-se com estrondo, e o cocheiro deixou os cavalos correrem desembestados. Quando as pegas acordaram no dia seguinte, ela não mais lá estava.
O conde passou a viver no Sul. Vendeu Borg, que depois mudou de dono muitas vezes. Todos amavam o lugar, mas poucos devem ter tido felicidade enquanto o possuíram."*
*Selma Lagerlöf, "in" A SAGA DE GÖSTA BERLING, Cavalo de Ferro Ed, Lisboa, 2007.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
um bom macarrão
Quando criança, na casa dos meus pais, na casa de meus tios e na de todas as pessoas de nossas relações no Paraná, para meu desgosto domingo era dia de macarrão. Às vezes com frango assado, às vezes com “posta”, que se chama “lagarto” aqui em São Paulo e alhures não faço a menor ideia. Nunca pude compreender porque justo no dia em que a comida era para ser mais caprichada - tinha até maionese e sobremesa – havia de se trocar o feijão com arroz, que para mim era e continua sendo o manjar dos deuses, por aquela coisa sem consistência nem personalidade. Só adulta fui aprender que a massa quebrada em mil pedaços e cozida até quase virar mingau nada tinha a ver com o macarrão tal como o comem os italianos e como se comeria no futuro em minha casa. Pois eu, que levo muito a sério o ditado de que “um homem se segura pela boca” aprendi a preparar esse prato – um básico espaguete à bolonhesa - a ponto de eu mesma comê-lo com prazer. Parece muito simples, e é, mas tem uns segredinhos. Vá lá:
- o ponto de cozimento da massa: acredite piamente na indicação do tempo de cozimento na embalagem da massa; se for para desconfiar, desconfie que leva menos tempo, nunca mais:
- o preparo do molho: os temperos de um molho que leva tomate podem variar conforme o gosto de cada um, mas um detalhe é fundamental: deve ser cozido por bastante tempo, uma hora e meia de preferência, mesmo que seja um simples “al sugo”; do contrário ficará ácido. Minha mãe costumava colocar açúcar no molho para corrigir a acidez, mas isto, na minha opinião, não substitui o tempo de cozimento. Quando se quer o frescor do tomate numa massa, o que também é muito gostoso, este deve ser trabalhado rapidamente, de modo que se misture aos temperos e atinja a temperatura desejada para servir, mas sem propriamente cozinhar.
O molho da foto é feito assim:
Aqueça umas cinco colheres de óleo numa panela, até o ponto de sentir o cheiro do óleo aquecido. Refogue aí rapidamente uma cebola grande picada e uns três dentes grandes de alho amassado. Coloque em seguida aproximadamente 400 gramas de carne bovina magra moída e refogue-a também. Acrescente em seguida uns dois quilos de tomates maduros mas firmes, sem semente (não é necessário tirar a pele) e bem picadinhos e vá cozinhando, mexendo sempre, acrescentando água aos poucos, por aquele tempão de que eu já falei (uma hora e meia ou duas, no caso dos tomates frescos). Se preferir usar o molho pronto ou a polpa industrializada de sua preferência, pode ser: não vai ficar tão gostoso, mas quase; o da foto foi feito com “Pomarola” tradicional (embalagem de 500g). Não se esqueça que mesmo usando o molho pronto o tempo de cozimento do “seu molho final” não se altera: uma hora e meia. Use sal, pimenta e o que mais quiser, conforme seu gosto.
Acrescente o molho ao macarrão cozido e escorrido.
Dica de cozinheira "véia": não se intimide se sua carne moída estiver congelada na hora de preparar o molho. É muito fácil e eu até prefiro refogar a carne moída congelada: coloco o bloco congelado na panela em que já estão refogando cebola e alho e aos poucos vou “despregando” do bloco, com uma colher de pau, as porçõezinhas que vão se aquecendo, virando sempre o bloco. Só não descuide da panela e de fazer esse procedimento, porque do contrário você terá ao final um bloco de carne moída cozido.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
Caim
Implico demais com uns maneirismos modernos, como não usar maiúsculas, não pontuar, pontuar de forma “inusitada”, e coisinhas do gênero. Penso que na literatura qualquer transgressão das regras formais que não tenha função muito objetiva é absolutamente dispensável. Por isso, da primeira vez que tentei ler Saramago, não me recordo o que era, joguei longe o livro logo nas primeiras páginas. Mas alguns meses atrás dei com esse “Caim” e fiquei francamente encorajada com sua primeira e evidente virtude: é curto. Ora, Caim é de saída e desde sempre grande personagem, provavelmente o mais emblemático da condição humana, distinguido pelo arbítrio divino com aquela marca que é ao mesmo tempo desonra e privilégio. Pois Saramago, distinguido ele próprio com a marca do humor e da inteligência (que na verdade são amantes inseparáveis), e inconformado com a “existência” do Deus arbitrário, vaidoso, cruel e caprichoso do Antigo Testamento, toma pela mão esse Caim abandonado a seu destino e o conduz de forma admirável a um surpreendente e catártico desfecho da “História”.
