sábado, 21 de dezembro de 2013

Aleluia! Um jovem grande cronista!

"Sheakespeare nas dunas


Férias de verão, minha mãe e meu padrasto alugaram uma casa em Arraial do Cabo para passarmos o mês de janeiro. Na véspera da viagem, arrumaram as malas, fizeram uma grande compra de supermercado e mandaram besuntar o Passat verde-musgo com óleo de mamona - suposta proteção contra a maresia que, até hoje, não sei se era uma particularidade da nossa família ou uma das bizarrices comuns no final do século XX, como passar Coca-Cola na pele antes de tomar sol ou fazer polichinelos nas aulas de educação física. Na manhã seguinte, com o porta-malas lotado, a lataria viscosa e os ânimos exaltados, pegamos a estrada.
      Nossa casa ficava no alto de uma encosta, bem diante do mar. Tinha um quintal com pomar atrás,  e uma varanda na frente, sombreada pela copa de uma amendoeira centenária. Todos os dias acordávamos cedo, tomávamos café da manhã na mesinha embaixo da amendoeira e, depois de uns cinco minutos ziguezagueando pela trilha do morro, chegávamos à praia, com as dunas de areia branca só para nós, meia dúzia de forasteiros e os pescadores. Armávamos o guarda-sol, abríamos as cadeiras e esteiras e ali ficávamos, quase até o anoitecer. 
     Nas infinitas manhãs, enquanto minha mãe e meu padrasto liam, eu e minhas irmãs nos dedicávamos às típicas atividades de criança na praia: nadávamos, rolávamos na areia (chamávamos de "fazer croquete"), construíamos castelos, cavávamos buracos, realizávamos autópsias nos baiacus inchados trazidos pelo mar. Lá pelas três, meu padrasto fechava o livro: "E aí, quem quer uma birita"? Caminhávamos até uma birosca de pau a pique, comíamos pastéis, eles bebiam caipirinha e nós, Fanta Uva.
     No finzinho da tarde, havia o arrastão. Eu e meu padrasto ajudávamos a puxar a rede - bem, ele ajudava, eu só ficava por ali, agarrado à velha corda azul, fingindo que meus pequenos músculos faziam alguma diferença na luta dos homens contra o mar. Quando a rede chegava, carregada - um borbulhante lago prateado, refletindo os últimos raios de sol, recebíamos uma ou duas tainhas por nossa contribuição e íamos para casa, assa-las. Depois do jantar, eles nos liam alguma história dos irmãos Grimm ou do Monteiro Lobato e capotávamos, para acordar cedo no dia seguinte e começar tudo de novo.
     Por mais divertidas que fossem nossas atividades praianas, um mês é muito tempo e era inevitável que em algum momento fôssemos visitados por aquele implacável companheiro de infância: o tédio. No final da manhã, lá pela terceira semana, cansados do mar, da areia, dos "croquetes", pastéis, picolés e barrigas de baiacus, nos encarapitamos sob o guarda-sol e, emburrados, pusemos em prática a única estratégia que conhecíamos para espantar a infelicidade: azucrinar a vida dos adultos até que eles nos trouxessem alguma solução.
     Minha mãe propôs que caminhássemos até as pedras, que fizémos um castelo, disse até que poderia ler algo dos irmãos Grimm ou do Monteiro Lobato, mas o tédio tem uma bunda imensa: quando assenta as nádegas sobre nossas cabeças, achata toda a circunferência do mundo conhecido; para escapar de seu adiposo domínio, só encontrando alguma atividade inédita, em mares nunca dantes navegados. Conhecendo intuitivamente o antídoto, minha meia-irmã bateu os olhos no livro que se pai tentava ler e perguntou o que era. Romeu e julieta, ele disse, e não o deixamos mais continuar a leitura: "Sobre o que é? Por que eles não podiam casar? Onde fica Verona? Dá pra chegar de carro? E de barco? Pra que lado? É antes ou depois da África?".
    Simplificando um pouco a linguagem, meu padrasto nos resumiu o começo da história: as famílias rivais, a festa à fantasia,, o filho dos Montéquio, a jovem Capuleto, o amor proibido. Em cinco minutos, após mais de uma hora de lamúrias, havíamos ficado quietos e atentos. Não sei se instigado por nosso interesse ou simplesmente temeroso de que voltássemos ao tédio profundo, meu padrasto resolveu abandonar a versão resumida e começar o livro pelo começo - inserindo, aqui e ali, algumas notas de rodapé.
