sábado, 21 de abril de 2012

Esta me lavou a alma


"O mérito de um texto bem escrito é, sobretudo, ético: liberta o leitor. Ao contrário do que estabelece certo senso comum pretensamente científico, à complexidade conceitual de um texto não precisa, nem deve, corresponder a obscuridade da escrita. Que o digam os leitores de Montaigne, grande filósofo de “fácil” leitura, cujas amplitude e profundidade de pensamento não ficam nada a dever a seus contemporâneos. Ao contrário, com freqüência Montaigne os ultrapassa.
A obscuridade de um texto revela dois problemas que em geral andam juntos: a falta de clareza do pensamento e a vontade de impressionar e (ou) de intimidar o leitor. No segundo caso, reconhecemos o artifício empregado por quem deseja dominar um campo de pensamento através da supercodificação dos conceitos, dos mais simples aos mais intrincados, de modo a criar uma língua somente para iniciados – reles estratégia de mercado utilizada para assegurar o poder dos mestres e das corporações de ensino.
A escola lacaniana, à qual me filio com esforço, sofre desse mal crônico: a dificuldade dos textos, estabelecida por seu criador e perseguida por seus discípulos como se fosse um valor intelectual, promove uma permanente disputa em torno da imprecisão e da flutuação dos conceitos. Isso ocorreu, em parte, pela dificuldade da transposição textual da fluência de Lacan nos Seminários; em parte, porque, nos “Escritos” Lacan revela que a transmissão escrita não era seu forte.”*

*Maria Rita Kehl, na apresentação de FREUD, S. , Luto e Melancolia,  Cosac Naify, São Paulo, 2011.


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