quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Orides Fontela

Os que conheceram de perto a poeta Orides Fontela (1940-1998) dizem que ela era uma pessoa intratável. Eu tive uma pequena amostra disso durante o lançamento de seu livro "Trevo", em 1988, na livraria Duas Cidades: embora já conhecesse e admirasse sua poesia, estava eu lá por acaso, pois não costumo ir a esses eventos; mas, já que estava lá, resolvi pedir-lhe o autógrafo em meu exemplar de seu livro (e ela estava lá justamente para isso), logo eu, que nem sou chegada a esses fetichismos. Como ela estivesse conversando com alguém, com certeza um amigo para quem acabara de autografar, postei-me a uma distância respeitosa da mesa de autógrafos, aguardando minha vez. Depois de me cozinhar por uns dez minutos nessa espera, ela finalmente me olha com desprezo, dizendo para o amigo: "iih, lá vem burocracia...". Eu, que na época era mais tolerante e já conhecia sua fama de louca, só achei engraçado. Se fosse hoje teria acertado o livro na cabeça dela.

Para mim, sua obra representa o mais puro FEMININO (o de verdade, não aquele para os rapazes babarem), que se expressa pela limpeza, pela economia, por só o absolutamente essencial, pela ausência absoluta de idealismo.
A seguir, alguns exemplos.


INICIAÇÃO

Se vens a uma terra estranha
curva-te

se este lugar é esquisito
curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te

- és infinitamente mais estranho.


HERANÇA

Da avó materna:
uma toalha (de batismo).

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.


KANT(RELIDO)

Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.


REBECA

A moça de cântaro e
seu gesto essencial: dar água


PIRÂMIDE

Ei-la
dor de milhares força
de humanidade
anônima

(do faraó
nem cinzas).


NOTURNO

Os que nascem de noite
e, entre ossos, vigiam
o fogo
os que olham os astros
e, oprimidos, respiram
em cavernas

os que vão viver apesar
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
acendem

os que não sonham, os que nascem
de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra.


AS COISAS SELVAGENS

- a firme montanha
o mar indomável
o ardente
silêncio -

em tudo pulsa e penetra
o clamor
do indomesticável destino.


CORUJA

Vôo onde ninguém mais - vivo em luz
mínima
ouço o mínimo arfar - farejo o
sangue
e capturo
a presa
em pleno escuro.


BODAS DE CANÁ

I
Da pura água
criar o vinho
do puro tempo extrair
o verbo.

II
Milagre (anti-
milagre)
era tornar em água
o vinho
vivo.

III
A água embriaga
mas para além do humano: no amor
simples.

IV
Para os anjos a
água. Para nós
o vinho encarnado
sempre.


DOM QUIXOTE

És filho do desejo e do espírito
e(como a carne é impureza) a loucura
não te salva de ser, e cais

Triste Figura mesmo
se o delírio te eleva
à potência do abismo

Triste Figura mesmo
na alta planície em que
eternizado, morres

herdeiro do desejo e do espírito.


Orides Fontela, in "Trevo", Ed. Duas cidades, São Paulo, 1988

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