     Daquele dia em diante, quando voltávamos da birita, entupidos de Fanta Uva e pastel, sentávamos nas esteiras e, até o sol se pôr, ouvíamos a continuação da história. Mais tarde, ao nos deitarmos na cama, não queríamos saber de feijões encantados ou das reinações de Narizinho: só nos interessava o futuro do casal.
    Hoje, acho que entendo o porquê do nosso interesse por Romeu e Julieta. Filhos de pais recém-separados, não nos eram nada distantes, perdidas no século XVI, situações como "amor impossível""relações inconciliáveis", "a casa dos Montéquio" e "a casa dos Capuleto". Por mais civilizados que tivessem sido os divórcios do meu pai e da minha mãe, do meu padrasto e de sua ex-mulher, em algum lugar devíamos nos solidarizar com dois jovens cujas vidas eram afetadas pelas rixas de seus antecessores. Ou, talvez, nem precisássemos ir tão longe. Afinal: o que é a infância senão uma sequência de desejos cerceados pelos adultos?
     Os dias foram se passando e nós fomos ficando cada vez mais ligados ao livro. Para alongar a narrativa, minha mãe e meu padrasto se aprofundavam em detalhes, descreviam roupas e cenários, cantarolavam as músicas dos bailes, assoviavam os pios dos passarinhos, inventavam comidas, animais e plantas da floresta. Embora percebêssemos a artimanha e reclamássemos às vezes - "pula, pula, isso é sobre!", eu dizia -, eles conseguiram levar Romeu, Julieta e as três crianças firmes e fortes até o final das férias.
     No penúltimo entardecer,  subimos para casa com o coração na boca: o mundo tramava contra o amor proibido, Romeu havia sido obrigado a fugir para Mântua, Julieta estava prometida a Páris, mas o plano do frei Lourenço era excelente! Daria à moça um falso veneno, que a faria parecer morta. Romeu a encontraria no jazigo dos Capuleto, a acordaria do sono profundo, fugiriam para longe de Verona (Arraial do Cabo, talvez) e seriam felizes para sempre. Não era assim, afinal, que terminavam as histórias?
     Eis o que se perguntavam meu padrasto e minha mãe, vez após outra, naquela insone noite de verão. Como sair da arapuca em que se haviam colocado? Deveriam profanar Shakespeare, censurando o final, fazendo, talvez, com que a carta de Julieta chegasse a Romeu via pombo-correio, em vez de viajar no bolso de um emissário? Cometeriam um hediondo anacronismo colocando ao lado da sepultura um providencial orelhão, cujo toque, no momento em que Romeu erguesse a adaga, mudaria, Deus ex machina, os rumos da história? Ou o correto seria seguirem fiéis ao enredo, Shakespeare é Shakespeare, a arte está acima de tudo, não se pode esconder a verdade das crianças, e, no fim das contas, elas sairiam fortalecidas da experiência?
    Lembrem-se, era o início dos anos 80. Maio de 68 estava mais próximo de nós que a obrigatoriedade de cadeirinha para bebês no banco de trás dos carros, a discussão, portanto, sobre o que seria mais danoso às crianças - a violência da história ou da mentira - entrou noite adentro, escorando-se em Harold Bloom e Paulo Freire, Bakhtin e Piaget, Nietzsche, Freud e sabe-se lá mais quem. Já estava amanhecendo quando chegaram a uma conclusão.
     Pela última vez, tomamos café sob a amendoeira, descemos a trilha até a praia, cruzamos as dunas, armamos acampamento. Lá pelas três, depois da birita, como de costume, sentamos em volta dos dois, prontos para ouvir o aguardado final de Romeu e Julieta.
    Não lembro quem contou, se minha mãe ou meu padrasto. Lembro de um frio polar no estômago, de um clarão no céu, do mundo revolto como as entranhas de um baiacu, minha irmã mais nova perguntava, lívida, ainda sem acreditar, "mãe, mãe, que que é adaga?!", minha meia-irmã caminhava a esmo, "nããão! Romeu! nããão! Julieta!", os adultos atrás, atarantados como vaqueiros no estouro da boiada, "mas olha, as famílias fizeram as pazes!", "olha, é só uma história, é de mentirinha! Quem aí quer um picolé?!". "Mortos! Mortos!", gritávamos, rolando pelas dunas, areia grudando no rosto, pequenos e trágicos croquetes pranteando o casal de Verona, que morria junto ao último sol daquele verão."

