segunda-feira, 30 de abril de 2012

"A alma e a morte" 4

[...continuação]
"Sei que muitas pessoas têm dificuldades com a palavra “psicológico”. Para tranqüilizar esses críticos, eu gostaria, portanto, de acrescentar que ninguém sabe o que é a “psique”, como ninguém sabe até onde a natureza da psique se estende. Uma verdade psicológica é, portanto, uma coisa tão boa e respeitável quanto uma verdade física que se limita à matéria, como aquela à psique. O “consensus gentium” que se expressa nas religiões está em consonância com a minha fórmula paradoxal acima referida. Por isto parece-me que considerar a morte como a realização plena do sentido da vida e sua verdadeira meta, em vez de uma mera cessão sem sentido, corresponde melhor à psique coletiva da humanidade. Quem professa uma opinião racionalista a este respeito, isolou-se psicologicamente e está em oposição com sua própria natureza humana básica.
Esta última frase contém uma verdade fundamental a respeito de todas as neuroses, pois as perturbações nervosas consistem primariamente em uma alienação dos instintos, em uma separação da consciência em relação a certos fatos fundamentais da psique; por isto as opiniões racionalistas se aproximam inesperadamente dos sintomas neuróticos.. Como estes, elas consistem em um pensamento dissimulado que ocupa olugar do pensamento psicologicamente correto. Este último mantém sempre sua vinculação com o coração[U1]  , com as profundezas da alma, com a raiz-mestra do nosso ser, porque – Iluminismo ou não iluminismo, consciência ou não consciência – a natureza nos prepara para a morte.. Se pudéssemos observar diretamente e registrar os pensamentos de um jovem, caso ele tivesse tempo e vagar para sonhar em pleno dia, descobriríamos , ao lado de imagens da memória, fantasias que se ocupam sobretudo com o futuro. Realmente, a maioria das fantasias é constituída de antecipações. Em geral as fantasias são atos preparatórios ou mesmo exercícios psíquicos para lidar com certas realidades futuras. Se pudéssemos fazer a mesma experiência com uma pessoa que envelhece – naturalmente sem o seu conhecimento encontraríamos um número maior de imagens da memório do que no jovem, por causa da tendência do idoso de olhar para trás; mas, em compensação, mas em compensação, encontraríamos também um número espantosamente grande de antecipações do futuro, inclusive da morte. Com o andar dos anos, acumulam-se assustadoramente os pensamentos sobre a morte. O homem que envelhece – quer queira quer não – prepara-se para a morte. Por isto eu penso que a própria natureza se prepara para o fim. Objetivamente, é indiferente saber o que a consciência individual pensa a respeito disto. Subjetivamente, porém, há uma imensa diferença quanto a saber se a consciência acompanha passo a passo a psique ou se ela se apega a opiniões que o coração desconhece. De fato, é tão neurótico não se orientar, na velhice, para a morte como um fim, quanto reprimir, na juventude, fantasias que se ocupam com o futuro.
Na minha experiência bastante longa fiz uma série de observações com pessoas cuja capacidade psíquica inconsciente eu pude seguir até imediatamente antes da morte. Geralmente a aproximação do fim era indicada  através daqueles símbolos que, na vida normal, denotavam mudanças no estado psicológico – símbolos de renascimento, tais como mudanças de localidade, viagens e semelhantes. Muitas vezes pude acompanhar até acima de um ano antes os indícios de aproximação da morte, inclusive naqueles casos em que a situação externa não permitia tais pensamentos. O processo tanatológico começara, portanto, muito antes da morte real. Aliás, observa-se isto, frequentemente, também na mudança peculiar de caráter que precede de muito a morte. Globalmente falando, eu me espantava de ver o pouco caso que a psique inconsciente fazia da morte. Pareceria que a morte era uma coisa relativamente sem importância, ou talvez nossa psique não se preocupasse com o que eventualmente  acontecia ao indivíduo. Por isto parece que o inconsciente se interessa tanto mais por saber como se morre, ou seja, se a atitude da consciência está em conformidade ou não com o processo de morrer. Assim, uma vez tive de tratar uma mulher de 62 anos, ainda vigorosa, e [sofridamente[U2] ] inteligente. Não era, por tanto, por falta de dotes que ela se mostrava incapaz de compreender os próprios sonhos. Infelizmente era por demais evidente que ela não queria entende-los. Seus sonhos eram muito claros, mas também desagradáveis. Ela metera na própria cabeça que era uma mãe perfeita para os filhos, mas os filhos não partilhavam desta opinião, e os seus próprios sonhos revelavam uma convicção bastante contrária. Fui obrigado a interromper o tratamento, depois de algumas semanas de esforços infrutíferos, por ter sido convocado para o serviço militar (era durante a guerra). Entrementes a paciente foi acometida de um mal incurável, que, depois de alguns meses, levou-a a um estado agônico o qual, a cada momento, podia significar o fim.  Na maior parte do tempo ela se achava mergulhada numa espécie de delírio ou sonambulismo, e nesta curiosa situação mental ela espontaneamente retomou o trabalho de análise antes interrompido. Voltou a falar de seus sonhos e confessava a si própria tudo o que havia negado antes com toda a obstinação possível, e mais uma porção de outras coisas. O trabalho de autoanálise se prolongava por várias horas ao dia, durante semanas. No final deste período, ela havia se acalmado, como uma paciente num tratamento normal, e então morreu.
Desta e de numerosas outras experiências do mesmo gênero devo concluir que nossa alma não é indiferente, pelo menos, ao morrer do indivíduo. A tendência compulsiva que os moribundos frequentemente revelam de querer corrigir ainda tudo o que é errado deve apontar na mesma direção."*
[continua...]


JUNG, C.G, In A natureza da psique, Ed. Vozes, Petrópolis, 2011


 [U1]De novo esta esquisitice

 [U2]No texto está  “sofrivelmente”, mas acho que isto foi uma cochilada do tradutor, pois, em português, “sofrivelmente inteligente”, quer dizer muito pouco inteligente, o que evidentemente não faria sentido aqui.

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