sábado, 26 de fevereiro de 2011

"Os Santos de Barro"*


Imagem de Nego Miranda

"A igreja de Svartsjö é branca por fora e por dentro, as paredes são brancas, o púlpito, as bancadas, o coro, os caixilhos das janelas e o frontal, tudo é branco. Na igreja de Svartsjö não há decorações, nem quadros, nem brasões. Dantes, não era assim. Dantes, o tecto estava cheio de pinturas, e havia nesta casa de Deus muitas obras garridas de pedra e barro.

Uma vez, há muito tempo, um pintor de Savartsjö estava a contemplar um céu de dia de Verão, observando a passagem das nuvens em direcção ao Sol. Tinha visto como as nuvens brancas e luminosas, que de manhã se encontravam no horizonte, vão crescendo. Tinha visto como as enormes massas se alargavam e se apressavam para subir com velocidade. Içavam velas como os barcos. Levantavam estandartes como soldados. Preparavam-se para invadir o céu inteiro. Estes monstros em crescimento fingiam ter uma forma inofensiva perante o Sol, o dono do espaço. Um leão voraz transformou-se numa dama empoada. Um gigante com braços asfixiantes tomou a posição de uma esfinge sonhadora. Algumas nuvens adornavam a sua nudez branca com mantas de bordas douradas. Outras punham maquilhagem vermelha nas faces de neve. Havia planícies. Havia florestas. As nuvens brancas tornaram-se donas do céu de Verão. Enchiam todo o firmamento. Chegaram até o Sol, tapando-o. “Oh, que bom seria”, pensou o dócil artista, “se as almas langorosas pudessem subir para estas montanhas de nuvens e serem transportadas por elas como um navio oscilante, sempre mais alto!”

E então compreendeu, de repente, que as nuvens brancas dum dia de Verão eram os navios em que viajavam as almas dos mortos.

Estava a vê-las. Encontravam-se naquelas formulações deslizantes com lírios nas mãos e coras de ouro nas cabeças. O seu canto ressoava no espaço.

Havia anjos que em asa largas e fortes vinham ao seu encontro. Oh, que grande multidão de almas de defuntos! À medida que as nuvens se espalhavam, apareciam sempre mais almas. Repousavam nas nuvens, como nenúfares num lago. Adornavam-nas como os lírios enfeitam os campos. Que ascensão jubilosa! Apareciam sempre mais e mais nuvens. E em todas havia exércitos celestiais com armaduras de prata e cantores imortais em mantas debruadas de púrpura.

Foi este pintor que depois pintou o tecto da igreja de Svartsjö. Ele quis aí mostrar como as nuvens que se levantam num dia de Verão levam os mortos à glória do Céu. A mão que segurava o pincel era forte, mas também um pouco dura, de modo que as nuvens mais pareciam as ondas crespas de uma peruca de juiz do que uma montanha fofa de neblina. E à medida que os santos tomavam forma na imaginação do pintor, ele não era bem capaz de reproduzi-los, e vestiu-os como seres humanos, em mantos vermelhos e mitras severas, ou em sotainas pretas com golas rijas e caneladas. Deu-lhes cabeças grandes e corpos pequenos e muniu-os de lenços de bolso e breviários. Das suas bocas saíram sentenças em latim, e para aqueles que considerava mais importantes, colocou cadeiras robustas de madeira nas nuvens, para que viajassem com comodidade até a eternidade.

Mas o povo sabia bem que nem os espíritos nem os anjos jamais tinham aparecido ao pobre pintor, e por isso não davam importância ao facto de ele não ter conseguido fazê-los divinamente belos. Mas as pinturas do pintor devem ter parecido a muitas pessoas mesmo maravilhosas, tendo causado muita santa emoção. Bem que teriam sido dignas de serem vistas pelos nossos olhos também.

Durante o ano em que os cavalheiros mandaram, o conde Dohna mandou pintar de branco toda a igreja. Assim, todas as pinturas foram destruídas. E também os santos de barro.

Ai, os santos de barro!

Melhor para mim seria qualquer outra miséria humana que aquela que senti por causa da perda dos santos. Nem a crueldade de homens uns contra os outros me poderia encher da mesma amargura que aquela que senti por causa dos santos de barro.