PRATA, Antonio. NU, DE BOTAS. Companhia das Letras, São Paulo, 2013.



domingo, 15 de dezembro de 2013

"Momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta."

BANDEIRA,Manuel, Poesia completa e prosa [do livro Estrela da Manhã], Ed. Nova Aguilar S.A.,Rio de Janeiro, 1985

Os dois últimos versos deste belo poema são para mim um "ovo de Colombo". À matéria não é dado morrer, como se sabe; o que morre de fato é a alma, esse lugar de toda tribulação.

sábado, 14 de dezembro de 2013

dos mais belos finais

"[...]. Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."*

*ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas, Obra completa, Vol.1, Ed. Nova Aguilar S.A., Rio de Janeiro,1986

sábado, 7 de dezembro de 2013

um fragmento

     "Axel não tirava os olhos da cachoeira. A torrente límpida, como uma coluna luminosa por entre o musgo e as pedras, mantinha inalterado seu nobre traçado por todas as horas do dia e da noite. No lugar em que a água ao rolar batia numa pedra, projetava-se uma pequena cascata, que também permanecia imutável como uma rachadura fresca no mármore da catarata. Se voltasse dentro de dez anos, encontraria a cascata inalterada,como uma obra de arte harmoniosa e imortal. Mas ainda assim, a cada segundo, novas partículas d'água eram lançadas por cima da margem, caindo no precipício e desaparecendo. Era um vôo, um turbilhão, uma catástrofe incessante.
     Haverá, na vida, pensou ele, fenômenos similares? Há um modo de existir equivalente, paradoxal, um voar e fugir estático, imperturbável, clássico? Na música, existe, e é o que se chama Fuga:

     D'un air placide et triomphant,
     Tu passes ton chemin, majestueux  enfant."

BLIXEN, Karen. In "Os invencíveis senhores de escravos", CONTOS DE INVERNO, Editora 34, Rio de janeiro, 1993

