quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Dioloro


Minha tia-avó Deocleciana foi menina há muito, muito tempo. Casou-se no tempo de casar e teve muitos filhos, como convinha em seu tempo. Viveu decerto algumas alegrias e uns tantos desgostos, como todo mundo; de umas e de outros eu nada sei, e nem ela, que já não se lembra.
Tudo cumprido, o que restou de minha tia é quase só o que posso ver: o corpo diminuído e trêmulo, um barco à deriva na sala antiga em que a visitamos, meus pais e eu, numa tarde qualquer.

-Mãe, veja só quem está aqui: Fulana e Sicrano, e a filha mais nova deles. Lembra, mãe, sua sobrinha, filha de sua irmã Waldemira.

Anos atrás minha tia talvez ficasse constrangida por não reconhecer quem deveria. Agora, nem isto. Tudo passou, nunca foi, ou foi em demasia. Pai, mãe, irmãos, irmãs, marido, filhos e filhas, netos, os vários tons de sépia que se perfilam na parede sépia, são todos estranhos, vozes que chegam sem voz, da outra margem.

- Não sei de Waldemira.

As velhas histórias da família, casos d’antanho, aquela vez no Bom-Jardim, as mesmas visitas repetidas vezes apresentadas (“quem é mesmo essa gente?”), tudo é novo, e em seguida é nada: dissolve-se na névoa do tempo excessivo, na alvura desta mesa em que vários tempos comungam e se esvaem.

- Come um bolinho, mãe, é daqueles que a senhora gosta.
- ...
- Pedacinho só, mãe, comeu quase nada hoje. Come, antes que Dioloro chegue.
- Dioloro vem?
- Vem, mãe, acho que vem.

Ninguém sabe. Ninguém viu. Dioloro é só nome de quem foi, abracadabra que se pronuncia para que ela se lave e coma um tantinho, fogo de artifício, chuva de estrelas ... Dioloro ... O que seriam estas cintilações na sala? Vagalumes nos olhos de minha tia? Ouso perguntar?

- Tia, me conte, quem é Dioloro, tia?

É outro tempo, e primavera. Deocleciana, menina, mãozinha apertada no peito, inclina-se para a menina que a visita muitos anos depois, e lhe concede a jóia mais rara, relíquia guardada em fenda de pedra:

- É meu amor, meu amor, meu amor...

aveloh

Um comentário:

  1. Amo essa história. É a segunda vez que a leio e para sempre me emocionarei.

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