sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Rute

Imagem de Adi Nes

[...] Elimelec, marido de Noemi, morreu; e ela ficou com os filhos, os quais casaram com mulheres moabitas, das quais uma se chamava Orfa, e a outra Rute. Viveram lá dez anos. Morreram ambos, a saber, Maalon e Quelion; e a mulher ficou privada dos dois filhos e do marido.
[...] Saiu pois do lugar da sua peregrinação com as suas duas noras. Indo já no caminho de volta para a terra de Judá, disse para elas: Ide para a casa de vossa mãe, o Senhor use convosco de misericórdia, como vós usastes com os que morreram e comigo. Ele vos vos faça encontrar paz nas casas dos maridos, com que tiverdes a sorte de casar. E beijou-as. E elas em alta voz começaram a chorar e a dizer: Nós iremos contigo para o teu povo. Ela respondeu-lhes: Voltai, minhas filhas, e ide-vos, porque já estou acabada pela velhice, e incapaz de vínculo conjugal. Ainda que eu pudesse conceber esta mesma noite e dar à luz filhos, e se vós quisésseis esperar até que crescessem e chegassem aos anos da puberdade, vos faríeis velhas antes de casardes. Não (continueis), minhas filhas,vos peço, porque a vossa angústia custa-me muito, e a mão do Senhor está levantada contra mim. Elas, levantando a voz, começaram de novo a chorar. Orfa beijou sua sogra e foi-se. Rute porém ficou com sua sogra.
Noemi disse-lhe: Eis que a tua cunhada voltou para o seu povo e para os seus deuses; vai com ela. Rute respondeu: Não insistas comigo para que te deixe e me vá, porque para onde tu fores, irei também eu, e onde quer que morares, morarei eu também. O teu povo será o meu povo e o teu Deus o meu Deus. Na terra que te receber, quando morreres, nessa morrerei eu também e aí terei o meu sepulcro. O Senhor me faça e me acrescente aquilo, se outra coisa que não for a morte me separar de ti.

RUTE, Bíblia Sagrada, Ed. Paulinas, São Paulo, 1982

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

sobre irmãos

"[...] Octave havia começado justamente por se sentir o protetor do menino que não se chamava ainda Rémo. Quando convidou o jovem Fernand a fazer em sua companhia a primeira viagem, perguntando-lhe onde desejaria ir, o menino respondeu: "Muito longe!". Daquela vez, ele o levou a Hanover. Mas, em todos os domínios, Rémo foi muito longe, e mais longe do que seu irmão mais velho. Antes mesmo de seus estágios em Weimar e em Iena, o estudante transformado em seu anjo da guarda, colocando de lado o próprio trabalho na universidade de Bruxelas, passou longas semanas a revisar o manuscrito do primeiro esforço literário de Octave, obrigando-o a reduzir pela metade as quinhentas páginas nas quais se sentia perdido há anos. Foi forçado a faltar aos seus próprios exames. Esse rapaz de dezessete anos, por uma preocupação de imparcialidade rara em qualquer idade, nada fizera para atenuar a maneira pessoal de externar as ideias que deplorava no irmão.[...] Depois da morte de Rémo , Octave se lembrará de que o jovem, quando eles passeavam juntos por uma vereda escarpada ou à beira de um rio, tomava sempre o lado do vazio, temendo uma distração ou uma vertigem do companheiro. Anotou um sonho, muitas vezes repetido, no qual, exposto a um perigo mortal, era salvo por seu jovem irmão. "Mas está morto!", exclamava admirado. - "Não me fales de mim", respondia caracteristicamente Rémo. "Eu não sei"."*

* Marguerite Yourcenar, "in" Recordações de Família.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

