domingo, 14 de novembro de 2010

três poemas de Paulo Franchetti


Este belo "Memória Futura", escrito, segundo o autor, "por necessidade, mas desconhecida", bem poderia se chamar "notas de quem aprende que vai morrer".

I
Abaixo a cabeça, ouço de novo
O rumor do sangue.
Olho para a mesa, as veias da madeira.
Há tempos é matéria apenas, sem resto de folhagem,
Hálito noturno, seiva manifesta.
Meus braços também um dia.
O que restar deles, até que a mesa vá ao fogo
E a lembrança
Enfim se apague em cinza.
Ela me disse: sou toda desvelo.
Ouvi que me queria, senti que me sonhava.
Restei, porém, costurado a esta casa,
Atado a uma nesga de céu, um som de rio.
Foram caindo meus cabelos,
As mãos enrugadas deixaram de apreciar o nó difícil,
Apenas harmonias nos ouvidos.
Na infância, inutilmente gritavam os porcos
A caminho do abate.
Muitas vezes esses gritos me fizeram perguntar:
Para quem, por quem, com que sentido.
Somos todos filhotes na hora da agonia
E a mãe está morta ou distante
Ou nada pode.
Mesmo a mãe das mães apenas viu,
Ouviu e recebeu o corpo.
E eu, que a ninguém queria afligir com um chamado
(Como um animal ferido chama,
No meio do campo, pela ajuda
Que não vem),
Compus este poema.

II
A velhice tem suas vantagens:
Nada vem em vão,
Quase nada se recusa.

A urina na praia,
A chuva fria,
Maresia, carniça, lixo:

Libertos os sentidos,
A mente já não mergulha
No cansaço que sucede a exaltação.

A verdade some no meio dos vazios,
Como a água.


III
Ponho umas palavras num papel
E elas passeiam, intocadas,
Como peixes com fome num aquário.

Se alguém se debruçasse agora,
Em busca de outra imagem recurvada,
Veria apenas a sombra, como eu vejo,
Na folha de papel.

Nem mesmo sob a superfície paira
(As lembranças, afinal, já não cavalgam as palavras)
Alguma forma de alívio.

Apenas isto:
Estes gestos,
Pequenos pedaços flutuantes,
Farelos que os peixes,
De súbito surgindo do fundo
Da água lodosa,
Vêm devorar.


(Paulo Franchetti, Memória Futura. Cotia, Ateliê Editorial, 2010)

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