sábado, 5 de fevereiro de 2011

"O Cemitério"*

[Imagem de "Markinho"]

"Era uma agradável tarde de Agosto, O Lago Löven parecia um espelho, as montanhas estavam como que envolvidas numa neblina de calor, e a frescura da noite estava a chegar.

Apareceu Beerencreutz, o coronel de bigode branco, baixo e forte como um urso, com o baralho de cartas no bolso de trás, dirigindo-se à margem do lago, onde tomou lugar num bote de fundo chato. Acompanhavam-no o major Anders Fuchs, o seu velho irmão de armas, e o pequeno Ruster, o flautista e tambor de regimento dos caçadores de Varmländ, que durante muitos anos o tinha acompanhado como amigo e criado.

Na outra margem do lago encontra-se o cemitério, o mal cuidado cemitério da freguesia de Svartsjö. Com poucas campas e cruzes de ferro que fazem ruído ao vento, está cheio de erva, como um campo nunca lavrado e coberto de junca e a erva crescia em variedade, a lembrar que nenhuma vida humana é totalmente igual à outra mas cada uma diferente como as folhas da erva. Aqui não há carreiros com areia nem árvores que oferecem sombra, além da grande tília na campa esquecida dum velho padre. O muro de pedra encerra, alto e carrancudo, o campo. O cemitério é pobre e desolador, feio como a cara dum avarento, murcho sob os lamentos das pessoas a quem ele roubou a felicidade. Mas mesmo assim os que lá repousam são felizes, porque foram enterrados em terra abençoada com hinos e orações. Acquilon, o jogador, que morreu no ano passado em Ekeby, teve de ser enterrado fora do muro. Esse homem, outrora tão orgulhoso e cavalheiresco; um valente guerreiro, destemido caçador e jogador sortudo, acabou por destruir a herança dos seus filhos, tudo o que tinha adquirido, tudo o que sua mulher tinha cuidado. Abandonara a mulher e os filhos para ir viver a vida de cavalheiro em Ekeby. Uma tarde, no Verão passado, jogou a quinta, que era o sustento da família. Em vez de pagar a sua dívida, pôs termo à sua própria vida com um tiro. E o corpo do suicida foi enterrado fora do muro com musgo do cemitério.

Desde a morte dele os cavalheiros eram só doze. Desde aquela morte, ninguém viera para tomar o lugar do décimo terceiro cavalheiro, a não ser o Diabo, que apareceu na Noite Santa, saindo do alto-forno.

Os cavalheiros acharam o seu destino mais amargo que o dos seus antecessores. Bem sabiam que um deles tinha de morrer todos os anos. E que mal tinha isso? Os cavalheiros não devem ser velhos. Quando os seus olhos cegos não mais conseguem distinguir as cartas de jogo nem as suas mãos trémulas levantar o copo, que interesse tem a vida e o que são eles para a vida? Mas repousar como um cão junto ao muro do cemitério, onde a terra que os cobre não pode repousar em paz, sendo pisada por carneiros que pastam, ou ferida por pás e arados, onde o caminhante passa sem abrandar o seu passo, e as crianças brincam sem moderar as gargalhadas – mas repousar, ali, onde o muro de pedras impede que se ouça a trombeta do anjo que acordará os mortos do Dia de Juízo Final! Não, esse não é um bom lugar para repousar. Oh, que bom seria poder repousar lá dentro!

Agora Beerencreutz atravessa o lago Löven no seu bote. Passa esta tarde pelo lago dos meus sonhos, à volta de cujas margens vi deuses passearem e vi meu castelo mágico surgir da profundidade. Ele passa pelas lagunas da ilha Lag, onde os abetos surgem direitinhos da água, crescendo em bancos de areia baixos e circulares, e onde as ruínas do castelo do pirata ainda se vêem no pico íngreme da ilha. Passa debaixo do parque de abetos no promontório de Borg, onde o velho pinheiro com raízes grossas ainda pende sobre o barranco, onde uma vez apanharam um enorme urso, e onde os velhos montes de pedra e túmulos demonstram a idade do lugar.

Contorna o promontório, sai do barco junto ao cemitério e passa por campos ceifados, que pertencem ao conde de Borg, até chegar à campa de Acquilon.

Uma vez lá chegado, abaixa-se e dá uma palmadinha na relva da mesma maneira que afagamos o cobertor que tapa um amigo doente. Em seguida, tira do bolso o baralho de Kille e senta-se junto à campa.

“Ele está muito só aqui, o nosso Johan Fredrik. Deve ter saudades de uma partida.”

“É uma vergonha que um homem como ele tenha de ficar cá fora”, diz o grande caçador de ursos Anders Fuchs, e senta-se ao seu lado.

Mas o pequeno Ruster, o flautista, fala de voz comovida, enquanto as lágrimas correm dos seus pequenos olhos injectados de sangue.

“A seguir ao senhor coronel, ele era o homem mais elegante que alguma vez conheci.”

Este três distintos homens estão, agora, sentados à volta da campa, e dão as cartas com seriedade e zelo.

Olhando para o mundo, vejo muitas campas. Acolá repousa um homem poderoso, coberto de mármore. A marcha fúnebre retumba sobre ele. Bandeiras são baixadas sobre a campa. Vejo campas de pessoas muito amadas. Flores, regadas com lágrimas, afagadas de beijos, repousam levemente nos verdes relvados. Vejo campas esquecidas, campas presunçosas, lugares de repouso que mentem e outros que não dizem nada. Mas nunca antes vi um valete vestido de xadrez branco e preto, e um Jocker, com um guizo no gorro, a serem oferecidos ao habitante de uma campa para o seu prazer.

“Foi Johan Fredrik quem ganhou”, diz o coronel com orgulho. “Bem sabia! Eu ensinei-lhe o jogo. Pois, agora estamos todos mortos, nós três, e só ele está vivo.”

Recolhe as cartas, levanta-se e volta com os outros para Ekeby.

Suponho que o morto deve ter sabido, e sentido, que nem ele nem a sua campa estavam esquecidos por todos. Os corações indisciplinados prestam homenagem estranha àqueles que amam, mas os que estão fora do muro, aqueles cujos restos mortais não podem repousar em terra santa, bem que podem ficar felizes porque nem todos os rejeitam.

Amigos, quando morrer repousarei, com certeza, no centro do cemitério, no jazigo dos meus antepassados. É verdade que não tirei o sustento à minha família, nem atentei contra a minha própria vida, mas também é certo que não mereci, nem ganhei, nem conquistei um tal amor. E, também, estou segura, ninguém fará tanto por mim como os cavalheiros fizeram por este criminoso. Com certeza ninguém chegará, ao pôr do Sol, quando o território dos mortos fica solitário e triste, para colocar cartas garridas entre os meus esqueléticos dedos.

Também não virão, o que mais apreciaria, já que as cartas exercem pouca atracção sobre mim, com violino e arco até à minha campa, para que a minha alma, que divaga à volta dos restos mortais, possa flutuar na corrente dos tons, como um cisne em ondas cintilantes.”

*SELMA LAGERLÖF, In A Saga de Gösta Berling, Cavalo de Ferro Editores, Lisboa, 2007

2 comentários:

  1. Nossa! Quem diria que num domingo de manhã eu iria ler algo tão bom como esse texto que você postou ontem. Obrigado! Tenha um lindo domingo!!

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  2. GOSTEI MUITO! VOU PROCURAR O LIVRO.BEIJO.

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