carta perdida

Álvares, meu amigo,

            em frente à casa de meus pais construiu-se há pouco tempo um prédio de escritórios.  Estive numa dessas salas noutro dia, e, à janela do quarto andar, olhei de um ângulo novo o sobrado em que nasci e me criei. Surpreendeu-me a visão do telhado, que nunca antes tinha visto inteiro, escondido que fica por uma platibanda, se o olhamos  de baixo. É um belo telhado, caprichoso e caprichado como são em geral os telhados antigos, mas ainda que fosse banal e feio teria me proporcionado a mesma sensação: é como se pelo fato de eu nunca tê-lo visto, de nunca tê-lo contaminado com o meu olhar - o olhar que vai se modificando com a gente aprender a amar e desamar, sofrer e afligir, afundar e emergir - como se por isso uma parte de mim, original e fresca, tivesse se preservado ali, naquele lugar esquecido como um fundo de armário, que entretanto assistiu a todas as ao transformações da minha vida até os primeiros anos da juventude.
            Conto esse episódio para dizer que sua carta proporcionou-me sensação idêntica, com um ingrediente novo: descobrir-me preservada num lugar improvável e principalmente estranho é descobrir-me existindo fora de mim, não somente numa pasta vermelha no fundo de um arquivo, mas no fundo de outra pessoa. Pois se é verdade que seu olhar tocou meu pudor em minha antiga nudez, é verdade também que minha palavra de então tocou em alguma parte de você que aspira a  reconhecer-se em outro e a revelar-se...
            Álvares, meu amigo, ”vamos aos fatos”:  quatorze anos é tempo suficiente para que uma vocação imperfeita, menos que isso, uma veleidade tão comum na adolescência, se apague em definitivo.  Não persisti nos versos, e, sossegue, não foi pelo “golpe de nem-sequer-menção-honrosa”, que aliás experimentei mais de uma vez; o que é, é, e não há golpe que possa interromper uma verdadeira carreira. O que se deu comigo é que passou o meu tempo de versos, ainda que não tenha passado o da poesia, esse atalho em minha vida  por onde chegam, entre outras coisas amáveis, notícias de ex-burocratas alucinados na madrugada. Perdoe-me, Álvares, a brincadeira: é que eu sou mesmo uma mulher, e você certamente concorda comigo que todo romântico se expõe um pouco à crueldade feminina. A crueldade feminina, acredite-me, é puro artifício de sobrevivência neste mundo dos homens.
            Creio que não tomarei nenhuma providência legal quanto ao seu deslize de quatorze anos atrás. Não haveria nisto, como você mesmo notou, nenhuma vantagem prática, e se o deslize não tivesse acontecido eu jamais teria recebido tão bela carta.

Outrossim, um abraço do seu/sua

        João Abóbora/Maria



P.S.: me conte, se quiser, o que faz agora você,  que abandonou a burocracia?

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

das coisas que reorganizam o mundo

Fazer um bolo com apenas os ingredientes mais básicos: bolo de festa de igreja, como diz minha sobrinha Nínive, ou bolo de farinha, como dizem meus filhos, que não têm a menor ideia do que seja uma festa de igreja.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

um "Monet" acabado


das alegrias maiores e mais simples

feijão com arroz e ovo frito;
pão italiano com azeite e manjericão, pela manhã;
pão italiano com queijo de cabra e café preto, forte e amargo, à noitinha;
pão qualquer com torresmo, no almoço;
pastel de palmito, de feira, fresquinho;
pastel caseiro de carne, amanhecido;
muita pimenta.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

a mais nova geração de sabiás

Várias gerações de sabiás já nasceram aqui, algumas vezes dentro do meu ateliê. Alguns casais de pais eram muito agressivos, outros tranquilos. Os pais destes últimos, com ninho numa viga do telhado da lavanderia, eram de trato bem amigável; não atacaram ninguém em nenhum momento. Os filhotes, agora taludos, ainda não arribaram. Talvez pelo jeito de caverna que minha casa tem, com muitas árvores à volta, frutinhas e minhocas no quintal, sentem-se aqui muito à vontade. À tardinha, quando em geral vou aguar um pouco a pitangueira pejada de rebentos ainda verdes, aparecem os três para tomar banho. Um deles, o mais gordinho, gosta, além da chuveirada, de chapinhar na poça que se forma no pé da arvorezinha.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

um presentão

Acabo ser agraciada com um dos pouquíssimos exemplares do livro de fotos de Washington César Takeuchi, autor do blog www.circulandoporcuritiba.blogspot.com. 

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

o bosque amarelo

acrílica sobre tela, 80x100

Mais uma encostada até eu me decidir como acabo.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

como reconhecer um bobo

Já falei aqui em postagem antiga (do caráter das mulheres) sobre como é fácil reconhecer as víboras: são as que fazem cara de meiga para a foto. Não sei se é possível tal analogia para o caráter masculino - talvez a analogia no reino animal para homem seja homem mesmo - mas também é possível inferir algo sobre um homem fotografando-o. Vamos lá:
1) para começo de conversa um homem interessante nunca se deixa fotografar com muita facilidade;
2) já o bobo adora aparecer na foto; na iminência da foto, faz cara de "profundidade", fixa o olhar num ponto ao longe, como a contemplar as esferas celestes, ou olha direto para a câmera, mas com olhar vazio, de quem não está ali, mas no interior de seu próprio cérebro;
3) o bobo bem acabado posta a foto na internet. 

sábado, 10 de maio de 2014

talvez um caminho

Acho que vou passar a me dedicar à aquarela. Mesmo com resultado bem sofrível, o prazer é imenso.