Imaginem só! Havia um santo Olavo com coroa no elmo, machado na mão e debaixo dos seus pés um gigante ajoelhado. No púlpito estava uma Judite, de camisola vermelha e saia azul, com uma espada numa mão e, na outra, uma ampulheta em vez da cabeça do general assírio. Havia uma rainha de Sabá de camisola azul, com pata de ganso numa das pernas e a mão cheia de livros sibilinos. Havia um São Jorge cinzento, deitado sozinho num banco de coro, porque tanto o cavalo como o dragão tinham sido esmagados. Havia um São Cristóvão com o bordão cheio de folhas e São Erik, com ceptro e machado, vestindo um hábito com flores douradas que descia até os calcanhares.

Muitos domingos estive eu sentada na igreja de Svartsjö, lamentando a perda das figuras e sentindo a sua falta. Para mim, não tinha qualquer importância faltarem-lhes narizes ou pés, ou os dourados perderam o brilho e as cores terem desbotado. Tê-los-ia, à mesma, visto rodeados do esplendor das lendas.

Parece que acontecia a estes santos perderem ceptros, orelhas ou mãos, precisando assim de conserto e polimento. Na congregação as pessoas ficaram fartas e desejaram ver-se livres deles. Mas os lavradores de Svartsjö não haviam de lhe ter feito qualquer dano, se não fosse o conde Henrik Dohna. Foi ele quem os mandou retirar de lá.

Tenho-o odiado por isso, como só uma criança pode odiar. Odiava-o como o mendigo esfomeado odeia a avarenta dona de casa que lhe nega o pão. Odiava-o como um pobre pescador odeia um rapaz travesso que lhe estraga as redes e faz um buraco no seu barco. E não passava eu fome e sede durante as longas missas? Não me tirou ele o pão de que minha alma podia viver? Não suspirava eu pelo infinito, pelo céu? Ele estragou o meu barco e rasgou a rede, com a qual eu podia ter apanhado visões sagradas.

No mundo dos adultos, não há lugar para o ódio verdadeiro. Como poderia eu hoje em dia odiar um ser tão lamentável como o conde Dohna, um louco como Sintram, ou uma depravada senhora da alta sociedade como a condessa Marta? Mas quando eu era criança! Ainda bem para eles já estarem mortos há muito tempo.

Bem podia o padre falar, do seu púlpito, em paz e reconciliação que, do nosso lugar na igreja, as suas palavras não podiam ser ouvidas. Oh, se eu os tivesse tido lá comigo, os velhos santos de barro! Eles poderiam ter pregado para mim, para eu ouvir e compreender.

Hoje em dia, lembro-me muitas vezes o que aconteceu quando os santos foram roubados e destruídos.

O facto de o conde Dohna ter mandado anular o seu casamento em vez de procurar a sua mulher e mandar legalizá-lo causou indignação a todos, porque todos sabiam que a sua mulher só tinha abandonado a casa para não ser atormentada até a morte. Parecia que, agora, ele queria tentar reconquistar a graça de Deus e a boa consideração do povo através de uma boa acção, mandando restaurar a igreja de Svartsjö. Fez caiar de branco toda a igreja e tirar as pinturas do tecto. Ele próprio e os seus criados levaram as imagens, num barco, e afundaram-nas nas profundezas do lago Löven.

Mas como ousava ele erguer a mão contra estas formidáveis imagens do Senhor?

Oh, como foi possível esse crime? A mão que cortou a cabeça a Holofernes não sabia mais servir-se da espada? A rainha de Sabá terá esquecido todos os conhecimentos secretos que ferem mais que uma flecha envenenada? Santo Olavo, Santo Olavo, o velho viking, São Jorge, o matador de dragões, o rumor das vossas façanhas terá morrido e a glória dos vossos milagres ter-se-á apagado?! Deve ter sido porque os santos não queriam empregar violência para com os seus destruidores.Foi porque os lavradores de Svartsjö já não queriam gastar tinta para os mantos, e folha dourada para as coroas, e deixaram que o conde Dohna tirasse os santos da igreja e os afundasse no lago Löven. Os santos já não queriam ficar e desfear a casa de Deus. Oh, santos desamparados, já não se lembram dos tempos em que orações e genuflexões vos foram oferecidas?

Penso no barco com a sua carga de santos, deslizando pela superfície do Löven, uma tranqüila tarde de Verão. O homem que o rema lentamente olha com timidez para os estranhos passageiros que se encontravam da proa à popa. Mas o conde Dohna, que também ali está, não tem medo.

