Tal "colisão de palavras" não é de minha autoria. Está num conto magnífico de Selma Lagerlöf (que adiante vai transcrito), escritora sueca que conheci há pouco tempo e de quem não se acha nada no Brasil, a não ser em sebos.
"O ninho das alvéloas
Hatto, o eremita, orava a Deus no deserto. Era dia de tempestade: a barba comprida e os cabelos desgrenhados esvoaçavam-lhe em trono do rosto como tufos de grama no cimo de uma velha ruína. Porém Hatto não fazia um movimento para afastar os cabelos dos olhos nem prender a barba à cinta, pois tinha os braços erguidos para o céu. Desde o amanhecer mantinha levantados os braços nodosos e peludos, tão incansavelmente como uma árvore estende os seus ramos; e contava permanecer assim até o cair da tarde.
Era um homem que aprendera a conhecer a maldade dos homens. Ele mesmo perseguira e atormentara, mas os tormentos e as perseguições que sofrera excediam o limite que seu coração podia suportar. Por isso, retirara-se para a vasta charneca; cavara nas areias da ribanceira uma espécie de caverna, e lá se tornara um santo, cujas preces subiam ao trono de Deus.
Hatto, o eremita, rezava, diante da sua caverna, a grande prece da sua vida. Rogava a Deus que fizesse raiar o dia do Juízo Final sobre esta Terra maldita. Invocava os anjos, cujas trombetas ressoantes anunciarão o fim deste reino de pecado. Invocava as ondas de sangue que afogarão as iniqüidades do mundo. Invocava a peste que encherá os cemitérios.
À volta dele estendia-se a charneca, deserta e nua. E o furacão silvava como prodigiosa ameaça sobre a terra pelada. No entanto, um pouco mais acima crescia um salgueiro de tronco enfezado e curto que formava na extremidade um grosso nó de onde rebentavam molhos de ramos tenros. Pelo outono, os habitantes da planície o despojavam de sua fresca ramagem. Pela primavera, a árvore brotava novos e flexíveis rebentos que, nos dias de vento forte, se agitavam como os cabelos e a barba de Hatto, o eremita.
O casal de alvéloas que ali costumava fazer o seu ninho queria, naquele dia precisamente, começar a construí-lo. Mas entre os galhos que os fustigavam não acharam nenhuma segurança. Chegavam com folhas secas de caniço, fibras de raízes e junco do verão anterior, e várias vezes tiveram de voltar sem nada conseguir. Foi quando avistaram o velho Hatto, que rogava a Deus que a tempestade aumentasse e varresse tanto os ninhos dos pequeninos pássaros como os das águias.
Certo, as pessoas de hoje dificilmente imaginam quanto pode ser nodoso, musgoso e negro, e como se assemelhava pouco a um homem, um velho eremita daquele tempo. A pele distendida na fronte e nas faces dava-lhe o aspecto de uma caveira, onde, no fundo das órbitas, apenas dois pequenos clarões eram resquícios de vida. Os músculos ressequidos tiravam-lhe aos membros qualquer sombra de redondeza; e os braços não passavam de longos ossos recobertos de uma crosta de carne rude e rugosa. Vestia uma velha batina preta, muito justa. Estava tostado pelo sol e enegrecido de lama. Claros, nele, somente os cabelos e a barba. Dera-lhes o sol e a chuva os mesmos tons verdes e cinzentos que ao reverso das folhas do salgueiro.
Os pássaros que procuravam lugar para seus ninhos tomaram Hatto, o eremita, por um salgueiro, tão velho quanto o outro, e que uma machadada detivera também no seu impulso para o céu. Voavam, iam-se embora, voltavam, bordejavam, giravam em torno de Hatto, tomavam pontos de referência. Calcularam a situação dele em relação às aves de rapina e às tempestades. Acharam-no pouco propício; mas a vizinhança do rio e dos caniços, seu depósito de provisões e sua oficina, decidiram-nos. Uma das alvéloas atirou-se feito uma flecha na mão erguida de Hatto e nela depositou sua fibra de raiz.
A tempestade soprava: a fibrazinha voou. Porém as alvéloas retornaram e tentaram inserir as fiadas do seu ninho entre os dedos calosos do velho ermitão. Súbito, um grosso e rude polegar calcou os pedacinhos de erva para os reter, e quatro dedos, dobrando-se por sobre aquela mão, formaram como que um tranqüilo nicho onde os pássaros poderiam construir. E Hatto continuava as suas preces: __ “Senhor, onde estão as tuas nuvens de fogo que destruíram Sodoma? Quando abrirás as cataratas celestes que levantaram a arca de Noé até o cimo do Arará?”
E no cérebro febril do solitário surgiram as visões do Juízo Final. Tremia o solo; o firmamento avermelhava-se. Mas, enquanto essas fúnebres visões lhe fascinavam a alma, seus olhos entraram a acompanhar o vôo das alvéloas, que reapareciam sem interrupção e, de cada vez, com um gritinho de contentamento, consolidavam o seu ninho com um novo pedaço de erva.