Aqui, a primeira foi feita a partir de foto de Washington C. Takeushi, a segunda de foto de não sei quem na web e a terceira de uma foto antiga em que aparecem meu tio Baltazar e sua netinha Vera, na serraria da Saudade.

domingo, 6 de abril de 2014

o coronel assassino

Há muito tempo, tendo eu lido pela primeira vez São Bernardo, um amigo espantou-se quando  lhe falei que não me referia a Madalena ao dizer ter encontrado, entre todos os livros que já lera, o personagem com o qual mais me identificava. Alguns anos e um certo lustre depois, vim a aprender que esse bruto, proprietário de terras,  "coronel assassino", não é figura com que alguém normal se identifique. Pois hoje em dia, ou porque eu não seja mesmo propriamente normal, ou por tê-lo conhecido ainda em tempos de minha inocência intelectual, Paulo Honório continua sendo para mim a criatura mais comovente de toda a ficção que conheço.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

5 poemas de Alcides Villaça

"Cruzamento

A moça muito antiga,
a prematura morta,
é uma criança inquieta
que ninguém sabe ninar.
Menor a cada dia,
a cada hora mais menina,
a morta muito antiga
toma a pista contrária
e vem ao nosso encontro.
Quando passar por nós
sequer terá nascido.
Será um capricho nosso,
imagem que desenhamos,
saudade de viver.


Dobradura

Pareceu-me cicatriz do teu rosto
a marca no papel fotográfico.
Pareceu-me especial efeito
a luz (tão viva) dos velhos olhos teus.
Pareceu-me, enfim, amarga essa foto, 
como boneca dormindo de mentira
qual menina morta de verdade.

Assim as fotos, espelhos de alma própria:
parece que são tudo o que olham
e se enganam nas verdades, e acertam nas mentiras
- porque refletem nos desejos outra luz,
e em outras luzes o mesmo desejo.
Também ocorre que nada mais reflitam
quando se guardam num cristal fechados
nas pálpebras do tempo


Viagem

imagine
se sobre a casca do ovo pequenino
tombasse uma gota de limão corrosivo
e mal nascido quanto mal desperto
o filhotinho tivesse que voar
contra cortantes facas amarelas

como haveria ele de entender
a beleza sem parar das feridas?
teria tempo para sentir
a falta das penas sonhadas?
saberia como cantar
o brilho de cada susto de morrer?

(Não sei te explicar
essa luz que fia e desconcerta
meus melhores dias)


Eurídice

Eurídice caminha pelo palco descalça mais que nua:
os pés que a levam leve sabem todo o alvor.
Desliza como dança, e deita os olhos no caminho.
Cobre de frescor o arrepio dos regatos.
Eurídice, para além de todo inferno e céu
Atira Orfeu para os bichos da floresta,
Como a onça, como o tigre, como eu.


Dádiva

As maldades mais fundas do meu poço emergem
                                                       [só para mim
Imediatamente viram flores. Ofereço o buquê
                                                        [a amigos
que o tomam no colo e reconhecem pétala a pétala 
a graça de tantas corolas. E dizem: que bonito!
Mas logo baixamos o olhar, como quem do chão
                                                                   [ouve
o ruído das águas turvas, inquietando-se."


VILLAÇA, Alcides. ONDAS CURTAS, Cosac Naify, São Paulo, 2014.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

domingo, 12 de janeiro de 2014

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

o padre e o caipira


Esta dupla proseando eu adquiri de um escultor chamado Humberto de Oliveira, em Santo Antônio do Pinhal. Fiquei bastante impressionada com a expressão de suas figuras, sempre muito peculiares e diferentes umas das outras. Nestas daqui, ele imprimiu no  barro do padre uma certa soberba maliciosa e no barro do caipira uma funda e generosa sabedoria.
Humberto de Oliveira tem ateliê também em Taubaté.