Pegou, com as suas próprias mãos, nos santos, um a um, e atirou-os para a água. O seu semblante estava límpido, e respirou profundamente. Sentia-se como um defensor da pura doutrina evangélica. E não aconteceu nenhum milagre em honra dos velhos santos. Calados e desanimados afundaram-se no vazio.

Mas no dia seguinte a igreja de Svartsjö era deslumbrante na sua brancura. Não havia qualquer imagem que pudesse perturbar a tranqüilidade da contemplação íntima. Só com os olhos da alma os piedosos verão a glória do céu e o rosto dos santos. As orações dos homens chegarão pelas suas próprias fortes asas ao Ser Supremo. Nunca mais se vão agarrar à bainha da roupa dos santos.

Oh, verde é a terra, a querida habitação dos homens, azul é o céu, a meta do seu anseio. O mundo brilha de cores. Por que é branca a igreja? Branca como o Inverno, nua como a pobreza, pálida como a angústia! Não cintila de geada como uma floresta no Inverno. Não brilha com pérolas e rendas numa noiva branca. A igreja está coberta de cal branca, sem uma imagem, sem um quadro.

Nesse domingo, o conde Dohna estava sentado no coro numa poltrona enfeitada de flores, para ser visto e louvado por todos. Agora ia ser honrado como o homem que mandou reparar as velhas bancadas, destruiu as feias imagens, mandou pôr novos vidros em todas as janelas estragadas e mandou caiar toda a igreja. Certamente, ele tinha toda a liberdade para fazer tais coisas. Se desejava aplacar a ira do Todo-Poderoso, estava bem que enfeitasse o seu templo como bem entendia. Mas por que é que ele quis louvor por isso?

Ele, que na sua consciência trazia dureza não reconciliada, antes devia era ter ajoelhado no banco da vergonha e pedido a seus irmãos e irmãs, na igreja, para implorarem a Deus que o aceitasse no Seu templo. Seria melhor para ele estar aí como um pobre malfeitor do que estar sentado no coro, honrado e bendito e recebendo honras, por se ter querido reconciliar com Deus.

Oh, conde, com certeza Ele te esperava ver no banco da vergonha. Ele não se deixou enganar pelo facto de os homens não ousarem acusar-te. Ele ainda é o Deus zeloso que deixa falar as pedras, quando os homens ficam calados.

Quando a missa acabou e o último hino foi cantado, ninguém saiu da igreja, mas o padre subiu ao púlpito para fazer um discurso de agradecimento ao conde. Mas tal não aconteceu.

Porque as portas da igreja abriram-se, e lá aparecem de novo os santos na igreja, ensopados da água do Löven, sujos de lodo verde e lama castanha. Devem ter ouvido que ia ser louvado quem os tinha tentado aniquilar, quem os tinha expulsado da santa casa de Deus e afundado nas ondas frias. Os velhos santos gostariam de ter uma palavra neste assunto.

Eles não gostam do marulhar monótono das ondas. Estão acostumados a cantos, hinos e orações. Calaram-se e deixaram fazer o que se fazia, enquanto pensaram que tudo era em honra de Deus. Mas afinal não era. Pois ali está o conde Dohna sentado no coro, querendo ser adorado e louvado na casa de Deus. Tal coisa não podem aceitar. Por isso, levantaram-se do seu túmulo aquático e entraram na igreja, bem reconhecíveis para todas as pessoas. Aí vem o Santo Olaf com a coroa no elmo, e São mErik com as flores douradas no manto, e o cinzento São Jorgew e São Cristóvão. Mas só vieram estes. A rainha de Sabá e Judite não vieram.

Mas quando as pessoas se tinham refeito da surpresa, correu um murmúrio pela igreja:
“Os cavalheiros!”

Pois, são os cavalheiros. E eles vão directamente ao conde e sem dizer uma única palavra, põem a sua cadeira aos ombros e saem com ele da igreja para o pôr no chão.

Não dizem nada e não olham nem à direita nem à esquerda. Tiram simplesmente o conde Dohna da casa de Deus, e depois de o fazerem, vão-se embora, escolhendo o caminho mais curto que leva ao lago.