Preciso urgentemente ler Saramago, principalmente o “Evangelho segundo Jesus Cristo”. Mas que ele bem podia usar o ponto de interrogação, lá isso podia.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
a Naná também é linda
Esta criaturinha tristonha chama-se Naná e é a última representante viva da linhagem da Olívia. Tem treze anos e já está com a saúde bastante prejudicada e ligeiramente gagá. Essa melancolia não sei a que se deve, mas pensamos que talvez seja por ter sido duas vezes doada quando filhote (tivemos muitas e numerosas ninhadas da Olívia e de suas descendentes, e costumávamos doar os filhotes, claro); nas duas vezes ela foi devolvida, porque se recusava a viver longe de nós. Quando jovem era valente e atrevida, mas agora passa quase todo o tempo descansando pelos cantos. Às vezes, num arroubo que lhe custa quase um desmaio, ela corre ao portão para latir uns desaforos a algum desafeto que passa.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
almas gêmeas
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Anthony Hopkins reads Dylan Thomas
Olha só que interpretação limpa! Sem nenhuma gordura, nenhum "resto de janta abaianada". Todo o trágico está nos olhos.
sábado, 5 de fevereiro de 2011
"O Cemitério"*
[Imagem de "Markinho"]
"Era uma agradável tarde de Agosto, O Lago Löven parecia um espelho, as montanhas estavam como que envolvidas numa neblina de calor, e a frescura da noite estava a chegar.
Apareceu Beerencreutz, o coronel de bigode branco, baixo e forte como um urso, com o baralho de cartas no bolso de trás, dirigindo-se à margem do lago, onde tomou lugar num bote de fundo chato. Acompanhavam-no o major Anders Fuchs, o seu velho irmão de armas, e o pequeno Ruster, o flautista e tambor de regimento dos caçadores de Varmländ, que durante muitos anos o tinha acompanhado como amigo e criado.
Na outra margem do lago encontra-se o cemitério, o mal cuidado cemitério da freguesia de Svartsjö. Com poucas campas e cruzes de ferro que fazem ruído ao vento, está cheio de erva, como um campo nunca lavrado e coberto de junca e a erva crescia em variedade, a lembrar que nenhuma vida humana é totalmente igual à outra mas cada uma diferente como as folhas da erva. Aqui não há carreiros com areia nem árvores que oferecem sombra, além da grande tília na campa esquecida dum velho padre. O muro de pedra encerra, alto e carrancudo, o campo. O cemitério é pobre e desolador, feio como a cara dum avarento, murcho sob os lamentos das pessoas a quem ele roubou a felicidade. Mas mesmo assim os que lá repousam são felizes, porque foram enterrados em terra abençoada com hinos e orações. Acquilon, o jogador, que morreu no ano passado em Ekeby, teve de ser enterrado fora do muro. Esse homem, outrora tão orgulhoso e cavalheiresco; um valente guerreiro, destemido caçador e jogador sortudo, acabou por destruir a herança dos seus filhos, tudo o que tinha adquirido, tudo o que sua mulher tinha cuidado. Abandonara a mulher e os filhos para ir viver a vida de cavalheiro em Ekeby. Uma tarde, no Verão passado, jogou a quinta, que era o sustento da família. Em vez de pagar a sua dívida, pôs termo à sua própria vida com um tiro. E o corpo do suicida foi enterrado fora do muro com musgo do cemitério.
Desde a morte dele os cavalheiros eram só doze. Desde aquela morte, ninguém viera para tomar o lugar do décimo terceiro cavalheiro, a não ser o Diabo, que apareceu na Noite Santa, saindo do alto-forno.
Os cavalheiros acharam o seu destino mais amargo que o dos seus antecessores. Bem sabiam que um deles tinha de morrer todos os anos. E que mal tinha isso? Os cavalheiros não devem ser velhos. Quando os seus olhos cegos não mais conseguem distinguir as cartas de jogo nem as suas mãos trémulas levantar o copo, que interesse tem a vida e o que são eles para a vida? Mas repousar como um cão junto ao muro do cemitério, onde a terra que os cobre não pode repousar em paz, sendo pisada por carneiros que pastam, ou ferida por pás e arados, onde o caminhante passa sem abrandar o seu passo, e as crianças brincam sem moderar as gargalhadas – mas repousar, ali, onde o muro de pedras impede que se ouça a trombeta do anjo que acordará os mortos do Dia de Juízo Final! Não, esse não é um bom lugar para repousar. Oh, que bom seria poder repousar lá dentro!
