[...continuação]
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JUNG, C.G, In A natureza da psique, Ed. Vozes, Petrópolis, 2011
"Sei que muitas pessoas têm dificuldades com a palavra
“psicológico”. Para tranqüilizar esses críticos, eu gostaria, portanto, de
acrescentar que ninguém sabe o que é a “psique”, como ninguém sabe até onde a
natureza da psique se estende. Uma verdade psicológica é, portanto, uma coisa
tão boa e respeitável quanto uma verdade física que se limita à matéria, como
aquela à psique. O “consensus gentium” que se expressa nas religiões está em
consonância com a minha fórmula paradoxal acima referida. Por isto parece-me
que considerar a morte como a realização plena do sentido da vida e sua
verdadeira meta, em vez de uma mera cessão sem sentido, corresponde melhor à
psique coletiva da humanidade. Quem professa uma opinião racionalista a este
respeito, isolou-se psicologicamente e está em oposição com sua própria
natureza humana básica.
Esta última frase contém uma verdade fundamental a respeito
de todas as neuroses, pois as perturbações nervosas consistem primariamente em
uma alienação dos instintos, em uma separação da consciência em relação a
certos fatos fundamentais da psique; por isto as opiniões racionalistas se
aproximam inesperadamente dos sintomas neuróticos.. Como estes, elas consistem
em um pensamento dissimulado que
ocupa olugar do pensamento psicologicamente correto. Este último mantém sempre
sua vinculação com o coração[U1]
, com as profundezas da alma, com a raiz-mestra do nosso ser, porque –
Iluminismo ou não iluminismo, consciência ou não consciência – a natureza nos
prepara para a morte.. Se pudéssemos observar diretamente e registrar os
pensamentos de um jovem, caso ele tivesse tempo e vagar para sonhar em pleno
dia, descobriríamos , ao lado de imagens da memória, fantasias que se ocupam
sobretudo com o futuro. Realmente, a maioria das fantasias é constituída de
antecipações. Em geral as fantasias são atos preparatórios ou mesmo exercícios
psíquicos para lidar com certas realidades futuras. Se pudéssemos fazer a mesma
experiência com uma pessoa que envelhece – naturalmente sem o seu conhecimento
encontraríamos um número maior de imagens da memório do que no jovem, por causa
da tendência do idoso de olhar para trás; mas, em compensação, mas em
compensação, encontraríamos também um número espantosamente grande de
antecipações do futuro, inclusive da morte. Com o andar dos anos, acumulam-se
assustadoramente os pensamentos sobre a morte. O homem que envelhece – quer
queira quer não – prepara-se para a morte. Por isto eu penso que a própria
natureza se prepara para o fim. Objetivamente, é indiferente saber o que a
consciência individual pensa a respeito disto. Subjetivamente, porém, há uma
imensa diferença quanto a saber se a consciência acompanha passo a passo a
psique ou se ela se apega a opiniões que o coração desconhece. De fato, é tão
neurótico não se orientar, na velhice, para a morte como um fim, quanto
reprimir, na juventude, fantasias que se ocupam com o futuro.
Na minha experiência bastante longa fiz uma série de
observações com pessoas cuja capacidade psíquica inconsciente eu pude seguir
até imediatamente antes da morte. Geralmente a aproximação do fim era
indicada através daqueles símbolos que,
na vida normal, denotavam mudanças no estado psicológico – símbolos de
renascimento, tais como mudanças de localidade, viagens e semelhantes. Muitas
vezes pude acompanhar até acima de um ano antes os indícios de aproximação da
morte, inclusive naqueles casos em que a situação externa não permitia tais
pensamentos. O processo tanatológico começara, portanto, muito antes da morte
real. Aliás, observa-se isto, frequentemente, também na mudança peculiar de
caráter que precede de muito a morte. Globalmente falando, eu me espantava de
ver o pouco caso que a psique inconsciente fazia da morte. Pareceria que a
morte era uma coisa relativamente sem importância, ou talvez nossa psique não
se preocupasse com o que eventualmente
acontecia ao indivíduo. Por isto parece que o inconsciente se interessa
tanto mais por saber como se morre,
ou seja, se a atitude da consciência está em conformidade ou não com o processo
de morrer. Assim, uma vez tive de tratar uma mulher de 62 anos, ainda vigorosa,
e [sofridamente[U2] ]
inteligente. Não era, por tanto, por falta de dotes que ela se mostrava incapaz
de compreender os próprios sonhos. Infelizmente era por demais evidente que ela
não queria entende-los. Seus sonhos eram muito claros, mas também
desagradáveis. Ela metera na própria cabeça que era uma mãe perfeita para os
filhos, mas os filhos não partilhavam desta opinião, e os seus próprios sonhos
revelavam uma convicção bastante contrária. Fui obrigado a interromper o
tratamento, depois de algumas semanas de esforços infrutíferos, por ter sido
convocado para o serviço militar (era durante a guerra). Entrementes a paciente
foi acometida de um mal incurável, que, depois de alguns meses, levou-a a um
estado agônico o qual, a cada momento, podia significar o fim. Na maior parte do tempo ela se achava
mergulhada numa espécie de delírio ou sonambulismo, e nesta curiosa situação
mental ela espontaneamente retomou o trabalho de análise antes interrompido.
Voltou a falar de seus sonhos e confessava a si própria tudo o que havia negado
antes com toda a obstinação possível, e mais uma porção de outras coisas. O
trabalho de autoanálise se prolongava por várias horas ao dia, durante semanas.
No final deste período, ela havia se acalmado, como uma paciente num tratamento
normal, e então morreu.
Desta e de numerosas outras experiências do mesmo
gênero devo concluir que nossa alma não é indiferente, pelo menos, ao morrer do
indivíduo. A tendência compulsiva que os moribundos frequentemente revelam de
querer corrigir ainda tudo o que é errado deve apontar na mesma direção."*[continua...]
JUNG, C.G, In A natureza da psique, Ed. Vozes, Petrópolis, 2011