quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A fazenda africana




Karen Blixen (1885-1962), escritora dinamarquesa, manteve por uns quinze anos uma fazenda de café no Quênia, nas proximidades de Nairóbi. Vendida a fazenda por motivo de falência iminente, ela se retira para sempre da África, experiência bastante dolorosa que ela relata em seu livro autobiográfico "A Fazenda Africana". Hollywood adaptou livremente essa história para um filme, "Entre dois amores", que, visto depois de se conhecer a poderosa narrativa da escritora, parece bem chulé.
A propósito da natureza das relações de amizade entre mulheres, transcrevo abaixo uma página belíssima e imperdível desse romance, em que ela narra a visita de uma amiga, por ocasião de sua derrocada como fazendeira.


"Foi nessa época – embora antes de eu me desfazer dos cavalos – que Ingrid Lindstrom deixou sua fazenda para passar um tempo comigo. Este foi um grande gesto de amizade da parte dela, pois relutava ao máximo em se afastar da fazenda. [...] No fundo de seu coração, Ingrid entendia e percebia, com toda a intensidade, com algo da força dos próprios elementos, o que de fato significava para uma mulher fazendeira ter de desistir de sua terra e abandoná-la.
Enquanto Ingrid ficou ao meu lado, não falamos do passado nem do futuro, e tampouco mencionamos o nome de qualquer amigo ou conhecido. Em vez disso, concentramos nossos espíritos no desastre que se abatera sobre mim. Caminhamos juntas de um lado para o outro da fazenda, nomeando todas as coisas à medida que as víamos, uma após a outra, como se estivéssemos elaborando mentalmente um relatório da minha perda, ou como se Ingrid estivesse, em meu nome, reunindo material para um livro de reclamações a ser apresentado ao destino. Por sua própria experiência, Ingrid sabia muito bem que não existe nenhum livro como este, mas mesmo assim a ideia de algo parecido é inseparável de nossa existência como mulheres.
Fomos até a boma do gado, e ali sentamos na cerca, contando os bois à medida que passavam. Sem nada dizer, eu os apontava para Ingrid: “Esses bois”, e, igualmente muda, ela respondia: ”Sim, esses bois”, e os registrava em seu livro. Em seguida, seguimos para o estábulo, a fim de dar açúcar para os cavalos e, quando haviam terminado, eu esticava minhas mãos pegajosas e lambidas, e os apresentava a Ingrid e chorava: “Esses cavalos”. Ela suspirava longamente de volta: “Sim, esses cavalos”, e também os incluía no livro. Na horta à beira do rio, foi difícil para ela aceitar a ideia de que eu deixaria as plantas que trouxera da Europa, e retorcia as mãos sobre os canteiros de hortelã, sálvia e lavanda, e até mesmo voltou a falar delas mais tarde, como se estivesse elaborando algum plano que me permitisse levá-las comigo.
Passamos a tarde contemplando meu pequeno rebanho de vacas nativas que pastavam no gramado. Repassei suas idades, características e capacidade de produzir leite, enquanto Ingrid gemia e se lamentava, como se estivesse sofrendo em sua própria carne. Examinou cada um dos animais com toda a atenção, não por vislumbrar a perspectiva de ficar com eles, pois todas as minhas vacas já haviam sido prometidas para os criados, mas a fim de avaliar e pesar as minhas perdas. E se apegou sobretudo aos dóceis e cheirosos bezerros; ela própria, após muitas dificuldades, conseguira colocar algumas vacas com bezerros em sua fazenda e, sem qualquer motivo, contra sua própria vontade, lançou-me olhares profundos e furiosos que me culpavam por abandonar meus bezerros.
Creio que, ao lado de um amigo que tivesse sofrido uma grande perda, um homem que ficasse repetindo para si mesmo a frase “ainda bem que isso não aconteceu comigo” acabaria sentindo-se mal com isso e tentaria suprimir tal sentimento. Mas as coisas se passam de outro modo quando duas mulheres são amigas, e uma delas manifesta sua profunda simpatia pelo infortúnio da outra. É evidente que, também neste caso, a amiga mais afortunada ficará o tempo todo repetindo que “graças a Deus, isto não aconteceu comigo”. Tal ideia não provoca nenhum sentimento ruim entre as amigas, mas é algo que as aproxima e introduz na situação um elemento pessoal. Na minha opinião, os homens não são capazes de admitir, de maneira fácil ou harmoniosa, sua inveja ou seu triunfo uns sobre os outros. Mas é óbvio que a noiva triunfa sobre suas damas de honra, e que as visitantes invejam uma mulher que acabou de dar à luz – mas ninguém se sente mal por causa disso. Uma mulher que perdeu o filho pode muito bem mostrar as roupas deste a uma amiga, com plena consciência de que esta provavelmente está dizendo para si mesma “graças a Deus não foi comigo” – e para ambas aquilo seria natural e adequado. E foi bem isto que ocorreu entre mim e Ingrid. Enquanto percorríamos a fazenda, eu sabia que ela estava pensando em suas próprias terras, exultando com a própria sorte de ainda ser uma proprietária, e agarrando-se a isto com todas as suas forças – e isto não afetava em nada nossa amizade. A despeito de nossas gastas calças e blusas de brim, nós éramos na verdade uma dupla de mulheres míticas, envoltas respectivamente em panos brancos e negros, indissoluvelmente unidas como os gênios da vida dos fazendeiros na África."

Karen Blixen, In A fazenda africana, Ed. Cosac Naify, 2005, pg 414-417

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