Agora Beerencreutz atravessa o lago Löven no seu bote. Passa esta tarde pelo lago dos meus sonhos, à volta de cujas margens vi deuses passearem e vi meu castelo mágico surgir da profundidade. Ele passa pelas lagunas da ilha Lag, onde os abetos surgem direitinhos da água, crescendo em bancos de areia baixos e circulares, e onde as ruínas do castelo do pirata ainda se vêem no pico íngreme da ilha. Passa debaixo do parque de abetos no promontório de Borg, onde o velho pinheiro com raízes grossas ainda pende sobre o barranco, onde uma vez apanharam um enorme urso, e onde os velhos montes de pedra e túmulos demonstram a idade do lugar.
Contorna o promontório, sai do barco junto ao cemitério e passa por campos ceifados, que pertencem ao conde de Borg, até chegar à campa de Acquilon.
Uma vez lá chegado, abaixa-se e dá uma palmadinha na relva da mesma maneira que afagamos o cobertor que tapa um amigo doente. Em seguida, tira do bolso o baralho de Kille e senta-se junto à campa.
“Ele está muito só aqui, o nosso Johan Fredrik. Deve ter saudades de uma partida.”
“É uma vergonha que um homem como ele tenha de ficar cá fora”, diz o grande caçador de ursos Anders Fuchs, e senta-se ao seu lado.
Mas o pequeno Ruster, o flautista, fala de voz comovida, enquanto as lágrimas correm dos seus pequenos olhos injectados de sangue.
“A seguir ao senhor coronel, ele era o homem mais elegante que alguma vez conheci.”
Este três distintos homens estão, agora, sentados à volta da campa, e dão as cartas com seriedade e zelo.
Olhando para o mundo, vejo muitas campas. Acolá repousa um homem poderoso, coberto de mármore. A marcha fúnebre retumba sobre ele. Bandeiras são baixadas sobre a campa. Vejo campas de pessoas muito amadas. Flores, regadas com lágrimas, afagadas de beijos, repousam levemente nos verdes relvados. Vejo campas esquecidas, campas presunçosas, lugares de repouso que mentem e outros que não dizem nada. Mas nunca antes vi um valete vestido de xadrez branco e preto, e um Jocker, com um guizo no gorro, a serem oferecidos ao habitante de uma campa para o seu prazer.
“Foi Johan Fredrik quem ganhou”, diz o coronel com orgulho. “Bem sabia! Eu ensinei-lhe o jogo. Pois, agora estamos todos mortos, nós três, e só ele está vivo.”
Recolhe as cartas, levanta-se e volta com os outros para Ekeby.
Suponho que o morto deve ter sabido, e sentido, que nem ele nem a sua campa estavam esquecidos por todos. Os corações indisciplinados prestam homenagem estranha àqueles que amam, mas os que estão fora do muro, aqueles cujos restos mortais não podem repousar em terra santa, bem que podem ficar felizes porque nem todos os rejeitam.
Amigos, quando morrer repousarei, com certeza, no centro do cemitério, no jazigo dos meus antepassados. É verdade que não tirei o sustento à minha família, nem atentei contra a minha própria vida, mas também é certo que não mereci, nem ganhei, nem conquistei um tal amor. E, também, estou segura, ninguém fará tanto por mim como os cavalheiros fizeram por este criminoso. Com certeza ninguém chegará, ao pôr do Sol, quando o território dos mortos fica solitário e triste, para colocar cartas garridas entre os meus esqueléticos dedos.
Também não virão, o que mais apreciaria, já que as cartas exercem pouca atracção sobre mim, com violino e arco até à minha campa, para que a minha alma, que divaga à volta dos restos mortais, possa flutuar na corrente dos tons, como um cisne em ondas cintilantes.”
*SELMA LAGERLÖF, In A Saga de Gösta Berling, Cavalo de Ferro Editores, Lisboa, 2007
"Era uma agradável tarde de Agosto, O Lago Löven parecia um espelho, as montanhas estavam como que envolvidas numa neblina de calor, e a frescura da noite estava a chegar.