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Lúcifer*

            Fabricados de pura luz pela mão direita de Deus, serviam-lhe os Anjos de lenitivo à solidão divina. Concebeu-os como instrumentos em que pudesse interpretar-se a si mesmo, em sua melodia essencial – a inefável perfeição do silêncio criador.
            Haverá maior solidão que a solidão divina? Criar, criar, de palmas abertas, dando sempre e apenas dando, sem nada receber? Assim, ao menos, na lúdica assistência da corte angelical, podia entregar-se à ilusão de ouvir-se a si mesmo, repercutido em eco, ou retratar-se no espelho dos puros espíritos. Não de outro modo, na escala humana, um grande poeta apura o ouvido para ouvir-se nos outros, com inquieto amor próprio, já que não lhe é concedida a graça de mudar de pele, para respirar um pouco, desobrigado enfim dos compromissos de sua consagração.
            Na fábrica dos Anjos, bastou a Deus uma cintila dos olhos para transmitir-lhes um pouco do seu próprio resplendor. O fogo divino acende o fogo da vida em todas as coisas; sua luz traspassa de luz a própria sombra, que não é senão a confirmação dessa presença luminosa pelos corpos opacos. Se a matéria, ao receber a luz, é obrigada a tranformá-la em sombra, o fato mesmo da presença da sombra já está proclamando a luz.
            Os Anjos todos até então se tingiam das inevitáveis oscilações prismáticas da meditação criadora. A uns, concebidos na mais profunda altitude do empíreo, deu-lhes a graça divina o azul, essa vertigem do olhar, que é uma ilusão da distância. A outros, incendiou-os com o chamejamento das pupilas, e, a um bater de asas, abriam largos sulcos de fogo, ateando incêndios aurorais no espaço.
            Pergunto eu: Quem traça no Céu aquelas riscas de sete cores, miragem de uma ponte projetada no ar? E respondo: Os Anjos, quando louvam o Senhor em vôos concêntricos, entoando: Hossana! Só lá no Céu seria possível compreender o que significa uma sinestesia, ao ouvir-se o arco-íris de todas as legiões celestes vibrando em sonoridades multicoloridas, coro feito de todas as cores. A cada categoria dessa milícia espiritual, Anjos, Arcanjos, Potestades, Virtudes, Dominações, Querubins e Serafins – corresponde uma cor simbólica e um emblema, segundo a exegese mística dos tratados de lapidação. Assim, por exemplo, o verde é a cor angélica e a esmeralda o seu emblema.
            Em certas condições, todavia, esses puros espíritos podem mudar de cor. Sabido é que William Blake ceerta vez viu um Anjo ficar azul, de santa indignação, passando aos poucos a amarelo, branco – e finalmente, já pacificado, parecia sorrir, de tão róseo. E quem não acompanhou com olhos abismados no horizonte cada vez mais profundo, ao raiar da madrugada, aquelas cambiantes esmaecidas em novas cambiantes, que são o sinal mais certo de uma festa no Céu? Do outro lado de oceanos de nuvens, legiões de Anjos em revoada celebram o eterno dia do Senhor, cantando: - Santo, Santo é o teu nome! Para sempre amanhecem as tuas obras, cada vez mais orvalhadas e radiosas, como no primeiro dia da Criação!
            Ora, - assim rezam as crônicas do Céu e do Inferno – o coro celestial era a princípio de uma unissonância para nós quase inconcebível, monodia da rosa mística na irrespirável pureza do empíreo.
            Mas, como há sempre uma superação das perfeições, e até Deus, em virtude da onipotência, é obrigado por si mesmo a superar-se, momento houve em que, da incessante sublimação dos puros espíritos, brotou a suprema pureza, como da superação das cores afinal se irradia a cor suprema, que é o Branco.
            Lúcifer nasceu da própria fulguração da luz branca, e nasceu com ele a inquietação da beleza. Criara-o Deus como um filho dileto, já mais próximo da compreensão divina. Dera-lhe, como a Gabriel, Miguel, Azrael, Uriel e Rafael, não só a fulminante rapidez do pensamento, mensageiro que leva aos confins do mundo a mensagem do Senhor, e o dom musical de modular ao mesmo compasso do Verbo, mas além disso, não sei que indefinível graça, talvez sutileza, inquietação, melancolia contemplativa... Deu-lhe ainda, mistura de tudo isto, para mais e melhor, aquela consciência da fragilidade na plenitude que só muito mais tarde e depois da queda viria a chamar-se: ironia. Quando Lúcifer nasceu, a estrela da manhã e a estrela da tarde cintilaram do mesmo fulgor pensativo.