O velho não se mexia, pois, para obrigar o Senhor a escutar-lhe a prece, fizera o voto de orar imóvel do amanhecer ao pôr-do-sol. E, à medida que aumentava o cansaço, mais vivos se lhe tornavam os sonhos de visionário. Ouviu o estrondo das casas a desabar e das paredes a se desmoronarem. Passavam-lhe ante os olhos multidões aterradas e vociferantes, expulsas, acossadas pelos anjos da destruição, anjos de semblante terrivelmente belo, encouraçados de prata e de ouro, galopando em cavalos pretos, com látegos de relâmpagos.
Entretanto as alveloazinhas construíram sem tréguas. Na charneca, onde cresciam tufos mirrados, e perto do rio orlado de juncos e caniços, não faltavam materiais. Não gozaram sequer o repouso do meio-dia, e antes de baixar a noite já chegavam à cumeeira da sua construção. Antes, porém, que a noite baixasse, Hatto, cujos olhos as tinham seguido demoradamente, interessava-se pelo trabalho delas. Censurava-lhes a lentidão; indignava-se com as rajadas de vento que lhes retardavam a execução da tarefa, e decerto não suportaria que elas descansassem. E o Sol se pôs. E os pássaros volveram aos caniços do rio.
Ao despontar do dia, as alvéloas cuidaram, a princípio, que os acontecimentos da véspera não passavam de um suave sonho. Inutilmente se regulavam pelos seus pontos de referência, debalde voavam em todas as direções, subiam direito ao céu e sondavam com o olhar a imensidão da charneca: o ninho e a árvore tinham desaparecido. Pousaram sobre duas pedras que emergiam das águas e puseram-se a discutir o caso, agitando a cabecinha e meneando a longa cauda. Mas, ainda o Sol não se erguera meio palmo acima da outra margem, a sua árvore veio colocar-se no mesmo lugar da véspera. Era ela, sem dúvida, sempre tão nodosa e tão negra, e com o ninho delas sobre aquela espécie de ramo rude e truncado. E as alvéloas retomaram o seu trabalho, sem mais se deterem na consideração das maravilhas de que é tão rica a Natureza.
Hatto, o eremita, que expulsava da caverna as criancinhas, gritando-lhes que melhor seria não terem nascido, aquele Hatto cujo olho mau os pastores temiam, empenhava-se em não fazer nada que pudesse assustar ou molestar as alveloazinhas. Sabia que em relação às coisas que Deus permite na Natureza sucede o mesmo que com todas as sílabas dos Livros Sagrados: cada uma delas tem o seu sentido misterioso e místico. E descobrira o que significava aquele ninho começado entre os seus dedos. Era evidentemente a promessa de Deus de que, se ele permanecesse a orar, com os braços erguidos, até que os pássaros houvessem chocado os filhinhos, a sua prece seria escutada e o mundo destruído.
Nesse dia foi ele menos perseguido por visões lúgubres. Mal afastava os olhos do trabalho dos pássaros. Via o ninho concluir-se, os pequenos arquitetos experimentarem-no e, como reboco e pintura, colocarem-lhe na parte externa alguns liquens colhidos no verdadeiro salgueiro. Quando tiveram de mobiliá-lo e habitá-lo, procuraram as lanugens das plantas mais sedosas, e mamãe alvéloa foi a ponto de arrancar algumas das próprias penas para melhor estofar o interior da sua casa.
Os camponeses, que receavam o funesto poder das orações do eremita, tratavam de lhe aplacar a cólera levando-lhe pão e leite. Encontraram-no de pé, com as mão erguidas e o ninho na mão. - “Vejam - diziam eles - como aquele santo homem gosta dos passarinhos!” E não mais o temeram, chegaram-lhe à boca a vasilha de leite e puseram-lhe entre os lábios pedaços de pão. Depois de haver comido e bebido, Hatto repeliu os homens com palavras ásperas; porém às maldições do eremita eles só responderam com bons sorrisos.
Já desde muito o seu corpo era o escravo da sua vontade. A poder de açoites e jejuns, genuflexões de um dia inteiro e insônias de uma semana a fio, havia-o reduzido à obediência. Seus músculos de ferro mantiveram-lhe rígidos os braços dias e dias; e, quando a alvéloa, chocando seus ovos, não mais deixou o ninho, nem o cair da noite o fez voltar à sua caverna para deitar-se: dormiu sentado, com os braços estendidos para o céu. Mais de um cenobita no deserto fizera coisas ainda mais duras!
Habituara-se àqueles dois olhinhos irrequietos que o fitavam da entrada do ninho. Protegia-os contra a chuva e o granizo.