Eles não foram importunados e não perderam tempo em declarar a sua intenção. A intenção era bem clara. “Nós, os cavalheiros de Ekeby, temos a nossa opinião. O conde Dohna não é digno de ser louvado na casa de Deus. Por isso, tirámo-lo. Quem quiser que o volte a levar para dentro.”

Mas ninguém o levou para dentro. O discurso de louvor do padre não foi feito. As pessoas saíram da igreja. Não havia ninguém que pensasse que os cavalheiros não tivessem agido bem. Lembravam-se da jovem condessa, que fora tão cruelmente tratada em Borg. E lembravam-se dela que fora tão boa para com os pobres, que fora tão bela, que só de vê-la era uma consolação.

Era pecado vir à igreja com partidas loucas, mas tanto o padre como o povo sentiam que eles tinham estado à beira de fazer uma brincadeira ainda maior ao Omnisciente. E sentiram-se envergonhados perante os velhos loucos indisciplinados.
“Quandos homens se calam, as pedras têm de falar”, disseram.

Mas desde esse dia, o conde Henrik não se sentiu bem em Borg. Uma noite escura de Agosto, um coche coberto parou junto à escada grande. Todos os criados se puseram à volta do coche, e a condessa Marta saiu, envolta em xailes e um denso véu a tapar-lhe a cara. O Conde levou-a, e ela estremecia. Fora com a maior dificuldade que a tinham convencido a atravessar o vestíbulo e a varanda.

Entrou no coche, e o conde atrás dela, as portas fecharam-se com estrondo, e o cocheiro deixou os cavalos correrem desembestados. Quando as pegas acordaram no dia seguinte, ela não mais lá estava.

O conde passou a viver no Sul. Vendeu Borg, que depois mudou de dono muitas vezes. Todos amavam o lugar, mas poucos devem ter tido felicidade enquanto o possuíram."*

*Selma Lagerlöf, "in" A SAGA DE GÖSTA BERLING, Cavalo de Ferro Ed, Lisboa, 2007.

3 comentários:

  1. Estou gostando desta escritora Suas postagens dela me levaram a comprar duas obras de um sebo via net, uma delas a obra citada.
    nem sempre gostei de tudo que você lia, mas a influência continua sendo positiva.É bom retomá-la. Me conte o que tem lido dos nacionais.
    Beijo

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  2. Myrian,
    sabe que eu não me lembro do que lia em nossa época de meninas? Nem me lembro que lia, para falar a verdade. Dos "nacionais" contemporâneos, em prosa, tenho lido muito pouco, e eles não chegam a me entusiasmar. Gostei do "Leite Derramado" do Chico, e "O Filho Eterno", do Cristóvão Tezza. Volto sempre aos velhos: Machado da mauridade, de quem meu preferido é "O memorial de Aires"; Graciliano, que tem os maravilhosos "São Bernardo" e "Infância"; São Bernardo tem o personagem mais comovente que já encontrei na literatura, Paulo Honório, com o qual me identifico muito; Guimarães Rosa, principalmente o dos contos de "Primeiras Estórias e Tutaméia (que tem também o nome de terceiras estórias, se não me engano).
    Nossa! Quanto aos contemporâneos ia cometendo uma enorme injustiça: adoro a prosa da Marina Colasanti; gosto muito da poesia dela também, mas os contos são especialmente belos; tem alguns dela postados aí para trás.
    Dos poetas contemporâneos gostei ultimamente de "Memória Futura" de Paulo Francheti, um livro bem de maturidade, e "Em trânsito", de Alberto Martins, também de maturidade. Os dois falam no fundo da mesma consciência da morte,
    mas de modo diverso: o primeiro é mais Drummondiano e o segundo mais Bandeiriano. Também tenho poemas dos dois em postagens mais antigas.
    E vou parar com este comentário que já está virando um "tratado". Mas antes gostaria de te recomendar que visse um filme sueco chamado "Jerusalém", baseado no romance de mesmo nome de Selma Lagerlöf. Vou postar o trailer em vi no youtube, pra já.
    Beijo

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  3. Você não somente lia como me "obrigava" a fazer o mesmo. O primeiro livro enfiado goela abaixo foi O Pequeno Príncipe, de Exupery. Eram os Deuses Astronautas, dele também. Eu gostava mais de poesia, era mais rápido para ler. Mas você, não bastando ler, tinha que decorar e me desafiar!


    Beijo

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