[continuação]
“Nossa longevidade comprovada pelas estatísticas atuais é um
produto da civilização. Entre os primitivos só excepcionalmente se chega a uma
idade avançada. Assim, quando visitei as tribos primitivas da África Oriental,
vi pouquíssimos homens de cabelos brancos que poderiam ter estimativamente mais
de sessenta anos. Mas eram realmente velhos e parecia que tinham sido sempre
velhos, tão plenamente se haviam identificado com sua idade avançada. Eram
exatamente o que eram sob todos os aspectos, ao passo que nós somos sempre mais
ou menos aquilo que realmente somos. É como se nossa consciência tivesse
deslizado um pouco de suas bases naturais e não soubesse mais como se orientar
pelo tempo natural. Dir-se-ia que sofremos de uma “hybris” da consciência que
nos induz a acreditar que o tempo de nossa vida é mera ilusão que pode ser
alterada a nosso bel- prazer. (Pergunta-se de onde a consciência tira a sua
capacidade de ser tão contrária à natureza e o que pode significar tal
arbitrariedade.)
Da mesma forma que a trajetória de um projétil termina
quando ele atinge o alvo, assim também a vida termina na morte, que é,
portanto, o alvo para o qual tende a vida inteira. Mesmo sua ascensão e seu
zênite são apenas etapas e meios através dos quais se alcança o alvo que é a
morte. Esta fórmula paradoxal nada mais é do que a conclusão lógica do fato de
que nossa vida é teleológica e determinada por um objetivo. Não acredito que eu
seja culpado de estar brincando aqui com silogismos. Se atribuímos uma
finalidade e um sentido à ascensão da vida, por que não atribuímos também ao
seu declínio? Se o nascimento do homem é prenhe de significação, por que é que
a sua morte também não o é? O jovem é preparado durante vinte anos ou mais para
a plena expansão de sua existência individual. Por que não deve ser preparado
também, durante vinte anos ou mais, para o seu fim? Por certo, com o zênite a
pessoa alcança obviamente este fim, é este fim e o possui. O que se alcança com
a morte?
No momento em que talvez se poderia esperar, eu não gostaria
de tirar uma fé subitamente do meu bolso e convidar meus leitores a fazer
justamente aquilo que ninguém pode fazer, isto é, a acreditar em alguma coisa. Devo confessar
que eu também jamais poderia fazê-lo. Por isto certamente eu não afirmarei
agora que é preciso crer que a morte é um segundo nascimento que nos leva a uma
sobrevida no além. Mas posso pelo menos mencionar que o “consensus gentium”
(consenso universal) tem concepções claras sobre a morte, que se acham
expressas de maneira inequívoca nas grandes religiões do mundo. Pode-se mesmo
afirmar que a maioria destas religiões é um complicado sistema de preparações
para a morte, de tal modo que a vida, de acordo com a minha fórmula paradoxal
acima expressa, realmente nada mais é do que uma preparação para o fim
derradeiro que é a morte. Para as duas maiores religiões vivas: o cristianismo
e o budismo, o significado da existência se consuma com o seu término.
Desde a época do Iluminismo desenvolveu-se uma opinião a
respeito da religião, que, embora seja uma concepção errada, tipicamente
racionalista, merece ser mencionada por causa de sua grande difusão. De acordo
com este ponto de vista, todas as religiões constituem uma espécie de sistemas
filosóficos, forjados pela cabeça dos homens. Um dia alguém inventou um Deus e
outros dogmas e passou a zombar da humanidade com esta fantasia “própria para
satisfazer desejos”. Esta opinião é contraditada pelo fato psicológico de que a
cabeça é um órgão inteiramente inadequado quando se trata de conceber símbolos
religiosos. Estes não provêm da cabeça, mas de algum outro lugar, talvez do coração[U1] ;
certamente, de alguma camada profunda da psique, popuco semelhante à
consciência, que é sempre uma camada superficial.. É por isto que os símbolos
religiosos têm um pronunciado “caráter de revelação” e, em geral, são produtos
espontâneos da atividade inconsciente da psique. São tudo, menos coisa
imaginada. Pelo contrário, eles se desenvolveram progressivamente, à semelhança
de plantas, como revelações naturais da psique humana, no decurso dos séculos.
Ainda hoje podemos observar em certos indivíduos o aparecimento espontâneo de
autênticos e genuínos símbolos religiosos que brotam do inconsciente quais flores de espécie estranha, enquanto a
consciência se mantém perplexa de lado, sem saber realmente o que fazer com
semelhantes criações. Não é muito difícil constatar que esses símbolos
individuais provêm, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, do mesmo
“espírito” (ou que outro nome tenha) que as grandes religiões da humanidade. Em
qualquer caso, a experiência nos mostra que as religiões não são elaborações
conscientes, mas provêm da vida natural da psique inconsciente, dando-lhe
adequada expressão. Isto explica a sua disseminação universal e sua imensa
influência sobre a humanidade através da história. Esta influência seria
incompreensível se os símbolos religiosos não fossem ao menos verdades
psicológicas naturais.”*
[continua...]
*JUNG, C.G., In A natureza da psique, Ed. Vozes, Petrópolis,
2011.
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