            Fria, distante, lúcida era a estrela de Lúcifer, e um leve halo azulíneo cingia-lhe a fronte, como diadema. Resplandecia tanto, na sua perfeição, que a seu lado os outros Anjos anoiteceram, por força de contraste. Murmuram as crônicas infernais que assim começaram as intrigas na corte celeste. Suporta-se com humildade a ofuscação do próximo, diziam alguns espíritos impuros, decaídos do primor antigo. De qualquer modo, sobre esta sovada questão as glosas de que disponho se desentendem muito. Ela engravidou em discussões intermináveis, graças à argúcia dos teólogos e seu conhecido amor à controvérsia. Eu por mim prossigo na cópia do meu apógrafo, sem mais delongas.
            No primeiro olhar de Lúcifer sentiu o Senhor que ele próprio criara um princípio subversivo, ao conceber a sua criatura mais perfeita. No primeiro olhar do Senhor sentiu Lúcifer que acabava de ser criado para ser condenado,
            - O excesso de perfeição já não é perfeição, - assim dizia com seus abismos o supremo artífice – pois a verdadeira perfeição não vai sem justa medida. Com demasiado amor o engendrei da mais pura essência de mim mesmo, luz de seio a seio, hálito de boca a boca, e sinto que já não obedece à amorosa pressão dos meus dedos, onde latejava a sua forma ideal... Amar e criar é fácil para a sabedoria divina; mais difícil é ser amado pela criatura, isto é, ser compreendido, mesmo pelos puros espíritos moldados à minha semelhança. Pois, quando apenas há reflexo, já não há desejo de compreender e, sim, uma simples reprodução. Deste filho dileto esperava eu um gesto espontâneo, um movimento livre, um primeiro passo...
            Tudo isto ia lendo Lúcifer no semblante formidável do Senhor, como num livro aberto. Sentia-se enjeitado, antes do primeiro gesto.
            Falou, então, e havia uma risonha placidez na sua voz, um brilho calmo no olhar. A estrela parecia dançar-lhe na testa, a cada palavra:
            - Senhor, aqui estou, e bem sabes que a minha presença já é uma confirmação da tua vontade. Eu por mim não ignoro a alta sabedoria dos teus desígnios, sabendo que fui criado apenas para ser condenado. Não há rebelião mais ameaçadora na corte celeste do que a transparência de um pensamento sereno, que logo vai mostrando na cor dos olhos a cor das intenções. Bastou um olhar para sentenciar-me. E não obstante, sou eu talvez o único puro espírito capaz de compreender-te, confirmando ao mesmo tempo a grandeza e a perfeição da tua obra. Sabias que não era possível dialogar verdadeiramente se ficasses no monólogo divino, repetido pelos Anjos, espécie de ventriloquismo sublime, porém um tanto enfadonho, e decerto áulico, cheirando a murmuração louvaminheira.. E assim, tu me convocaste e aqui estou, Senhor, para o primeiro diálogo da Criação. Não sei afinar muito bem pelo coro dos Anjos, mas é dessa fraqueza mesma que decorre a possibilidade de um diálogo. Além disso, uma voz a menos, nesse empostado coro, que diferença poderá trazer ao concerto final das hossanas? Tu é aquele que é, aquele que é sempre, e só ele para sempre – ao passo que todos nós, simples espíritos puros, servimos quando muito de apagado eco à confirmação da tua eternidade, débeis reflexos da tua onipotência. Mas, pergunto eu, onde está em tudo isto o verdadeiro diálogo? Só do contraste, da falha, da fragilidade ameaçada poderia provir o balbucio de um diálogo vivo e então sim, não apenas monótono ou divino, mas contrastado, sofrido, trágico...
            “Senhor, basta de prólogo nos bastidores do Céu, entre nuvens e harpas, com a fria assistência de puros espíritos. Não há boa tragédia sem o concurso da Morte e do Tempo. Aproveita, pois, o estranho animal sem asas que acabaste de criar, para escândalo dos Anjos. Ele vive a trepar nas árvores do Paraíso, a provar de todas as frutas, a puxar pela cauda de todos os animais. Já lhe deste uma companheira que é, mais do que ele, um desafio à nobilitação angelical da forma. Dá-lhe agora o medo da Morte, além da consciência na vontade; dá-lhe a angústia do irreversível, o suplício da recordação feliz, do paraíso perdido e do irrecuperável; dá-lhe a um só tempo a insatisfação constante e a ilusão da plenitude, para que não se acabe o sofrimento. Sairemos então do solilóquio divino, e começará o verdadeiro diálogo”.
            E Deus viu que era bom, isto é, ao mesmo tempo mau e bom, pois indispensável era o concurso do mal, e sem ele a obra da criação não passava de um insosso prólogo celeste, monologado e sem graça. E maravilhava-se da arte com que sabia escrever direito por linhas tortas, criando Lúcifer. E como, a um silêncio mortal, sucedera um crescente sussurro de enxames de abelhas irritadas, traçou no ar um imenso gesto de reprovação.
            - Senhor, tu és perfeito em tuas obras! Confirmou logo o coro.
            Mas o Senhor, dando execução imediata ao diálogo, trovejou:
            - Adão, onde estás?