Apareceu Beerencreutz, o coronel de bigode branco, baixo e forte como um urso, com o baralho de cartas no bolso de trás, dirigindo-se à margem do lago, onde tomou lugar num bote de fundo chato. Acompanhavam-no o major Anders Fuchs, o seu velho irmão de armas, e o pequeno Ruster, o flautista e tambor de regimento dos caçadores de Varmländ, que durante muitos anos o tinha acompanhado como amigo e criado.
Na outra margem do lago encontra-se o cemitério, o mal cuidado cemitério da freguesia de Svartsjö. Com poucas campas e cruzes de ferro que fazem ruído ao vento, está cheio de erva, como um campo nunca lavrado e coberto de junca e a erva crescia em variedade, a lembrar que nenhuma vida humana é totalmente igual à outra mas cada uma diferente como as folhas da erva. Aqui não há carreiros com areia nem árvores que oferecem sombra, além da grande tília na campa esquecida dum velho padre. O muro de pedra encerra, alto e carrancudo, o campo. O cemitério é pobre e desolador, feio como a cara dum avarento, murcho sob os lamentos das pessoas a quem ele roubou a felicidade. Mas mesmo assim os que lá repousam são felizes, porque foram enterrados em terra abençoada com hinos e orações. Acquilon, o jogador, que morreu no ano passado em Ekeby, teve de ser enterrado fora do muro. Esse homem, outrora tão orgulhoso e cavalheiresco; um valente guerreiro, destemido caçador e jogador sortudo, acabou por destruir a herança dos seus filhos, tudo o que tinha adquirido, tudo o que sua mulher tinha cuidado. Abandonara a mulher e os filhos para ir viver a vida de cavalheiro em Ekeby. Uma tarde, no Verão passado, jogou a quinta, que era o sustento da família. Em vez de pagar a sua dívida, pôs termo à sua própria vida com um tiro. E o corpo do suicida foi enterrado fora do muro com musgo do cemitério.
Desde a morte dele os cavalheiros eram só doze. Desde aquela morte, ninguém viera para tomar o lugar do décimo terceiro cavalheiro, a não ser o Diabo, que apareceu na Noite Santa, saindo do alto-forno.
Os cavalheiros acharam o seu destino mais amargo que o dos seus antecessores. Bem sabiam que um deles tinha de morrer todos os anos. E que mal tinha isso? Os cavalheiros não devem ser velhos. Quando os seus olhos cegos não mais conseguem distinguir as cartas de jogo nem as suas mãos trémulas levantar o copo, que interesse tem a vida e o que são eles para a vida? Mas repousar como um cão junto ao muro do cemitério, onde a terra que os cobre não pode repousar em paz, sendo pisada por carneiros que pastam, ou ferida por pás e arados, onde o caminhante passa sem abrandar o seu passo, e as crianças brincam sem moderar as gargalhadas – mas repousar, ali, onde o muro de pedras impede que se ouça a trombeta do anjo que acordará os mortos do Dia de Juízo Final! Não, esse não é um bom lugar para repousar. Oh, que bom seria poder repousar lá dentro!
Agora Beerencreutz atravessa o lago Löven no seu bote. Passa esta tarde pelo lago dos meus sonhos, à volta de cujas margens vi deuses passearem e vi meu castelo mágico surgir da profundidade. Ele passa pelas lagunas da ilha Lag, onde os abetos surgem direitinhos da água, crescendo em bancos de areia baixos e circulares, e onde as ruínas do castelo do pirata ainda se vêem no pico íngreme da ilha. Passa debaixo do parque de abetos no promontório de Borg, onde o velho pinheiro com raízes grossas ainda pende sobre o barranco, onde uma vez apanharam um enorme urso, e onde os velhos montes de pedra e túmulos demonstram a idade do lugar.
Contorna o promontório, sai do barco junto ao cemitério e passa por campos ceifados, que pertencem ao conde de Borg, até chegar à campa de Acquilon.
Uma vez lá chegado, abaixa-se e dá uma palmadinha na relva da mesma maneira que afagamos o cobertor que tapa um amigo doente. Em seguida, tira do bolso o baralho de Kille e senta-se junto à campa.
“Ele está muito só aqui, o nosso Johan Fredrik. Deve ter saudades de uma partida.”
“É uma vergonha que um homem como ele tenha de ficar cá fora”, diz o grande caçador de ursos Anders Fuchs, e senta-se ao seu lado.
Mas o pequeno Ruster, o flautista, fala de voz comovida, enquanto as lágrimas correm dos seus pequenos olhos injectados de sangue.
“A seguir ao senhor coronel, ele era o homem mais elegante que alguma vez conheci.”
Este três distintos homens estão, agora, sentados à volta da campa, e dão as cartas com seriedade e zelo.
