domingo, 1 de novembro de 2009

Dia sem Deus

O menino devia ter uns sete, oito anos. Ficava num ponto estratégico do calçadão, entre um banco e uma pastelaria, de modo que passava o dia a recolher as sobras da clientela farta: uns trocados aqui, um finzinho de pastel já sem recheio ali, assim ia vivendo. Não vivia só de sobras, é preciso que se diga: tinhas as suas muitas vezes de pastel inteiro, quando um freguês se incomodava com o olhar de cãozinho e dizia ao pasteleiro que lhe desse um por sua conta. E também, em certas tardes, fechado o banco, contada e recontada a féria do dia, subtraída a importância razoável de se apresentar quando voltasse à noite para onde voltava, o menino decidia que era ocasião de banquete: entrava na pastelaria com passo firme e voz de quem paga: “um especial, um de banana com açúcar e canela por cima, bem quentinho, e uma coca-cola”.

E havia as brincadeiras, que ninguém é de ferro. É bem verdade que pouco se podia brincar ali: rodopiar no poste, catar coisinhas perdidas pelo chão, chutar tampinhas... bom mesmo era quando aparecia por lá o irmão mais velho, que tinha ponto ainda melhor, e podia se dar ao luxo de umas gazetas de vez em quando. Aí ficavam os dois um tempão no passatempo predileto: escolhiam entre as passantes a madame mais cheirosa, a de nariz mais empinado, e a acompanhavam, um de cada lado, iam reclamando com insistência os seus trocados. Em geral não se enganavam quanto à disposição da madame: gostavam de ouvi-la repetir “não tenho, não tenho”, enquanto apertava a bolsa e o passo, medrosa de que tivessem um canivete ou de que a tocassem com as mãos sujas. Ao fim de um quarteirão davam-se por satisfeitos, deixavam que se fosse a vítima lívida com os trocados intactos. Riam a valer, e de novo se punham a escolher a mais cheirosa, a mais empinada.

A boa samaritana, que por ali sempre passava, vinha já com as moedas separadas para o menino, ao que ele agradecia com uma piscadela e o polegar direito para cima; economizava-lhe assim a ladainha pedinte e os “Deus que ajude que nunca lhe falte” para os rabugentos . Se entrava na pastelaria, lá vinha o moleque saltitante e de cara limpa: “paga um pra mim, tia!”; pura formalidade, pois ela sempre se adiantava e já fazia seu pedido dobrado, coisa que incomodava demais o pasteleiro: “só hoje é o terceiro que ele come”. Se o surpreendia entretido em assustar as madames, aplicava-lhe na cabeça uns tapinhas, meio corretivos, meio cúmplices, e ele gargalhava de prazer menino.

Sucedeu que ela passasse por ali numa tarde de domingo, os pedestres rarefeitos, o calçadão assombrado de ecos, e visse de longe que o menino chorava. Por que havia de chorar esse menino? Não estaria doente ou machucado, que não era o choro da dor, que de dor choram igual todos os meninos. Contrariedade por estarem banco e pastelaria fechados? Ora, se essa gente, de pequena ainda, conhece tão bem os hábitos da cidade... Implicância da polícia, de outros meninos, do juizado de menores? Isso não. Do contrário, pernas para que te quero; esperto que era, ele não teria se abandonado a chorar ali, na soleira do banco, tão desprotegido e visível contra o imenso portal de madeira escura. Ofenderam-no, quem sabe? Mas a boa samaritana tinha para si que esse menino não se ofendia, e se às vezes o via fazer caretas de deboche e gestos obscenos aos que imprecavam contra a mendicância e a sujidade, sempre lhe pareceu que fosse por simples molecagem, nunca por indignação. Nem seria possível que chorasse de fome, porque esses meninos o primeiro que aprendem é como não se passa fome. E mesmo numa tarde esvaziada de domingo sempre haveria entre os que passavam quem lhe desse um resto de doce, uns trocados para um pão, por caridade ou desfastio, a ele que sabia olhares de cãozinho, e era miúdo e franzino, e que sabia todas as lamúrias de apiedar e aborrecer, pai morto, pai desempregado, pai sumido no mundo, mãe entrevada, mãe morta, irmãozinhos famintos, doentes, com frio... Mas ele nem se dava conta de quem passava. Deixava-se estar sentado na soleira do banco, quase ao rés do chão, as pernas meio dobradas contra o peito, e os braços que enlaçavam frouxamente as pernas...

Por que é que chorava esse menino? Que imprecasse, que mentisse, que roubasse, que tivesse um canivete, estava certo e justo, mas se esse menino chorava, assim, como esses meninos não choram, então se desmanchava a ordem precária do mundo, e o mundo era só uma rua de portas fechadas e um menino que se senta numa soleira, e se encolhe, e pousa o rosto nos joelhos, e soluça...

- Que foi?

E como ela o tocasse, e ele a olhasse e dissesse: “foi nada”, e se esquivasse, e ainda mais se encolhesse, ela o deixou, lívida, e desapareceu no domingo entre os demais que passavam.


aveloh

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