*MEYER, Augusto, "In" A FORMA SECRETA, Editora Lidador, Rio de Janeiro, 1965

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

domingo, 13 de outubro de 2013

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

uma leitura perturbadora


Bernardo Kucinski escolheu a ficção – um romance - para contar a história verídica do “desaparecimento” de sua irmã durante a ditadura militar. Talvez venha daí a força perturbadora dessa narrativa: o que ele quer contar é tão terrível, que o mero documento não dá conta; foi preciso apropriar-se do fingimento da arte para expressar-se plenamente.
O centro de gravidade desse romance, em que o autor finge a fala de toda a gente envolvida no caso, é um pai devastado pelo sumiço kafkiano da filha e pela execração do nome dela por seus pares na Universidade de São Paulo, onde era professora na época do desaparecimento,  pela sociedade em geral e até pela comunidade judaica a que pertencia.
Nunca nenhuma narrativa dos horrores da repressão me assustou tanto.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

quarta-feira, 31 de julho de 2013

marinas impressionistas 1

imagens de Pedro Lopes Villaça

o frescor da ideia recém nascida

Sempre acho que noventa por cento da expressão se perde entre o esboço inicial e a finalização dos meus trabalhos de pintura. Dias atrás finalizei uma cópia de um quadro de Picasso - modéstia à parte, eu faço cópias muito boas - que me agradou bastante; resolvi fazer mais uma, do mesmo quadro, aproveitando uma tela em que havia pintado uma bobagem. Cobri-a grosseiramente com o branco, de modo que se podem vislumbrar um pouco as cores da pintura subjacente, para rabiscar com grafite o quadro de Picasso. Vou finalizar a cópia, mas também neste caso acho que alguma coisa interessante, involuntária  ou inconsciente, vai se perder.

sábado, 6 de abril de 2013

conto de Natal

E quando enfim emergiu do ventre da mãe para a meia noite estrelada, pensou com Seus botões: "não Te digo nada, mas acho que vai doer".

poema antigo

Perderam-se o leme e a bússola.
Os dias andam nublados,
as estrelas confusas.
Vega extinguiu-se.
O pássaro navega em círculos,
asas viúvas sobre a metrópole.

Quem de baixo decifraria,
ó pássaro absurdo,
tua língua estrangeira,
teu canto de véspera
e bodas secretas?

domingo, 10 de março de 2013

a princesa Têca

A criatura mais refinada que conheci. É minha prima por parte de meu pai; segundo minha mãe, herdou de nossa avó paterna, que não conhecemos, a delicadeza de espírito e de gestos.