Olhando para o mundo, vejo muitas campas. Acolá repousa um homem poderoso, coberto de mármore. A marcha fúnebre retumba sobre ele. Bandeiras são baixadas sobre a campa. Vejo campas de pessoas muito amadas. Flores, regadas com lágrimas, afagadas de beijos, repousam levemente nos verdes relvados. Vejo campas esquecidas, campas presunçosas, lugares de repouso que mentem e outros que não dizem nada. Mas nunca antes vi um valete vestido de xadrez branco e preto, e um Jocker, com um guizo no gorro, a serem oferecidos ao habitante de uma campa para o seu prazer.
“Foi Johan Fredrik quem ganhou”, diz o coronel com orgulho. “Bem sabia! Eu ensinei-lhe o jogo. Pois, agora estamos todos mortos, nós três, e só ele está vivo.”
Recolhe as cartas, levanta-se e volta com os outros para Ekeby.
Suponho que o morto deve ter sabido, e sentido, que nem ele nem a sua campa estavam esquecidos por todos. Os corações indisciplinados prestam homenagem estranha àqueles que amam, mas os que estão fora do muro, aqueles cujos restos mortais não podem repousar em terra santa, bem que podem ficar felizes porque nem todos os rejeitam.
Amigos, quando morrer repousarei, com certeza, no centro do cemitério, no jazigo dos meus antepassados. É verdade que não tirei o sustento à minha família, nem atentei contra a minha própria vida, mas também é certo que não mereci, nem ganhei, nem conquistei um tal amor. E, também, estou segura, ninguém fará tanto por mim como os cavalheiros fizeram por este criminoso. Com certeza ninguém chegará, ao pôr do Sol, quando o território dos mortos fica solitário e triste, para colocar cartas garridas entre os meus esqueléticos dedos.
Também não virão, o que mais apreciaria, já que as cartas exercem pouca atracção sobre mim, com violino e arco até à minha campa, para que a minha alma, que divaga à volta dos restos mortais, possa flutuar na corrente dos tons, como um cisne em ondas cintilantes.”
*SELMA LAGERLÖF, In A Saga de Gösta Berling, Cavalo de Ferro Editores, Lisboa, 2007
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
"A mulher e seu passado"*
"Ela conta a história de uma freira que a atormentava no internato, em seu tempo de menina; de um homem que a fez viver longamente entre o desespero e o tédio, a revolta e a humilhação. E fica meio magoada porque a tudo eu sorrio, porque eu não pareço participar do sentimento com que ela fala contra essa gente que passou. Afinal ela também sorri: “Você é meu amigo ou amigo da onça?”
Sou seu amigo. Mas rico ri à toa, e eu me sinto vertiginosamente rico porque essas histórias, alegres ou tristes, ela me conta de mãos dadas, junto de mim. Digo-lhe isso; mas não confesso que aprovo e abençôo todas as coisas e pessoas que povoaram seu passado, e tenho vontade de dizer:
“Benditos teu pai e tua mãe; benditos os que te amaram e os que te maltrataram; bendito o artista que te adorou e te possuiu, e o pintor que te pintou nua, e o bêbedo de rua que te assustou, e o mendigo que te disse uma palavra obscena; bendita a amiga que te salvou e bendita a amiga que te traiu; e o amigo de teu pai que te fitava com concupiscência quando ainda eras menina; e a corrente do mar que te ia arrastando; e o cão que uivava a noite inteira e não te deixou dormir; e o pássaro que amanheceu cantando em tua janela; e a insensata atriz inglesa que de repente te beijou na boca; e o desconhecido que passou em um trem e te acenou adeus; e teu medo e teu remorso a primeira vez que traíste alguém; e a volúpia com que o fizeste; e a firme determinação, e o cinismo tranqüilo, e o tédio; e a mulher anônima que te vociferou insultos pelo telefone; e a conquista de ti por ti mesma; e os intrigantes do bairro que tentaram te envolver em suas teias escuras; e a porta que se abriu de repente sobre o mar; e a velhinha de preto que ao te ver passar disse: “moça linda...”; bendita a chuva que tombou de súbito em teu caminho, e bendito o raio que fez saltar teu cavalo, e o mormaço que te fez inquieta e aborrecida, e a lua que te surpreendeu nos braços de um homem escuro entre as grandes árvores azuis. Bendito seja todo o teu passado, porque ele te fez como tu és e te trouxe até mim. Bendita sejas tu.”
*Rubem Brada, In 200 Crônicas Escolhidas, Record, Rio de Janeiro, 1978
Assinar:
Postagens (Atom)