Ora, um belo dia a alvéloa se levantou e saltitou sobre a frágil fortaleza, logo seguida pelo macho, que tremia de contente. Ambos estudavam providências e mostravam-se alegres, embora o ninho estivesse cheio de um pipilar desesperado. Um instante depois, atiraram-se a uma desenfreada caça de moscas e mosquitos. E, à proporção que as moscas e mosquitos apanhados eram conduzidos ao ninho, os pipios aumentavam, a ponto de turbar as preces do piedoso eremita. Então, lento e lento, num esforço das articulações, que haviam quase desaprendido a faculdade de funcionar, os seus braços desceram; e os seus olhos de brasa mergulharam no ninho tumultuoso. Não, jamais vira ele nada tão lamentavelmente feio e miserável: corpinhos nus, sem olhos, sem asas, e seis grandes bicos escancarados. Singularmente impressionado, sentiu invadi-lo uma ternura pelos bichinhos. Daí por diante, quando suplicava a Deus que salvasse o mundo pela destruição, fazia tácita reserva para aqueles pequeninos seres indefesos. E, ao receber alimento das mãos dos camponeses, não mais lhes agradeceu desejando-lhes a morte. Alegrava-o que não o deixassem morrer de fome, porquanto sua vida era necessária à ninhada que lhe pipilava na mão.
Dentro em breve seis cabeças redondas se estenderam todo o dia às bordas do ninho. E cada vez com maior freqüência o braço do velho Hatto baixava até os olhos. Via as penas que furavam a pele vermelha, os olhos que se abriam, e a forma do corpo que principiava a se arredondar. E de seus lábios subia a prece, mais e mais hesitante. Deus lhe prometera - disso estava certo - que a destruição irromperia logo que as alveloazinhas soubessem voar. E agora ele quase buscava subterfúgios, pois lhe parecia impossível imolar aqueles pequeninos seres cujo nascimento ele ajudara. Até então, nunca tivera nada que dependesse dele; e o amor dos fracos e dos humildes, insinuando-se-lhe no coração, tornava-o incerto. Às vezes passava-lhe pela cabeça lançar ao rio a ninhada inteira. Que felicidade maior que a de morrer sem ter conhecido a dor e o pecado? Salvaria, assim, aquelas pobres criaturas das aves de rapina, da fome, do frio, das provações da vida. Estava a pensar nessas coisas, quando um gavião investiu sobre as alvéloas, e Hatto mal teve tempo de o agarrar com a mão esquerda e arremessa-lo para o lado do rio.
Chegou, por fim, o dia em que os pequeninos tiveram de ensaiar as asas. Dentro do ninho, uma das alvéloas diligenciava impeli-los até à entrada, enquanto a outra esvoaçava em derredor para lhes mostrar como era fácil, que lhes bastava tentar. Mas os bichinhos tinham medo e recusavam-se à experiência. Então os pais exibiam aos olhos dos filhos todos os recursos de sua arte. Giravam e voltavam num movimento repentino das asas, ou, como as cotovias, subiam direito ao céu e mantinham-se imóveis no ar, com as asas a tremer violentamente. Os pequeninos recalcitravam. E Hatto, o eremita, não resistiu ao desejo de intervir. Deu-lhes um leve piparote, e tudo se resolveu. Fora do ninho, açoitando o ar ao jeito dos morcegos, voam canhestramente, dão cambalhotas, caem, levantam-se, e valem-se dos primeiros conhecimentos para retornarem a casa o mas rápido possível. Os pais chegam orgulhosos e alegres, e o velho Hatto sorri da alegria deles: de alguma coisa valera a sua interferência!
Sorriu e perguntou a si mesmo, seriamente, se Deus não tinha outra saída senão violar a promessa feita... Quem sabe? Talvez Deus, o Pai, sustentasse a Terra em sua mão direita como um grande ninho de pássaros, e houvesse terminado afeiçoando-se àqueles que nela vivem. E, no momento de os aniquilar, talvez houvesse sentido por eles a mesma piedade que o solitário da charneca pelos passarinhos. Seguramente os pássaros valiam mais do que os homens. Porém Hatto compreendia, também, que Deus pudesse compadecer-se da espécie humana.
No dia seguinte o ninho estava deserto, e a amargura da solidão encheu-lhe a alma. Caiu-lhe o braço, lento lento, ao longo do corpo; parecia-lhe que toda a Natureza continha a respiração na expectativa das trombetas do Juízo Final. Nesse instante, porém, as alvéloas voltaram familiarmente a pousar-lhe na cabeça e nos ombros. E um clarão iluminou o conturbado cérebro do velho ermitão. Ele, que prometera permanecer imóvel, baixara o braço! Como é que não pensara nisso? Cada dia baixara o braço para olhar o ninho. E, de pé, enquanto os seis pequeninos adejavam e brincavam em torno dele, abanou a cabeça, dirigindo-se a um ser invisível:
- Estás desobrigado de cumprir a tua promessa. Estás desobrigado! Eu não mantive a minha palavra; tu não precisas de manter a tua!
E afigurou-se-lhe que as montanhas cessavam de tremer e que o rio se espraiava no seu leito sereno, com uma segurança imensa."
Selma Lagerlöf In “Mar de histórias: antologia do conto mundial, VI: caminhos cruzados/ [organizadores e tradutores] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. -4.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999