sábado, 7 de novembro de 2009

Notas de uma cozinheira para um filósofo glutão e preguiçoso 1


Quando eu tinha uns doze anos meus pais mudaram-se para Guarapuava e eu fiquei em Ponta Grossa, com uma irmã oito anos mais velha. Passamos a morar numa kitinete nos fundos de um prédio de apartamentos vizinho da nossa casa arejada e clara, agora alugada a uma família estranha que haveria de deixá-la um caco; aquele era um lugar sombrio e feio, de onde não se podia ver o céu nem mais nada além do muro muito alto, escuro de bolor, cheio de lesmas, a meio metro da nossa parede. Foi um tempo sem alegria. Nunca perdoei meus pais por terem me deixado ali para salvaguardar a reputação de minha irmã donzela, mas o fato é que de outro modo eu seria hoje outra pessoa, com prejuízo, ainda que o filósofo refute que isso de “eu ser outra, com prejuízo,” seja algo absolutamente impossível.
Eu e minha irmã ainda não cozinhávamos nessa época; o equipamento de cozinha reduzia-se a um pequeno fogareiro em que fervíamos água para chá ou café; não tínhamos ainda uma geladeira. Pegávamos umas comidas prontas num e noutro lugar, mas o de que mais me lembro desse tempo é de uns sanduíches de presunto, coisa que deploro até hoje.
Também não tínhamos televisão. Nossa senhoria, muito gentil, amiga de nossos pais, recebia-nos toda noite para a novela das oito, que ela assistia invariavelmente comendo um prato de feijão e arroz, sempre nos oferecendo dessa iguaria, e nós sempre educadamente recusando. Não sei quanto a minha irmã, mas eu, enquanto durasse o jantar da mulher, nem conseguia prestar atenção na novela, torturada pela proximidade da comida que sempre foi e sempre será a minha preferida, e que então comíamos muito raramente, em casa de parentes ou quando estávamos em casa de nossos pais.

(continua...)

5 comentários:

  1. Fiquei curiosa. Tenho vagas lembranças de algumas histórias suas contadas pela Mira. Isso fez com que eu construísse um mundo de imagens: a madeireira, o ap do joga chave, as viagens com duas peças de roupa, a galinha caipira com polenta numa cozinha imensa, as bitucas partilhadas, ...
    Tem sido uma delícia revisitar essas lembranças que não são minhas, mas que lembro tão bem. :)

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  2. Zazá,
    da história da galinha com polenta eu não me lembro. Esse teu repertório de lembranças emprestadas deve estar contaminado com "causos" de outra pessoa, chegados provavelmente também via Uóli.

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  3. Não sei de onde a história surgiu mas, certamente, a polentada com galinha exisitiu.
    Prova é o perfume e o gosto, que só quando feita em fogão de lenha a galinha possui, que me acompanha a vida toda. Sempre que como galinha com polenta fico a imaginar que nunca vai ser igual a da Tia Lali. :)

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  4. Zazá, você tem razão. Isso deve ter sido numa das casas em Guarapuava, porque na serraria nenhuma de vocês esteve. Mas olha, mesmo não tendo fogão a lenha eu faço uma galinha com polenta igualzinha à de minha mãe; é só a gente combinar.

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  5. Por falar nisso, não estou vendo o quadro da cozinha onde se fazia tal galinha, cade? Essa galinha realmente era excelente, que saudades..

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